CARTILHA PARA FOCA
Cláudia Rodrigues (*)
A Companhia das Letras acaba de lançar no mercado o primeiro de uma coleção de livros sobre ética. É de Eugênio Bucci, jornalista e secretário editorial da Abril, e trata da ética na imprensa [veja remissão abaixo]. Deve ser bom, teoricamente. Discursar sobre ética virou mania nacional. Provavelmente seria mais eficaz, em termos práticos, um livro sobre antiética, um bom texto que nos contasse como funciona o padrão antiético estabelecido nos meios de comunicação. Já imaginaram que delícia saber sobre os bastidores das matérias, notícias e reportagens?
Nem precisaria um livro, já seria um grande passo se todas as matérias viessem com um adendo: como foi feita. Os leitores ficariam mais espertos e rapidamente mais exigentes. Mas deixemos a utopia de lado e vamos ao que interessa; como funciona o processo entre a apuração e o texto publicado.
Tudo começa assim: o jovem repórter inicia seu trabalho em uma redação e, pautado para cobrir o lançamento de um produto alimentício – daquele anunciante G –, descobre que um dos corantes utilizados é proibido na Europa por ser cancerígeno. Volta eufórico e apresenta a notícia, que derrubaria a matéria, ao editor. Ganhou seu chapéu de foca. Foca é toda criatura recém-formada que comete a ingenuidade de achar que informações profundas podem virar matéria. Quanto mais curioso, mais imbuído do que se chamava antigamente de espírito jornalístico, mais foca é o repórter. Se teimar em continuar nesse rumo, além de várias demissões. não perderá o título.
Das filtragens
O bom repórter necessita entender a linguagem do veículo para o qual trabalha, aproximar-se o máximo possível do texto do seu editor, virar um lambe-botas. Será promovido, ganhará mais e deverá repetir o feito com outro editor, em outro veículo. Não precisa e nem deve ser criativo. Os criativos são rebeldes, cheios de idéias novas, têm dificuldade para se enquadrar em padrões estabelecidos, teimam em escrever do jeito deles. O repórter ideal precisa ser bonzinho, funcionário exemplar; só assim consegue fazer a boa apuração já autocensurada da notícia. Precisa ser arguto, tentar adivinhar o que se enquadra ou não nos padrões estabelecidos. É necessário livrar-se de qualquer escorregadela que leve o editor a pensar que ele é ingênuo, como só um foca seria. Primeira filtragem.
Depois de alguns anos fazendo política de redações o repórter vira editor. É a vez da vingança. Sentindo-se traído por ter seus textos recortados, fará o mesmo com os dos outros e, ainda que sem motivos políticos ou lingüísticos para mexer e remexer nas palavras alheias, poderá sentir um inefável prazer em fazê-lo. Aí entra a singularidade da questão e, dependendo do caráter de quem vira editor e também da habilidade no manuseio da língua, encontra-se de tudo. Há os que implantam erros por malandragem, antipatia ou incompetência mesmo. Os que deixam passar errinhos, uma forma perversa de punição, e os que se esmeram em encontrar sinônimos e mudar frases de lugar – os mais pobres do ponto de vista psíquico. Ainda há os de imaginação fértil, colocam frases na boca do entrevistado e são a máxima representação da arrogância. Mas também temos os bons exemplos, raros, muito raros, de editores que respeitam o repórter, corrigem, perguntam, ouvem e explicam. Esses editores não param em redações por muito tempo, adoram cargos de repórter especial, fazem longas paradas para escrever livros, produzir filmes, respirar fora do eixo pasteurizado. Sorte de quem os encontra. Comenta-se que passam períodos em manicômios tentando entender a ficção da realidade.
O editor, mesmo quando é bom o suficiente, deve explicações ao chefe de reportagem, segunda filtragem, que por sua vez faz o mesmo em relação ao diretor de redação, terceira filtragem; esse último vive numa saia ainda mais justa entre os interesses dos anunciantes e os dos acionistas do veículo. Depois de tanto filtro chega-se à notícia: apertadinha, espremida, superficial.
As idéias do comercial
No meio dessa mixórdia surgem as reportagens cada vez menos comprometidas com problemas atuais e mais entusiasmadas com o passado histórico. Fala-se do holocausto mais do que das guerras de hoje, das injustiças sociais de duas, três décadas ou séculos atrás mais do que da estupidez social contemporânea. É que a brutalidade do presente tem tudo a ver com a massa de anunciantes. O que era para ser nota sobre o passado se transforma em extensas e boas reportagens, e o que era para ser reportagem longa e reflexiva vira notícia, notinha. Essa inversão de valores publicáveis é um soco na cara do leitor. Nocauteado, ele só vai entender a realidade daqui a 20 anos, quando a notícia insípida de hoje se transforma em matéria no futuro.
