FRAUDE NO NY TIMES
Beatriz Singer
Um dos modelos da imprensa americana foi ameaçado e o estardalhaço em torno do assunto já ganhou as dimensões esperadas [veja artigos anteriores sobre o assunto ao pé da página]. Jayson Blair, até 1/5, era repórter do New York Times. Em 26/4 ele escreveu uma artigo que ganhou chamada de capa, sobre um mecânico do exército desaparecido no Iraque. O texto incluía passagens "perturbadoramente semelhantes" a algumas que apareceram antes no San Antonio Express-News.
Era o começo da queda da máscara do jovem Blair. A investigação extensiva de uma equipe do Times descobriu outras 36 faltas graves nos 73 artigos que o jornalista escreveu para o jornalão de outubro para cá. O resultado foi publicado na edição de 11/5 e ocupou quatro páginas inteiras do jornal, resumidas e comentadas na edição passada deste Observatório.
A partir daí, é difícil dizer se as reações mais exacerbadas se deram em outros jornais ou na própria redação do Times. Enquanto no dia 14/5 os chefões do Times entravam na jaula do leão, em encontro com centenas de repórteres e editores querendo extravasar indignações e esclarecer todas as obscuridades do caso, articulistas de todos os EUA opinavam sobre a relevância da cor da pele de Blair na permanência do repórter no jornal por tanto tempo.
O foco não se ateve só ao Times. Agora as redações de jornais de todo o país estão ressabiadas. Algumas resolveram investigar reportagens antigas. Outras estão aumentando a vigilância de supervisores sobre os repórteres. Nenhuma continuará agindo como antes. O caso Blair marcou o jornalismo americano e mostrou como é simples fazer mancar um jornal de base e renome tão sólidos.
Stress pós-traumático
Howell Raines, editor-executivo do New York Times, enfrentou a sabatina de mais de 300 jornalistas indignados. Um encontro de toda a equipe do jornal foi marcado pelo próprio Raines, no terceiro memorando em dois dias, afirma Paul D. Colford [New York Daily News, 14/5/03]. Diversos funcionários disseram que a situação na redação está caótica e sugeriram que alguns editores seniores fossem penalizados pelo erro catastrófica na administração, que agora tornou o trabalho de todos os repórteres suspeito.
Raines afirmou que aceita a culpa pela falha de comunicação e supervisão que permitiu as fraudes freqüentes do jovem repórter. O editor-executivo passou a maior parte do tempo, no entanto, respondendo a reclamações enfurecidas e interjeições sobre seu estilo de administrar.
Alex Berenson, repórter de negócios, perguntou a Raines se ele pensava em pedir demissão. O editor respondeu que não, a menos que o publisher do jornal, Arthut Sulzberg Jr, pedisse. Sulzberger, sentado próximo a Raines, imediatamente gesticulou que não aceitaria a demissão do editor, mesmo se este oferecesse.
Raines afirmou que a sabatina foi além da proposta original. Acabou virando um fórum de discussão de seus 20 meses à frente da redação do Times. Vários funcionários afirmaram ver o editor-executivo como autocrático, inacessível e arrogante". "Vocês acham que a redação é hierarquizada, que minhas idéias prevalecem sobre a de outros, sumariamente ignorados. Ouvi que vocês estão convencidos de que há um sistema de estrelato que seleciona meus favoritos para promoções e que pode ter colaborado para a tragédia do caso Blair", disse Raines, enumerando itens que chegaram a sua escrivaninha durante as entrevistas com funcionários na semana seguinte à descoberta das fraudes.
O momento mais exaltado ocorreu quando Joe Sexton, editor do caderno metropolitano, quis saber como o jornal pôde enviar Blair, um repórter de 27 anos com histórico já rasurado, para cobrir o caso de um franco-atirador em Washington. "Vocês perderam a confiança de grande parte da redação", disse Sexton.
De acordo com Howard Kurtz [The Washington Post, 15/5], Raines disse a Sexton de maneira direta para não "demagogizá-lo" ou utilizar palavras pesadas, afirmando que a discussão deve ser mais civilizada. "Sinto por não ter sua confiança. Espero ganhá-la novamente", disse em seguida.
