SOB OS ESCOMBROS
Arnaldo Dines, de Nova York
Tanto para a população angustiada dos Estados Unidos como para a audiência curiosa do resto do mundo, o comportamento da mídia americana na cobertura da tragédia do World Trade Center aproximou-se do exemplar. Dedicação, informação e responsabilidade foram algumas das palavras mais mencionadas pelos críticos em suas avaliações das redes de televisão, jornais e websites.
O problema é que em um evento desta magnitude, informar o resto do país e do mundo precedeu a obrigação de informar aos que foram mais diretamente afetados ? no caso, as vítimas e seus familiares ?, assim como os moradores da região. Protagonistas involuntários, como todos cujas vidas são marcadas pelas garras afiadas do terrorismo, esse grupo foi exposto ao mundo pelos olhos indiscretos da televisão. Mas faltou aos que controlam o fluxo de notícias a sensibilidade de ajudar, paralelamente ao dever de reportar.
As imagens de nova-iorquinos de todas as raças e classes sociais, tentando furtar alguns segundos de exposição frente às câmeras de televisão para divulgar fotos de seus maridos, esposas ou filhos desaparecidos foram algumas das imagens mais tocantes e amplamente utilizadas. Cientes do poder de penetração da televisão, os familiares sabiam ser esta a melhor opção para obter qualquer tipo de informação sobre seus entes queridos. Mas faltou aos editores dos noticiários, especialmente os responsáveis pela cobertura local de Nova York, a motivação para abandonar o dramático da situação e partir para o prático, seja na forma de um sistema de auxílio para a localização ou, ao menos, para a obtenção de informações sobre o paradeiro dos desaparecidos. Seria tecnicamente muito fácil, por exemplo, passar nomes e informações de contato na parte de baixo do monitor de TV, sem afetar o resto da cobertura.
Na ausência de uma ajuda televisiva, os familiares das vítimas acabaram por apelar para uma prática bem menos tecnológica, e por isso mesmo muito mais comovente: o jornalismo de poste, tão utilizado no século 19. Com a volta do sol no primeiro fim de semana após o trauma, milhares de postes e pontos de ônibus amanheceram cobertos por pequenos cartazes com fotos dos desaparecidos e informações de contato. Era como se a cidade tivesse acordado após uma nevada de Inverno. Mas em vez do branco da neve, o nova-iorquino encontrou uma lembrança da dor contagiante de seus vizinhos ? mais do que suficiente para destruir qualquer pretensão de uma rápida volta à normalidade.
Paralelamente ao drama das vítimas diretas, faltou às redes de televisão uma concientização da necessidade de manter a população vizinha ao World Trade Center informada das medidas tomadas pelas autoridades. O problema começou já na queda dos edifícios, quando os canais 7 (ABC), 9 (WWOR) e 11 (WPIX) perderam o sinal, justamente por terem seus transmissores no topo das torres. Os canais 2 (CBS), 4 (NBC) e 5 (Fox) permaneceram no ar, pois seus transmissores estão no topo do Empire State Building ou no estado de Nova Jersey, vizinho de Nova York.
Detergente sanitário
Para os moradores das áreas conhecidas como Battery Park, Tribeca, Soho, Village e Lower East Side ? todas próximas do World Trade Center ? a situação ficou ainda pior, pois uma boa parte não tem televisão por cabo, especialmente os residentes mais pobres e idosos das chamadas brownstones, pequenos prédios construídos ainda no século 19. Cabia, portanto, aos canais locais ainda em funcionamento a obrigação básica de manter essa população informada, seja do perigo de mais desabamentos ou a respeito de possíveis medidas de evacuação ? que acabou por ser implementada no Battery Park, a área adjacente ao World Trade Center.
Mesmo com a volta ao ar de alguns canais no dia seguinte, a situação não melhorou. Pelo contrário: devido à óbvia exaustão que tomou conta dos departamentos de jornalismo das redes nacionais, equipes das estações locais dessas redes foram transferidas para a cobertura nacional. O resultado foi uma rápida diluição dos interesses práticos e imediatos da comunidade local em prol do drama humano que tanto chocava e obcecava as comunidades nacionais e internacionais.
Foi somente no terceiro dia após a tragédia que apareceram os primeiros indícios de coordenação entre os órgãos municipais e as estações de televisão. Mas, mesmo assim, nem sempre as informações eram coerentes ou completas. Por exemplo: apesar do anúncio do bloqueio da área do cone sul da ilha de Manhattan, delimitada ao norte pela Rua 14, ninguém se deu ao trabalho de informar a essa população prisioneira se haveria entrega de alimentos nos supermercados, cujas prateleiras se esvaziaram rapidamente. Ou se a determinação do prefeito Rudolph Giuliani para o fechamento de todos os estabelecimentos comerciais incluía também farmácias e os pequenos mercados (conhecidos como delis), que fazem parte essencial da vida diária de qualquer nova-iorquino.
Ausentes deste debate ficaram os jornais The New York Times, Daily News e New York Post, que apesar de impressos só voltaram a circular plenamente na cidade dois dias depois do evento. Mas nesta instância a culpa recaiu sobre a distribuição irregular causada pelas regras de tráfego em vigor nas diferentes regiões. A área abaixo da Rua 14 foi novamente a mais prejudicada e só voltou a receber uma quantidade limitada dos jornais no sábado. Como ressalva, a edição nacional do The New York Times circulou sem problemas, pois é transmitida por rede de dados e impressa em outros estados.
As circunstâncias mais especiais foram as do Wall Street Journal, cujos jornalistas se viram obrigados a abandonar a redação localizada em frente do World Trade Center e procurar abrigo provisório em Nova Jersey. Apesar disto, o jornal conseguiu sair no dia seguinte, com distribuição normal no resto do país mas irregular na cidade.
No tocante à cobertura nacional, a internet andou a passo de tartaruga contra os pulos de lebre das redes de televisão. Era o confronto da conectividade com a velocidade. Mas mesmo assim a vencedora ainda foi a AOL, em função das redes de televisão incorporadas com a compra da Time Warner. A CNN deu um banho nas competidoras MSNBC e Fox News, graças à sua infra-estrutura (inclusive internacional) e à sensatez do seu time de correspondentes, liderados por Aaron Brown, em Nova York. O mesmo não pode ser dito da Headline News, a irmãzinha menor da CNN, que funciona em uma rotação de programas de meia hora [veja remissão abaixo]. Enquanto todas as redes entraram em programação especial sem interrupções, a Headline News se destacou por manter o formato praticamente intacto, inclusive com paradas comerciais. Nada como ver um anúncio de detergente sanitário em meio a um dos momentos mais trágicos na história da nação.