Para a informação sobreviver a essa tramóia toda, criou-se um sistema infalível: a monocultura dos textos. Por isso, quando compramos uma revista ou um jornal, embora muitas pessoas diferentes escrevam ali, os textos são iguais. Salvam-se os opinativos. Bem, nem sempre, nem tanto. Recentemente um colega que havia publicado um artigo foi comunicado, gentilmente, pelo chefe do departamento comercial, sobre o cancelamento de um anúncio devido à publicação do artigo. A pressão é vasta, atinge até os opinativos.
O sistema pasteurizado, de esterilização de textos, dá certo. Tudo está à venda, como diz um banner do Estadão na internet. Em muitos casos o setor comercial tem excelentes idéias de "matérias", acatadas com simpatia pelos elefantes do jornalismo, repassadas com sutileza às andorinhas, como sugestão de pauta. Seria interessante saber qual a porcentagem de "matérias", "reportagens" e "notícias" da mídia atual que se enquadram nesse exemplo. Infelizmente não temos esse número. Quem estaria interessado em tal pesquisa?
Afinal, o aprendizado
Mas vamos a uma sugestão de pauta banal, uma matéria de serviço, entendendo-se que seria de serviço ao leitor. Não estamos falando de informe publicitário, tarja que vem sumindo dos veículos por não dar retorno comercial. A boa publicidade, descobriu-se, é aquela que vem maquilada de notícia.
Enfim, o editor passa uma pauta sobre sex shops ao repórter e indica algumas fontes, de relance, como quem não quer nada, não ouviu nada, enfatiza uma loja, aquela que acabou de abrir. O repórter vai à rua imbuído do tal espírito jornalístico, coitado. Fica uma semana visitando lojas, fazendo perguntas a vendedores e compradores e lembra-se de dar um tempero à matéria; entrevista psicólogos, sociólogos, sexólogos, pesquisa livros de história do comportamento humano e faz um texto brilhante, reflexivo, que leva o leitor não a cair na compra desarvorada dos produtos, mas a questionar valores, repensar sua sexualidade, algo nato, talvez sem valor se desvinculado do amor. Matéria derrubada, o repórter é um idiota. Alguns dias mais tarde vê um press release em lugar da matéria. Usaram algumas informações que apurou, as mais banais, seu texto foi reduzido, esquartejado.
Aí o cara fica esperto, começa sua trajetória jornalística de morto-vivo, devasta o que poderia vir a ser a sua floresta de palavras e aprende a cultivar a gramínea das grandes editoras. Se sobrar um pouquinho de brio, o pobre não vira nem editor-assistente para ganhar um salariozinho melhor. Então ele passa a dar o máximo de si para sair de seus próprios pensamentos/sentimentos e alcançar o ideal de ver seu texto publicado na íntegra. Pega uma pauta fria, que sempre pode esquentar, nem chega a fazer entrevistas pessoalmente, apura por telefone, prossegue cegamente, quase faz uma pergunta mais profunda mas lembra-se de que fugiria da pauta, do tamanho estipulado para a matéria, e então agradece ao último entrevistado e patas nas teclas. O texto óbvio, boçal, politicamente correto, linguagem saltitante, feita para passar a mão na cabeça do leitor. O editor adora, para mostrar serviço troca ‘lindo’ por ‘belo’ e deixa passar sem maiores implicâncias. Afinal, o repórter aprendeu a escrever.
Três lições básicas
Mas a mídia impressa descobriu muito nos últimos anos. A primeira e mais importante das lições é a de que o leitor não tem paciência para ler textos compridos e precisamos dar tudo mastigadinho a ele. É assim que ele não cria dentes, deforma sua arcada literária.
A segunda lição é a de que o leitor adora novidade. Como a novidade é variação sobre os mesmos temas, dá-se um jeito de transformar o velho em novo, com um título que aguce a curiosidade da vítima. O leitor não se sente bobo, ele fica idiota e ainda vê o jornalista como um espécie de herói.
A terceira lição básica não tem a ver com os leitores, diretamente, mas é a mais importante no contexto interno de uma redação. Nossas produções singulares, os guapuruvus da Simone, as pitangueiras do Ronaldo, as margaridas da Elisa, os ipês do Genaro, nada têm a acrescentar, são ervas daninhas que precisam ser arrancadas com fúria para esterilizar as páginas e cultivar ali uma única cultura de palavras. Isso é pasteurização.
E o que sobra para um Bucci, por exemplo, o cara que deve traçar uma linha editorial ética? Escrever um livro, ora pencas. Filosofar sobre o problema.
(*) Jornalista
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