Segundo Sexton, Raines e sua equipe "n&atatilde;o fizeram nada" para verificar "a autenticidade ou a qualidade das reportagens de Blair". Perguntou, então, por que nenhum editor sênior foi atrás da identidade das fontes anônimas do repórter, ao que Raines respondeu ser sua a culpa. "Tenho um DNA de repórter político, não de repórter policial", afirmou.
Segundo Jacques Steinberg [The New York Times, 15/5], muitos dos presentes à sabatina deixaram o local dizendo que levará meses, senão anos, até Raines provar que pode elevar a moral da redação.
Paralelamente, um novo rumor começou a se espalhar pela redação do Times e pelas páginas de outros jornais. O jovem fraudador teria um caso com Zuza Glowacka, secretária do Times de 23 anos, cuja mãe é próxima à esposa de Raines. Uma porta-voz do jornal disse que Zuza não está trabalhando no Times no momento.
Funcionários têm comentado em surdina sobre a relação Clair-Zuza, que parecia ser romântica, e têm se questionado se isso ajudou o repórter a receber tratamento especial no jornal. Blair se recusou a comentar o assunto, mas deixou claro que "nenhum empregado do Times me assistiu em meus erros."
Em comunicado à imprensa, Blair assumiu toda a responsabilidade por suas ações. "Continuo profundamente sentido por meus lapsos de integridade jornalística", afirmou. "Continuo lutando com questões recorrentes que me têm causado grande sofrimento."
A questão da raça
Como um repórter de 27 anos cujas reportagens produziram 50 erros em quatro anos conseguiu continuar praticando plágio, invenção e fraude bem debaixo do nariz de veneráveis editores? A questão, lançada por diversas publicações americanas, indica que a questão étnica no caso Blair, por mais que não tenha sido a mola propulsora da crise, trouxe conseqüências a toda a comunidade de jornalistas negros.
Há quem julgue que a questão racial também foi uma causa. "Os editores do Times toleraram erros que poderiam ter prejudicado ou até encerrado a carreira de outros repórteres", afirma Joan Ryan [San Francisco Chronicle, 13/5/03]. Um executivo do Times disse à revista Time que jornalistas pertencentes a minorias nem sempre eram contratados pelo sistema padrão porque o jornal sempre quis ter "muitos repórteres de minoria étnica".
"Essa história não se trata de uma falha de jornalistas de minorias ou de um excesso de compaixão", disse Gerald M. Boyd, subeditor administrativo do Times. "Não façamos disso um caso de raça, idade ou qualquer critério que divida a redação mais talentosa do país e até do mundo."
De fato, dizer que a raça foi a razão pela qual Blair conseguiu ficar anos na redação do jornal cometendo tantas fraudes, é uma resposta tentadora à primeira vista e bastante simplista.
"As pessoas são tão obcecadas com a questão da raça que não enxergam a realidade à sua frente: esse rapaz era esperto, além de ter um distúrbio", disse Leonard Steinhorn, professor da American University e co-autor do livro By the Color of Our Skin ("Pela cor da nossa pele"). "Ele percebeu os ?buracos? no processo de edição e podia trabalhar à sua maneira a partir disso… Obviamente os editores viram algo nele. Ele era diabolicamente esperto e os chefes apenas presumiram que ele agiria eticamente."
Talvez, especula Joan Ryan, Blair sofresse de algum problema mental. Talvez sua produção prolífica fizesse par com seu comportamento errático e as ausências freqüentes fossem resultado de um distúrbio bipolar ou depressão. Pode-se, ainda, especular que os editores de Blair fizeram vista grossa diversas vezes não porque ? ou não apenas porque ? ele é negro, mas porque poderia estar lutando contra um distúrbio mental; ou, talvez, por ser jovem, carismático e esforçado.
Há cinco anos, Stephen Glass, um redator branco de 25 anos que trabalhava para a New Republic e outras revistas, foi descoberto fabricando notícias [veja remissão para artigo sobre o assunto ao pé da página]. Ninguém pensou em raça como razão para poder enganar seus editores.
