OFJOR CI?NCIA
OfJor Ciência 2000 ? Oficina OnLine de Jornalismo Científico é uma iniciativa do Observatório da Imprensa, Labjor e Uniemp.
PSDB E HISTÓRIA
Ulisses Capozoli (*)
Efeito gregoriano, a menos que ocorra alguma catástrofe ? dependendo da região em que aconteça, claro ? o noticiário da imprensa no início do ano costuma ser previsível. Matérias "frias", produzidas com antecedência, férias, efeitos do verão, balanço do período que passou etc. Previsível, como a expectativa de que o Sol nascerá amanhã, como acontece há 5 bilhões de anos.
Mas sempre existem surpresas. Este ano uma delas certamente foi a informação trazida pela Folha de S. Paulo (08/01) de que o partido do presidente da República, o PSDB, está preparando uma coleção, de 15 volumes, destinada a recontar a história do Brasil.
Surpresa, dependendo do leitor. Para jornalistas menos formatados, é um assunto "morno", que, tratado com certo exotismo, "esquenta" um pouco a edição.
A idéia, segundo o historiador responsável pelas obras, Marco Antonio Villa, é desmistificar temas e personagens, caso, segundo ele, da proclamação da República e de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes.
Até aí, nada absolutamente de novo. O descobrimento do Brasil já é um ponto de partida para enganos e interpretações equivocadas. O descobrimento foi "intencional", ou "acidental"? Cabral passou por aqui apenas para registrar a descoberta, feita anteriormente, ou de fato encontrou as terras brasileiras?
Pouca gente séria discorda de que Cabral, um desconhecido antes e depois de sua viagem, realmente descobriu o Brasil. Para compreender esses acontecimentos basta considerar que a primeira viagem que os portugueses realizaram, após a conquista da Cabo das Tormentas por Bartolomeu Dias (ironicamente, ele integrava a frota de Cabral e morreu num naufrágio a caminho da Índia, saindo do Brasil), foi feita só nove anos depois, por Vasco da Gama.
O que os portugueses, ansiosos para chegar à Índia, fizeram nesse intervalo de tempo? Se não ficaram jogando dominó na praia, a resposta dos intencionalistas é que navegaram cada vez mais para o Oeste, mergulhando sob a África para evitar condições desfavoráveis de navegação. Nesse desvio para Ocidente, teriam encontrado terras brasileiras. E o homem que fez isso talvez tenha sido Duarte Pacheco Pereira.
Pacheco Pereira participou das negociações do Tratado de Tordesilhas, mais uma evidência de que os portugueses sabiam mais que os espanhóis. Foi uma das maiores personalidades científicas em Portugal nessa época. Outra evidência adicional, considerada por Jaime Cortesão, seria a existência de um degredado, o bacharel de Cananéia, confinado, já em 1499, nessa ilha do litoral de São Paulo.
Toda a confusão envolvendo o descobrimento do Brasil deve-se à política de sigilo adotada por Portugal. Essa era uma forma de se compensar, entre outras desvantagens, a inferioridade de população. Na primeira metade do século 15, segundo o historiador inglês Charles Boxer, Portugal tinha perto de 1,1 milhão de habitantes contra 7 milhões da Espanha.
Isso posto, a pergunta que se faz é: por que noticiário como esse, envolvendo uma revisão da história e que deveria estimular os leitores a uma reflexão mínima sobre o país (500 anos de descobrimento no ano passado, passagem de século, de milênio etc) tem tratamento anódino, com o exotismo de uma queda de braço entre Eurico Miranda ou ACM com qualquer um de seus inúmeros desafetos?
A resposta parece simples. A imprensa brasileira, submetida inteiramente aos princípios do neoliberalismo, se recusa a pensar e a observar a realidade. Faz parte dessa submissão, por interesses variados, não produzir um crítica mais consistente que é, em última análise, obrigação formal da imprensa.
Na edição de 16/01, Villa voltou à Folha de S. Paulo, agora na seção de "Tendências e Debates", para se defender de críticas que julgou improcedentes feitas pelo deputado Aldo Rebelo. Não é o caso de retomar a briga. Mas um historiador que, em entrevista à imprensa, chama um ex-presidente de "banana" e o responsabiliza pessoalmente pelos acontecimentos de 1964 ? como Villa fez com João Goulart ? é para ser levado à sério? Na refutação a Rebelo, Villa diz que "a história é um processo em construção permanente, produto de múltiplas leituras e interpretações".
E a física, a química, ou a biologia e todos os outros acontecimentos do mundo, também não são assim? O que é mais correto, a física de Newton ou Einstein? Ou esta, também, como a história, é uma questão de interpretação no interior de um determinado contexto histórico?
Quantas vezes o Brasil mudou o nome de sua moeda, apenas na segunda metade deste século? É concebível, em países desenvolvidos, mudar o nome da moeda como se fosse uma alteração qualquer?
Por que a imprensa não se posiciona criticamente nesses casos, limitando-se a publicar a história com distanciamento aparentemente responsável?
Uma resposta possível é por não se comprometer, por se recusar a mergulhar mais fundo e oferecer a seus leitores bom material de reflexão. Além disso, é preciso ter repórteres com melhor formação e essa condição está intimamente relacionada a uma certa autonomia de trabalho, algo que as relações autoritárias mantidas no interior das redações não permite que aconteça neste momento.
Para onde foram os bons repórteres? Eles não existem mais? Os bons repórteres existem, mas para que eles se revelem, é preciso que a mentalidade nas redações seja modificada.
Historiadores e filósofos da ciência como o inglês John Desmond Bernal asseguram que a imprensa e os canhões foram dois dos principais demolidores da Idade Média. Os canhões, com o refinamento da pólvora feito com os recursos da alquimia, como então a química era conhecida, tornaram vulneráveis as antigas fortificações do poder.
A imprensa demoliu a velha ordem, especialmente pela publicação, a preços muito baixos, de ensinamentos que até então eram repassados por mestres no interior das guildas, as antigas corporações de artesãos.
Mas nada é eterno. Nem mesmo o Universo, ao menos na constituição que conhecemos, segundo a cosmologia em voga. A internet empurra a imprensa escrita para o muro. Se iniciativas inovadoras não surgirem, certamente as idéias novas ficarão perdidas por um tempo imprevisível, até serem encontradas e endereçadas à sociedade. E, no caso do Brasil, por razões históricas que certamente não serão removidas pela leitura revisionista do PSDB, já se perdeu tempo demais.
(*) Ulisses Capozoli, jornalista especializado em divulgação de ciência é historiador da ciência e presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC)
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