CONTÁGIO DAS FRAUDES
Wellington Zangari (*)
Não tenho qualquer pretensão de avaliar o ponto fulcral da discussão apresentada por Muniz Sodré no artigo que ora tomo para análise [veja remissão abaixo]. Por não ser jornalista, não julgo ter habilitação para apresentar argumentos a respeito da existência ou não de ocultas intenções em programas jornalísticos. Como psicólogo, julgo que estas podem existir em qualquer área de atuação humana e, concordando com o autor quanto a essa virtual ou concreta possibilidade, nada teria a acrescentar nesse tocante. Os comentários que faço abaixo são motivados por uma tentativa de reflexão bastante mais concreta do que a realizada pelo autor e circunstanciados no episódio por ele discutido. Meu objetivo principal é o de apresentar elementos ocultos no discurso do próprio jornalista que, ao analisar as intenções de um determinado quadro televisivo, faz revelar suas próprias intenções, desejos e… limites. Tais limites são esperados. Somos todos humanos! Mas, quais as conseqüências da apresentação dos limites do jornalista para o trabalho jornalístico? Que essa discussão possa inspirar respostas para essa pergunta.
Anos atrás li com atenção o livro de Muniz Sodré Jogos extremos do espírito (Editora Mauad, 1994), afinal tratava-se de um conhecido intelectual a falar de um tema de pouca penetração acadêmica e sobre o qual tenho estado ligado em meu trabalho de pesquisa acadêmica. Ao terminar de lê-lo tive a impressão de que Sodré havia discutido brilhantemente o tema, mas estava fundamentado em dados mais do que frágeis: observações de produções de supostos fenômenos parapsicológicos, sobretudo os produzidos por Thomaz Green Morton, o "Homem do Rá".
Após a série de reportagens a respeito desses "poderes" pelo Fantástico, fiquei a meditar a respeito de como estariam se sentindo aqueles que, como Sodré, defenderam e continuam a defender Thomaz Green Morton como legítimo "atrator de fenômenos intrigantes". Creio que o artigo ora comentado oferece pistas a respeito. Sodré parece se recusar a certas evidências. A recusa se apresenta de maneira clara pela série de equívocos (limites) cometidos pelo jornalista, que procuro comentar abaixo. Como um dos especialistas tanto em Arte Mágica quanto na pesquisa científica de experiências psicológicas anômalas convidados pela produção do Fantástico para participar do quadro em questão, sinto-me à vontade para falar "desde dentro" da situação ora discutida e, ao mesmo tempo, "desde fora" do ambiente jornalístico, como pesquisador da área. Mas vamos ao que considero equívocos do autor.
É evidente que chamar insistentemente de James Randal (como apareceu na versão original do artigo de Sodré, corrigido do dia 14 para o dia 15 de agosto) a James Randi, o conhecido mágico e cético canadense naturalizado americano, não representa, necessariamente, desconhecimento do meio em questão por parte do autor. Também não deve significar imediatamente desatenção ao material a que se pretende questionar. Serão lapsos humanos esperados, curiosos invasores dos poderes nada obscuros de nossa mente mais profunda. Simples parapraxias, diria o mesmo Freud citado pelo autor estrategicamente com a finalidade de situar os fenômenos "inquietantemente estranhos" para além do conhecimento do senso comum. Interessam-me mais os equívocos de outra ordem, da ordem da recusa.
Já no fim do primeiro parágrafo, Sodré afirma: "Na expectativa do encontro final entre Randal e Morton, mágicos profissionais demonstravam os muitos modos de se produzir fraudes." O escritor parece negar ? ou o que seria mais grave, desqualificar ? a presença no quadro de especialistas no estudo científico da "paranormalidade". Parece negar, ainda, o mais óbvio: que esses especialistas estiveram com Morton e apresentaram os resultados de suas observações e estudos não dos "muitos modos de se produzir fraudes", mas de como, especificamente, Morton teria fraudado. É absolutamente distinto afirmar "muitos modos de se produzir fraudes" que "o modo pelo qual Morton teria fraudado em determinada circunstância". Além dos testemunhos, cenas das "performances" de Morton foram apresentadas e comentadas por um mágico, demonstrando como aqueles efeitos teriam sido fraudulentamente obtidos nas situações mostradas.
No parágrafo seguinte encontramos a segunda das razões que o autor buscou para considerar o episódio jornalisticamente interessante: "Pode-se colocar a pergunta sobre que possibilidades tem um meio de comunicação apoiado no senso comum de lidar com fenômenos há muito tempo designados por Sigmund Freud como Unheimlich, algo como ?inquietantemente estranhos?". Ora, se havia a presença de especialistas fundamentando suas posições em observações sistemáticas realizadas com Morton, como pode Sodré afirmar que o Fantástico teria se apoiado no senso comum? Estaria, mais uma vez, o autor negando ou desqualificando os pesquisadores em questão, presumindo serem eles (nós) menos cientistas representantes do senso comum? Se for assim, deveríamos nos perguntar a quem caberia atribuir tais diferenciações. Ao jornalista?
