MST EM BURITIS
Gilson Caroni Filho (*)
Todos sabemos que os movimentos sociais muito dependem das representações simbólicas construídas a seu respeito na mídia. A própria cultura política de uma formação social ? conjunto de significados e valores que constrói o sentido de comunidade política ? resulta também da interpretação midiática sobre fatos e comportamentos.
Não estamos conferindo aos meios de comunicação o monopólio do imaginário tão ao gosto dos defensores das teses manipulatórias e, tal como Eugênio Bucci, em seu magnífico Sobre ética e imprensa, não somos herdeiros pobres da Teoria Crítica. Sabemos do caráter industrial que dita a lógica do que se convencionou chamar de grande imprensa, mas, ante a natureza do que vende (bens simbólicos), não podemos analisá-la como sendo um empreendimento capitalista que apenas cultua o leitor-consumidor e suas demandas. Ao contrário do autor, enxergamos na estrutura midiática um projeto de poder que se define pela natureza de seus interesses e das alianças que permitem maximizá-los. Para propor um jornalismo como "práxis ética", desconsiderar esses marcos é cair numa deontologia ingênua. O jornalismo empresarial não informa sobre uma ordem neoliberal da qual é beneficiário. Ele ajuda a formá-la desde a primeira página. Não há uma técnica jornalística dissociada de uma estratégia de ação.
Muitos têm destacado a velocidade da informação e suas implicações políticas. Em Showrnalismo, José Arbex Jr. discorre em texto tão conciso quanto contundente sobre a construção política do esquecimento. Outra boa referência teórica são os textos aqui publicados pelo professor Ivo Lucchesi. Mas gostaríamos de, à luz de um fato recente, atentar para outro aspecto não menos importante: a velocidade tática de promover recortes da realidade, formatar informações com claros objetivos opinativos e desqualificar de pronto qualquer interesse que se anteponha à reprodução da ordem dominante. Ciosa da centralidade hegemônica que adquiriu na sociedade do espetáculo, sua artilharia sempre estará atenta a qualquer movimento que queira refazer, inscrevendo novos sujeitos de direito, um espaço público que se afigure como novo recorte ético- político. São muitos milhões em jogo, para permitir que um grupo qualquer resolva brincar de guerra de posição. Ainda mais nesses tempos em que, como destaca Canclini (Consumidores e cidadãos), a política só se realiza como ação teatralizada, após o esgotamento de suas representações tradicionais.
O "fato recente" a que nos referimos no parágrafo anterior é tão lamentável como elucidativo. Deplorável como erro tático, auto-explicativo quando pretendemos demonstrar o modus operandi da imprensa na defesa das demandas do consórcio econômico-político do qual faz parte. A invasão da Fazenda Córrego da Ponte, da família do presidente da República, no município mineiro de Buritis, por integrantes do MST caiu como um presente para o atual Bloco de Poder. Se havia um cálculo espetacular na ação, por certo foi um tiro que saiu pela culatra. Ao contrário da Marcha de 1997, à qual a mídia, por razões conjunturais, teve que se vergar como demonstra a socióloga Maria da Glória Gohn (Mídia, Terceiro Setor e MST), a ação de agora, em tudo e por tudo, serve aos que tentam reduzir ou anular o espaço de interlocução conseguido pelo mais significativo movimento social surgido na história agrária do país.
Imaginário patrimonialista
A mais elementar análise conjuntural apontaria mudanças significativas em relação ao panorama de cinco anos atrás. Externamente, não há como ignorar um cenário adverso a movimentos que tenham no enfrentamento a maior possibilidade de agenciar demandas de setores excluídos. Muito menos desconsiderar a construção de uma prática de significação que tende a rotular como "terrorismo" tudo que se apresente como contrapoder às relações de expropriação e dominação, viabilizadas pelos ordenamentos institucionais vigentes. No plano interno, o pleito eleitoral, que promete se superar em truculência patrimonialista e uso da máquina de Estado, solicita cautela para que a regressividade sociopolítica desejada pelos setores dominantes não se efetive com mais facilidade. Subestimar os recursos externos dos atuais ocupantes do poder, seja em termos de rede social, seja nos dispositivos ideológicos e simbólicos que lhe dão suporte, seria uma atitude tão suicida quanto implausível se levarmos em conta a inteligência estratégica e a criatividade tática que as lideranças do MST têm demonstrado ao longo dos anos.