No caso de Blair, o fato de ser negro fez com que uma discussão que deveria focalizar procedimentos jornalísticos se desviasse para uma "ação positiva", que é a cota de minorias dentro da redação. Ao dizer que os editores buscavam apenas lidar com a diversidade, o público deixa que eles se esquivem facilmente de suas responsabilidades na conferência de fontes anônimas, na comunicação entre os próprios editores, na consciência do real paradeiro de seus repórteres, e no julgamento de passar pautas importantes, difíceis e sensíveis a jornalistas jovens e relativamente inexperientes.
Nos EUA de hoje, onde os negros sofrem discriminação de um lado e são acomodados publicamente de outro, a questão racial ainda é básica em inúmeras situações. Este caso, diz Ryan, não é um deles. Aconteceu porque um jovem repórter ignorou princípios básicos do jornalismo. E porque o Times também incorreu no mesmo erro.
Se, por um lado, há quem diga que a questão central no caso Blair não é racial, há quem já esteja pensando nas conseqüências. E essas, sim, podem recair sobre a raça mais que sobre qualquer outro aspecto posto em evidência neste caso. A cor de Blair coloca outros negros sob vigilância maior nas redações de todo o país ? mesmo sabendo que o problema do jovem repórter não tem nada a ver com sua cor.
Janet Cooke, uma repórter negra do Washington Post, ganhou o prêmio Pulitzer em 1981 por uma série sobre um viciado em heroína de 8 anos. A série fora inventada. Quando descobriram, ela teve de devolver o prêmio. Além de perder o emprego, deixou uma sombra ameaçadora sobre toda uma geração de jovens jornalistas negros atrás de uma vaga em um jornal de grande circulação. Eugene Kane, do Milwaukee Journal Sentinel [13/5/03], era uma deles. "Amigos negros que trabalhavam no Washington Post nessa época sempre me diziam que toda a redação parecia desconfiar do trabalho de qualquer repórter negro após o fiasco de Janet."
Aos prestes a saltar sobre a raça de Blair para justificar suas atitudes ? e Eugene garante que já ouviu coisas do gênero ? "não há nada nessa triste história que sugira que repórteres negros precisam se afundar em culpa", diz a jornalista de Milwaukee. E para os que acham que Blair sublinhou o preconceito contra negros, Eugene joga alguns dados recentes: Mike Barnicle era um colunista branco do Boston Globe que se demitiu por inventar suas colunas. Stephen Glass, já citado, é outro branco que fabricava reportagens. Não se pode esquecer dos repórteres brancos do Salt Lake Tribune que venderam artigos ao National Enquirer.
O website de opinião e defesa de negros Black Commentator www.blackcommentator.com , também se manifestou quanto ao assunto. A opinião da organização é de que o problema enfrentado pelo Times não deveria ser de preocupação coletiva de negros. "Brancos controlam todos os aspectos importantes da publicação", afirma um editorial. "O povo negro não é responsável pelas decisões contratuais de pessoas brancas". Para o Black Commentator, é uma vergonha o fato de o caso Blair receber "maior atenção da mídia do que a morte de milhares de iraquianos."
Para o grupo, o ponto de partida do racismo americano é a presunção de que pessoas brancas e suas instituições representam os padrões apropriados e normativos, a partir dos quais todas as outras pessoas e instituições são julgadas. A lógica dessa presunção dita que pessoas contratadas pelo New York Times são pessoas "especiais". O Times, para o Black Commentator, funciona como "um árbitro corporativo do discurso do branco americano". "Não aprendemos o que é realmente importante, mas o que o Times acha importante o suficiente para publicar."
"Pessoas com tendência ao preconceito são levadas a concluir que uma pessoa negra sortuda o suficiente para estar na equipe do Times carrega uma dupla obrigação. Ela deve provar que os brancos brilhantes que a contrataram pegaram o ?negro certo? para o emprego", afirma o editorial. "Jayson Blair desapontou seus colegas brancos. E o Times concluiu em uma prestação de contas de 6.500 palavras que o jornal permitiu que suas boas intenções fossem sabotadas por um negro mal."
Repercussão em outras redações
Enquanto o Times continua explicando os meses de comportamento impróprio do jovem Blair, jornais de todo o país estão reagindo ao incidente com revisões de suas próprias políticas internas, assim como lembretes às equipes para checar tudo o que não parecer perfeitamente correto.