Mais à frente, após discutir o papel do "quadro", afirma: "Frente a um quadro espírita, católico ou evangélico, e diante de fenômenos como espíritos elevados, milagres de santos ou incorporações do Espírito Santo, a posição jornalística não tem o mesmo ímpeto desmistificador revelado no âmbito de quadros socialmente não-hegemônicos." Se por um lado tenho que concordar com o autor, uma vez que reconheço o poder das hegemonias sobre os meios de comunicação, por outro, devo dizer que Morton poderia simplesmente não ter aceitado participar do referido desafio, e o Fantástico não poderia "desmistificá-lo". Mais do que isso, o "Homem do Rá" poderia ter se submetido ao estudo, conforme havia prometido, e demonstrado seus "poderes". Morton simplesmente não cumpriu sua promessa. Promessa, aliás, feita por ele no mesmo Fantástico que agora é acusado de desmistificá-lo fraudulentamente! Assim, por que culpabilizar o programa por um ato cuja responsabilidade coube a Morton?
Em meio às afirmações do autor surge uma absolutamente inesperada que merece, no mínimo, atenção redobrada. No seu afã de sustentar a existência de obscuros interesses por trás do que chamou de "desmistificação fraudulenta", cita Houdini como exemplo de alguém que teria fraudado as provas contra os médiuns. Meu modesto conhecimento da história da Arte Mágica não me permite avaliar tal acusação. No entanto, tão grave alegação mereceu uma série de consultas a mágicos mais bem preparados nesse particular, e o retorno à leitura das obras de Houdini, seus biógrafos e comentadores. Nada do que li e nenhum dos especialistas consultados pôde me confirmar a pretensão de Sodré.
Paixões humanas, desejos obscuros
Ao contrário, confirmando minha lembrança inicial, encontrei escritos do prestigioso ilusionista em que explicitamente nega a ação paranormal dos médiuns que pessoalmente observou, sem nunca ter afirmado qualquer fraude por parte dele na tentativa de desmistificá-los fraudulentamente. (Exemplos: Houdini, H., Miracle Mongers and Their Methods: A Complete Exposé, New York, E.P. Dutton, 1920, reimpresso, com um prefácio de James Randi, pela Buffalo, N.Y., Prometheus Books, 1981; Houdini, H., A Magician Among Spirits, New York, Harper, 1924) Frente à dúvida, a posição humilde cai bem. Solicitaria, portanto, que o autor apresentasse a referência do trabalho em que o referido artista teria afirmado ter fraudado provas contra médiuns/paranormais.
Sodré, então, menciona uma "guerrilha contra a parapsicologia e seus objetos teóricos" não-explicitada pelo Fantástico. Concordamos, tal guerrilha contra a parapsicologia existe, de fato, encarnada pelo Committee for the Scientific Investigation of Claims of Paranormal (CSICOP), que tem no Skeptical Inquirer o órgão de divulgação de suas idéias ? e pelos seus despreparados seguidores tupiniquins. São dogmáticos, travestidos de "céticos", que nada investigam e tudo negam de maneira apriorística. Por outro lado, Sodré não menciona a existência de possíveis interesses (por exemplo, religiosos e econômicos) por trás da tentativa de fazer com que os "fenômenos paranormais" de Thomaz Green Morton sejam aceitos sem qualquer avaliação científica. Negar ou afirmar a realidade de qualquer alegação paranormal sem base empírica é recair no mesmo equívoco científico. A ciência detém meios bastante eficazes de avaliação deste tipo de anomalia. Basta que os que se intitulam "paranormais" se deixem investigar e que aqueles que neles depositam crédito não critiquem as tentativas de avaliação científica de seus "gurus" intocáveis. Defendo, portanto, uma avaliação isenta das alegações do paranormal. Considero-as, aliás, objeto legítimo da ciência. Temos que afastar extremismos de parte a parte, dos dogmáticos, que tudo negam aprioristicamente, e dos "paranormófilos", que tudo aceitam sem qualquer crítica.
Chegamos à análise do derradeiro parágrafo do artigo de Sodré, onde encontramos, talvez, o maior equívoco do autor. Após declarar-se crente nos "poderes" de Morton, oferece uma justificativa para que a "paranormalidade" do Homem do Rá não tenha se manifestado: "Arrancado de seu contexto, isto é, do quadro local e perceptivo (os riachos, os minerais, os raios do interior de Minas) onde normalmente desenvolve as suas atividades, arrisca-se a façanhas para manter a onipotência de uma identidade e vê esmaecer-se o vigor de sua fala." Bem, lembro ao jornalista que Morton não sairia de seu "contexto", uma vez que Randi aceitou sua exigência de vir ao Brasil, onde o teste seria realizado. Em segundo lugar, se esse fosse o problema, Morton não deveria ter aceitado o desafio. Em terceiro lugar, após recusar-se a aceitar participar do desafio, foi Morton sair de seu habitat e ir para a frente da Fundação Educacional James Randi e "produzir" perfumes pelas mãos, deixando-o por toda a fachada. Se arrancado de seu contexto bucólico nada aconteceria, por que aconteceu? Mas, por que Morton não esperou a presença de Randi para "manifestar" seus "poderes"?
Talvez Muniz Sodré queira ver a "inquietante estranheza do real" onde há apenas ficção. Talvez o jornalista queira nos convidar a refletir a respeito do papel do jornalista e de sua possibilidade de destruir ou absolver a miséria humana, seja por meio de um quadro jornalístico, seja por meio de uma crítica feita a ele. Talvez o escritor queira nos oferecer um meio de refletir a respeito de quão humanas são nossas paixões. Talvez o professor queira nos ensinar quão simples e obscuros sejam nossos desejos.
(*) Psicólogo, coordenador do Inter Psi ? Grupo de Estudo de Semiótica, Interconectividade e Consciência do Centro de Estudos Peirceanos/Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP (www.interpsi.cjb.net); interpsi@mail.ru
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