Seja como for, o primeiro deslize foi cometido e a rede de apoio midiática foi rápida para dele extrair dividendos. Aparentemente apenas noticiando um fato (dois termos problemáticos ? fato e notícia), a eficácia da ação pôde ser comprovada nas primeiras páginas dos dois principais jornais do Rio. Claro, há um editorial a corroborar a tese de ação coordenada (que muito se distancia de digressões conspiracionistas), mas atentemos para a "objetividade" do relato. Percebamos como a formatação da notícia embute juízos de valor que consolidam uma "cultura política" arredia a transformações substantivas. O JB de 24/3 trazia em sua primeira página:
"Na varanda em que Fernando Henrique Cardoso embala a rede e se livra das tensões do poder, quatro fogões à lenha improvisados preparam o almoço para os cerca de 500 sem-terra que ocuparam a Fazenda Córrego da Ponte, no município mineiro de Buritis, propriedade da família do presidente. Muito arroz, feijão, carne seca e abóbora foram preparados para saciar a fome dos invasores que desceram de oito ônibus no início da manhã de ontem."
Está feito o convite. O lugar onde o mais alto mandatário faz a rede embalar e, com isso, se livra das tensões do poder foi invadido por 500 manifestantes que se refestelaram de carne seca, abóbora, arroz e feijão. O espaço onde o "executor da vontade geral" relaxa de estafa provocada por cioso republicanismo foi tomado por uma turba, um grupo de arruaceiros. Coloque-se no lugar dele, imagine se fosse sua a varanda. Para tal, esqueça que você não dispõe de nenhuma caneta decisória e muito menos optou por um modelo de reforma agrária moldada pelo Banco Mundial. Abstraia o móvel (ainda que equivocado da ação) e o contexto histórico em que ele é significado. Nada sobra a não ser o que Touraine chama de dessocialização produzida pelo fim da mediação entre você e a humanidade. A empatia com a "vítima" é imediata. E sua corporificação como "Estado de Direito" dá conta do que (ou de quem) deve ser evitado como sujeito de direito. Vejam outros parágrafos da mesma matéria:
"A residência do chefe da nação foi invadida”, afirmou o ministro-chefe da Secretaria de Segurança Institucional, general Alberto Cardoso, ao anunciar que 80 agentes da Polícia Federal e 220 soldados do Exército foram enviados para Buritis. ?Lá é o santuário dele, é onde estão seus livros, seus pertences. A polícia precisa restabelecer a ordem, não pode entrar em aventuras.?
No início da noite, dois aviões militares sobrevoavam o local. Seis Blazer da Polícia Federal entraram na fazenda. A PM mineira não foi mobilizada pelo governador Itamar Franco. O ministro do Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann, ao definir o ato como ?terrorismo?, garantiu: ?’Todos os brasileiros tiveram, simbolicamente, suas casas invadidas?. Chamado às pressas de Recife, o ministro assegurou que a invasão não teve ?cunho social?. ?Eles recebem de R$ 20 mil a R$ 25 mil do projeto de assentamento do governo?, informou. No início da noite, os sem-terra aceitaram negociar com Jungmann, desde que os agentes federais saíssem da região. O ministro concordou, mas desde que os invasores deixassem a propriedade antes.
Os sem-terra, assentados na Fazenda Barriguda, vizinha à Córrego da Ponte, desembarcaram às 8h15. Estouraram o cadeado do portão. O administrador Wander Gontijo, surpreendido, nada pôde fazer. Sua casa de dois quartos também foi ocupada. Duas famílias de trabalhadores da fazenda ficaram sob a guarda dos ocupantes. Ricardo Berticcelli, que dirigia um caminhão de grama a ser entregue na propriedade, foi impedido de sair."
As palavras de Jungmann merecem destaque.Primeiro pela definição do ato como terrorismo. Depois pela afirmação de que todos os brasileiros "tiveram, simbolicamente, sua casa invadida". Esse artifício de universalização não tem como premissa a natureza do cargo ocupado pelo Sr. Fernando Henrique. Não é a identificação com o chefe de Estado que a todos representa em sua condição republicana que o ministro do Desenvolvimento Agrário objetiva. É ao imaginário patrimonialista que ele fala. É à cultura política que associa insurgentes a baderneiros que ele apela. Com o apoio logístico de uma primeira página que apenas reproduz a sua fala e curiosamente omite a de outros atores. Melhor serviço não faria um bombástico editorial.
Dúvida taxonômica
Dessocializada a ação, caracterizados os seus atores como baderneiros que "estouram cadeado" e praticam cárcere privado, só resta a tipificação penal para os que invadem "santuários onde estão livros e pertences". A utilização do termo santuário para designar espaço privado dá um recorte religioso à ação coletiva desastrada. E como há livros no altar, tudo foi devassado. Do racional ao sagrado. Quem representaria esse espectro bárbaro, que ignora caras associações e não dialoga com outros setores que podem lhe ser concorrentes?
