Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

E se o Bonner fosse fanho? E se a Fátima fosse gaga?

TELEJORNALISMO

Paulo José Cunha (*)

Alguma vez na vida você se lembra de ter visto um gago dando entrevista pra televisão? É… um gago mesmo, legítimo, de nascença. Não vale gago de programa de humor nem de pegadinha. Estou falando de entrevista no duro, pra valer, um gago botando a cara em telejornal de rede. Lembrou-se? Eu também não me lembrava.

Até a semana passada quando, no principal telejornal da TV Cultura, assisti, entre curioso, divertido e muito, mas muito contente, a fala de um gago no meio de uma matéria, misturada entre outras de não-gagos. A fala foi editada sem qualquer objetivo de brincadeira ou chacota, sem explicação ou desculpa, sem justificação pelo fato de estar-se ouvindo um gago e sem que o assunto da matéria tivesse coisa alguma a ver com gagueira ou outros problemas de fala. Apenas mais uma "sonora" numa matéria qualquer. Sonora curta, boa, igual a dezenas que a gente vê e escuta todo dia nas várias emissoras de tevê. Só que o cara era gago. Como podia ser negro. Ou japonês. Ou petista.

Onde é que nós estamos, gente? Pelo amor da santa, que vergonha! Um gago dando entrevista… Em que manual eles aprenderam que se podia fazer isso? Onde é que nós vamos parar desse jeito? Nesse ritmo, a qualquer hora vamos terminar vendo um… fanho no Jornal Nacional!

Agora falando sério: já não é sem tempo. A verdade é que, segundo as estatísticas, com base nos parâmetros nacionais para a caracterização deles, pelo menos 10% de nossa população é formada pelos portadores de algum tipo de deficiência (física ou mental). Isto corresponde a 16 milhões de cidadãos. Gente a dar com pau.

Pois toda essa formidável massa de brasileiros, por imposição não fixada em regra escrita mas aceita sem contestação e caninamente cumprida nas redações, praticamente não freqüenta a televisão. Nem lá dentro como repórter ou apresentador, nem cá fora, como entrevistado. Não é de bom tom editar uma sonora de portador de deficiência, a menos que a matéria se refira à deficiência em causa ou o entrevistado seja pessoa famosa. Se possível, a edição procura disfarçar a deficiência, como se fez durante anos com as falas do deputado Inocêncio Oliveira, até que ele tivesse a gagueira amenizada. Os editores fogem soltando vade retros pra todo lado quando algum repórter desavisado ousa trazer a entrevista de um portador de deficiência. Surdos, ainda vá lá, porque só precisa da voz, se ela for, digamos, normal. E os mudos? Ah, de jeito nenhum, mesmo que o entrevistado domine a linguagem dos sinais. Não seria de bom tom. Até há bem pouco tempo o preconceito alcançava os homossexuais. Era raro ouvir algum deles sendo entrevistado. Praticava-se (pratica-se ainda, mas em escala menor) uma censura disfarçada. Tal como se faz com negro em novela, que na maioria das vezes só aparece enxugando pratos.

Pouca gente percebeu, talvez tenha sido mesmo um simples acaso, mas a falinha do gago na TV Cultura quebra um tabu de mais de 50 anos. Além de sinalizar uma possibilidade promissora: a de que essa fantástica massa de brasileiros possa exercer mais esse direito, o de poder emitir opinião e ter presença assegurada no mais abrangente veículo de comunicação da atualidade. Ao mesmo tempo, o gago da Cultura nos permite sonhar com uma sociedade do futuro, onde possamos assistir à participação mais do que justa de portadores de deficiência como apresentadores e repórteres em número correspondente ao percentual de sua incidência na população.

Parece sonho. E é. Portanto, o melhor é esquecer o que acabou de ser escrito. Coisa mais boba, né? Imagina: cegos, surdos, mudos, fanhos e demais portadores de deficiência física ou mental, todos na televisão, e o pior: dentro das nossas casas! Não ia dar certo. Até porque, como se sabe, democracia é um troço relativo. Quem disse que vale pra todo mundo? Essa gentinha não conhece mesmo o seu lugar. E é preciso tomar cuidado porque se der o pé vão logo querer a mão.

(*) Jornalista, pesquisador, professor de Telejornalismo, diretor do Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico "Telejornalismo em Close", coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <pjcunha@unb.br>