Greg Moore, editor do Denver Post, disse que o jornal "também vai avaliar sua política de ética". "Faremos uma política nova mais abrangente e manteremos uma discussão constante sobre o assunto."
O Post também reviu os arquivos do jornal, para ver se constava algum artigo de Jayson Blair reimpresso nos últimos meses. Moore, de acordo com Joe Strupp [Editor & Publisher, 13/5/03], encontrou quatro reportagens do jornalista que tiveram problemas de apuração. Publicaram, no dia seguinte, uma nota aos leitores relatando o achado.
No Detroit Free Press, editores encontraram cinco artigos de Blair, inclusive um que o Times citou entre os que continham fabricações. O Free Press publicou uma nota explicando a reportagem e os erros nela cometidos.
A maioria dos editores de jornais que falaram com a E&P reconheceram que o caso Blair levou-os a rever procedimentos para evitar imprecisões e plágios. Muitos também pediram para que a equipe editorial lesse e guardasse toda a reportagem investigativa feita pelo Times sobre o repórter. Alguns, por fim, reconheceram que qualquer editor pode ser trapaceado por um repórter desonesto, mas outros criticaram o fato de o jornal não ter reagido apropriadamente após uma série de sinais de que o jovem tinha problemas.
Apesar de nenhum dos editores entrevistados terem passado por uma situação da mesma gravidade, quase todos admitiram ter enfrentado problemas com repórteres que mentiram ou fabricaram informações.
A nova boa vida de Blair
O famigerado ex-repórter do Times contratou um agente para auxiliá-lo com propostas de livros e programas de TV que já começam a chover sobre sua horta. O dinheiro envolvido nas negociações é bem superior ao que ele jamais sonhara ver trabalhando para o jornalão, de acordo com reportagem de Phyllis Furman [New York Daily News, 15/5/03].
A agência escolhida por Blair foi a David Vigliano Associates. O jovem já recebeu uma proposta de Ian Rae, produtor de tablóides para TV, criador do programa A Current Affair. Ted Faraone, porta-voz de Rae, disse que enviou ao jovem um projeto para TV. "Ele está decididamente interessado", disse Faraone.
Rae disse que a história de Blair renderia um programa de televisão suculento porque "tem de tudo: fofoca, escândalo e intriga. Isso levou o jornal à humilhação… Há um bom mercado aí."
E Rae não é o único a pensar assim. Outras emissoras têm tentado falar com Blair. O lugar mais esperado para uma biografia de Blair é em uma emissora a cabo, como HBO, Showtime ou FX, que tendem a contar histórias mais complexas em prazos curtos.
"Ele não é Jessica Lynch sendo resgatada por iraquianos", disse um agente de Hollywood especializados em filmes para TV. "Este caso é para uma audiência mais sofisticada, para a qual éacute; possível explorar aspectos psicológicos que levam um indivíduo a embarcar em um caminho tão autodestrutivo."
No entanto, mesmo que Blair consiga um mega-acordo para livro ou filme, ele pode não ficar com o dinheiro. Promotores estão investigando se ele cometeu algum crime. Sob a legislação de Nova York, se for condenado, não poderá embolsar os lucros. Além disso, se revelar informações confidenciais, o Times pode processá-lo a fim de "forçá-lo a devolver os lucros", disse Mark Biros, sócio do escritório de direito Proskauer Rose.
Ainda pode piorar
A crise em um dos mais prestigiosos jornais do mundo não dá sinais de arrefecimento. Muito pelo contrário: agora o Times resolveu investigar o trabalho de diversos outros repórteres.
Rumores na redação segundo Edward Helmore [The Observer, 18/5/03], dão indícios de que Howell Raines, apesar da negativa durante o encontro da redação, poderá ser forçado a se demitir, uma vez que o foco da ira passou de Blair para ele.
James Wolcott, crítico de mídia da Vanity Fair, não teve papas na língua para comentar o escândalo. "Todo mundo está adorando essa história", disse. "O Times é como o Vaticano: nunca mostra seus trabalhos internos."
Leia também