Com a palavra, o ministro da Justiça, Aloysio Nunes: "O MST agiu como braço político do PT, transformando em ato político-eleitoral a invasão da fazenda dos filhos do presidente Fernando Henrique Cardoso." Começa a se fechar a quadratura do círculo. Depois do TSE (coligações verticais), da invasão da Lunus, a ação desastrada de integrantes de um movimento que se pretende desqualificar cai como luva para eliminar consideravelmente as chances de um candidato oposicionista. Parece que os reality shows se transformaram em estratégia política. Semanalmente algum oponente é excluído do jogo.
O Globo entra pesado na ação coordenada. Caracterizando quadros do MST como profissionais da invasão e tecendo algumas considerações sobre o ideário das lideranças presentes em Buritis, na matéria "Profissão: líder de invasão" (25/3):
"BURITIS, MG. Os principais líderes da ocupação da Fazenda Córrego da Ponte, que pertence a parentes do presidente Fernando Henrique, presos ontem pela Polícia Federal são filiados ao PT. São radicais e conhecedores de técnicas de guerrilha. Outro ponto em comum entre eles é o fato de serem pagos pelo Movimentos dos Sem-Terra (MST) para atuarem em ações de ocupação de terras e outros imóveis. Os salários chegam a R$ 2.000.
Jorge Augusto Xavier de Almeida, o Jorjão, é um dos mais conhecidos líderes do MST na região de Buritis, onde se concentram conflitos agrários no estado. Jorjão chegou a ser candidato a vereador pelo PT, em 2000. Seu discurso de campanha era radical: chamava os mais tradicionais na política de coronéis e se referia aos ricos como burguesia. Não foi eleito"
Se a radicalidade do discurso (uma virtude distorcida semanticamente como signo de intolerância e inconseqüência política) consiste em chamar os mais tradicionais na política dos rincões de coronéis e se referir aos ricos como burgueses, resta uma dúvida taxonômica: como chamá-los? Personagens atávicos da dominação? Proprietários casuais de bens e patrimônio?
Busca imperativa
O editorial do Jornal do Brasil de 25/3 é rico no sentido de explicitar os limites de ação tolerados pela mídia, bem como sua peculiar maneira de encarar processos (esse eterno inimigo da atomização) históricos.
"A invasão da fazenda do presidente da República foi agressão ao direito de propriedade que, enquanto existir, terá de ser respeitado. E atentou contra a autoridade presidencial eleita pela maioria absoluta da nação. Para manter a lei e a ordem é que existem a Justiça e a Polícia. Os sem-terra desconhecem a existência da lei, da autoridade e da Justiça e alardeiam sempre a disposição revolucionária possível."
Uma visão processual da história replicaria esse pequeno trecho transcrito com observações singelas. Os direitos devem ser respeitados. Bem como são redefinidos e reinventados. Para isso existem os movimentos sociais, os partidos de oposição e a própria noção de cultura política como campo dinâmico de produção de novas significações. As revoluções burguesas se fizeram rompendo códigos seculares e preceitos de poder como investidura divina. A invenção de novos espaços políticos não comporta limites morfológicos intocáveis. Poderíamos sem qualquer receio de incorrer em sofisma inverter os termos da última frase: a lei, a autoridade e a justiça desconhecem os sem-terra. E isso é anterior a qualquer ação política desastrada. Por fim, no mesmo editorial a correlação judicativa recorrente se apresenta novamente:
"Acostumado a passar a mão em cabeças radicais, tanto as que abriga quanto as que operam na sua periferia, o PT ? pela voz dos seus dirigentes ? não quis desautorizar a invasão da fazenda de Buritis. Seus dirigentes evitaram cautelosamente condenar essa forma de ação que já apoiaram até concluírem que se volta contra eles. O PT se declara abstratamente contra ocupação de fazendas produtivas, considera a negociação a via adequada para a Reforma Agrária e pede entendimento entre o governo e os invasores."
De nada valeram as reprovações de Lula e outras lideranças do PT. A pecha de partido que autoriza ações políticas desastrosas acompanham o partido desde o pleito de 1989. O fato de, ideologicamente, muitos quadros do MST se identificarem com o PT ? o que nos parece absolutamente normal face ao conteúdo programático do partido ? parece confirmar a velha tese de "correia de transmissão".
Pouco importa se ao longo dos anos tenham sido de conhecimento público as divergências entre os dois. De menor importância toda a literatura sobre a essencialidade de o próprio movimento não se deixar aparelhar por formações partidárias.
O que está em jogo não é um teorema a ser comprovado, mas um axioma a ser editado. De afogadilho, sem espaço para o contraditório e, por conseguinte, para a democracia. Ou perseveramos na luta por espaços públicos não-estatais como campos contra-hegemônicos ou continuaremos a ver, em boa diagramação, o aprisionamento das interpretações possíveis. A busca por novas mídias é absolutamente imperativa. Embora escasso, ainda há tempo.
(*) Professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso ? Rio