Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Eles se recusam a morrer

DOCUMENTÁRIOS

Antônio Brasil (*)

Apesar de uma "morte anunciada", os bons documentários de televisão estão de volta. Como num milagre, parece que nossas preces foram ouvidas. Ou lidas.

Em janeiro, escrevi aqui um artigo meio saudosista e em tom pessoal [veja remissão abaixo] que lembrava lembrando aos mais jovens sobre os bons tempos do Globo Repórter. Muitos ficaram surpresos em saber que aquele programa tão formal e previsível de hoje já tinha sido revolucionário e ousado em termos de linguagem e conteúdo televisivos. Naquela ocasião, procurei enfatizar que, apesar das enormes dificuldades com a ditadura e com a própria Globo, alguns jovens cineastas aproveitaram a oportunidade, invadiram a nossa televisão e fizeram história. Produziram o que é até hoje considerado um dos melhores momentos do telejornalismo brasileiro. Para quem não sabe, documentário na TV também faz parte do segmento telejornalístico e tradicionalmente costuma dar muito prestígio e audiência às emissoras.

Hoje os documentários para televisão estão exilados ou restritos aos caríssimos, pouco vistos e quase falidos canais de TV por assinatura. Mas para os apaixonados pela produção não-ficcional, estas semanas costumam ser ansiosamente aguardadas e são, certamente, muito especiais. Assim como nos últimos sete anos, teve início 12/4 e prossegue até o dia 28, em São Paulo e no Rio de Janeiro, mais uma edição do festival "É tudo verdade", promovido pelo Centro Cultural Banco do Brasil com os melhores documentários do Brasil e do mundo. Além de uma profusão inédita de excelentes filmes produzidos no Brasil por gente muito nova, a grande surpresa e alegria ainda maior fica por conta dos homenageados do festival deste ano: os filmes e os diretores da fase de ouro do Globo Shell e do Globo Repórter, responsáveis por alguns dos melhores documentários já produzidos no país.

O próprio título do festival é um compromisso sério e caro para todos os que apreciamos o bom jornalismo ou o cinema documentário de qualidade. A verdade, principalmente em tempos de crise, atentados e guerras, é uma presa fácil de interesses militares, econômicos e políticos vorazes. Amir Labaki, idealizador e organizador da mostra, descreve assim a temática principal do festival deste ano: "O mundo das imagens e as imagens do mundo foram indelevelmente marcados pelo ataque terrorista em 11 de setembro passado nos EUA. A simultaneidade da informação audiovisual foi transformada em arma do terror. O desleixo com a cobertura internacional revelou-se cúmplice involuntário da barbárie".

Lucro fácil

Os filmes documentários, com sua tradição centenária de independência e mobilização política, não poderiam ficar indiferentes aos acontecimentos da nossa época. Mas considerando o momento tão dramático por que passa atualmente nossa televisão, alvo fácil de críticas ferozes, a homenagem dos organizadores aos velhos cineastas heróis da nossa TV não poderia ter vindo em melhor época. O meio, sem dúvida, já foi melhor. Apesar de continuar a ser importante e onipresente em nossas vidas, a TV hoje sofre de várias doenças. A crítica tem diagnosticado com insistência algumas delas, mas uma das mais graves é a "amnésia crônica". A televisão brasileira não tem memória. Apesar de possuir arquivos repletos de preciosidades, como os velhos filmes do Globo Repórter, eles são inacessíveis à maioria dos telespectadores. Apesar da internet e das possibilidades da digitalização de imagens, assistir aos bons programas de televisão é tarefa árdua limitada a alguns poucos pesquisadores persistentes. O cinema, ao contrário, cria a cada dia novos acessos para seus preciosos acervos; a TV, de seu lado, parece ter vergonha de si e do seu passado.

Por essa e outras razões é que se deve ressaltar a importância dessa homenagem. Nos próximos dias teremos a oportunidade de rever filmes históricos como Os índios Kanela, de Walter Lima Júnior, uma insólita incursão no sagrado mundo dos filmes etnográficos por parte de um dos nossos melhores contadores de histórias. Ver os índios se revezarem numa emocionante corrida de toras, que termina sempre num empate técnico, é um raro casamento entre o melhor da qualidade cinematográfica aliada ao poder do meio televisivo. A mostra também contempla obras pioneiras de Eduardo Coutinho, um dos nossos maiores documentaristas, que está presente com as velhas aventuras dos coronéis nordestinos em Theodorico, o imperador do sertão ou preciosos testemunhos da história recente como Exu, uma tragédia sertaneja.

O festival é uma oportunidade para ouvir e reverenciar esses profissionais importantes do cinema que tanto contribuíram para o sucesso da televisão, que estarão presentes em debates abertos ao público. Para muitos participantes será o primeiro contato com uma televisão que acreditava que reality show não é voyeurismo inconseqüente de Big Brother Brasil ou de Casa dos Artistas. Para a televisão do Brasil de hoje, certamente realidade virou misto de noticiário e novela onde nem tudo o que se vê é necessariamente verdade.

Exemplos como alguns bons programas da série do Globo Repórter comprovam que não existe nada de errado com a televisão. É mais um eficiente meio de comunicação de massa em busca de um bom conteúdo. Por enquanto, assim como a nossa educação superior, está à mercê de alguns oportunistas ambiciosos que perceberam o seu enorme potencial tanto para o bem como para o mal. Entre o lucro fácil da audiência a qualquer custo com muitas baixarias e o caminho árduo da construção de uma programação voltada para a informação e para formação de um público consciente dos seus deveres e direitos, a TV aberta brasileira continua insistindo no atalho da mediocridade. A sociedade, por outro lado, ainda não consegue se organizar para cobrar mais responsabilidade de uma concessão pública. O país assiste a tudo na TV mas, indiferente, não se entusiasma ou aplaude.

Volta às origens

Bons documentários na TV são sempre perigosos. Costumam criar um espírito crítico e combativo no público ao aprofundar questões atuais e relevantes para a sociedade. É sempre mais fácil utilizar da linguagem dos filmes de não-ficção e falar dos problemas do mico-leão-dourado ou da estética desvairada da juventude. Curiosidades inocentes e distantes nos surpreendem e rendem audiência. O importante é não arriscar jamais. A passividade do público é constantemente avaliada pelas pesquisas e cuidadosamente preservada pela mesmice da programação. Quem a tudo assiste, consome muito e pensa pouco.

Bons documentários fazem pensar. Ao contrário dos telejornais, foram produzidos para que todos possam refletir sobre os fatos. Ao aprofundar os temas mais importantes, servem para que as notícias não nos confundam. A inundação diária de dose industriais de informações desconexas e contraditórias apresentadas nos noticiários de forma frenética tendem a causar um efeito pernicioso de incompreensão, desinteresse e indiferença na maioria dos telespectadores. Para que tantas notícias se nada compreendemos?

Programas como o velho Globo Repórter procuravam fazer as conexões da nossa história recente e com nossas raízes culturais. Sempre numa linguagem criativa e extremamente comunicativa, com um pé no cinema e outro na TV, sem desprezos ou rivalidades, o sucesso era mesmo inevitável. O programa tinha na sua audiência fiel uma comprovação de que o público apreciava e prestigiava a qualidade do programa. O investimento na qualidade e na experimentação constante de um trabalho autoral desafiava as tendências ditadas pelas pesquisas. Mas o seu sucesso começou a incomodar a alguns e a despertar o interesse de outros. O fim era previsível, não resistiu ao sucesso ou à democracia de mercado.

Agora, longe do grande público da televisão mas próximos de uma nova geração de jovens curiosos que freqüentam festivais, os documentários de TV pedem mais uma vez a palavra. Insistem ainda em mostrar nossa realidade e nossos problemas que infelizmente continuam os mesmos. Os bons documentários de TV voltam às suas origens nas telas do cinema, recebem homenagens da crítica e se recusam a morrer.

(*) Jornalista, coordenador do laboratório de TV, professor de Telejornalismo e doutorando em Ciência da Informação pelo convênio IBICT/UFRJ

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