OI, SEIS ANOS
Nilson Lage (*)
Na sexta-feira, 3 de maio, à noite, disse a uma turma de alunos de pós-graduação que a livre informação estava agora, no Brasil, mais ameaçada do que em qualquer outro momento de nossa história, nos últimos 150 anos. Um dos colegas que assistiam à aula achou a afirmação muito forte. E é. No entanto, creio que se justifica.
No passado, os episódios de censura que tivemos ? os estados de sítio da velha República, o mecenato do DIP no Estado Novo, a autocensura sob os governos militares, a pressão econômica e política todo tempo ? foram sempre considerados ilegítimos, inaceitáveis, antidemocráticos ou excepcionais.
As novas formas de controle, no entanto, são mais sutis, mais competentes e julgadas pela maioria ? até por muitos jornalistas ? como normais, necessárias e benéficas para a sociedade.
É o caso da transformação no mecanismo de reparação por danos causados pela veiculação de notícias consideradas falsas e ofensivas a alguém: antes, prevaleciam as figuras do Código Penal (injúria, calúnia, difamação); agora, aplicam-se de preferência as do Código Civil.
Isto significa que, no passado, além de nos retratarmos, o que é justíssimo, corríamos o risco de prisão ? coisa odiosa, certamente. Agora, a retratação é a mesma, mas quem está sob ameaça é a empresa jornalística, não somos nós; e as multas, ao arbítrio do juiz, dependem muito mais de fatores subjetivos do que de qualquer critério estabelecido.
Tal mudança corresponde à americanização de nosso Direito e, mais que isso, à adoção de mecanismo coercitivo testado amplamente em Cingapura, ditadura empresarial onde tudo ? desde cuspir no chão até quebrar a cara do guarda ? tem custo pecuniário. O bolso é o órgão mais sensível do ser humano, dizem os defensores do método.
Advogados percorrem as páginas dos diários e gravam em fita programas de televisão em busca de algo que possa motivar uma ação reparatória, lucrativa tanto para a vítima quanto para eles. É a versão contemporânea da tradicional advocacia de porta de xadrez.
O lado sombrio dessa novidade é a redução da autonomia de quem produz a informação, com a transferência da responsabilidade para o veículo como empreendimento financeiro; a eliminação, na prática, da figura do "redator-responsável", que é substituído pelo "tesoureiro-responsável". A conseqüência única possível é subordinar o setor produtivo do veículo ? a redação ? a controles de conteúdo que serão crescentemente ampliados pela empresa, até o nível da escolha de ângulos e palavras. Isso é muito perigoso.
Outro aspecto: uma Folha de S.Paulo, uma Rede Globo, uma Editora Abril, um Estado de S.Paulo são players de peso no jogo político; têm recursos para manter eficazes assessorias jurídicas e depositar as quantias cobradas na primeira instâacirc;ncia até o julgamento dos tribunais superiores. Aí, comprovado o exagero, a má-fé, o bairrismo ou o corporativismo do juiz singular, poderão obter plena reparação ao ser prolatada a sentença irrecorrível.
Não é o caso do jornalismo regional e local. Quanto mais honesto o veículo, menos comprometido com os poderes locais, mais estará sujeito a condenações indevidas ou exageradas. Forçada a contratar advogados caros para recorrer a instâncias nas capitais e a depositar o valor da reparação, a empresa perderá provavelmente, de imediato, crédito junto a bancos e fornecedores. Nessas circunstâncias, dificilmente sobreviverá.
Ora, interiorizar o jornalismo, fazer com que a informação razoavelmente confiável deixe de ser apenas algo que provém do Rio e São Paulo, é tarefa urgente no Brasil. À falta de profissionais competentes soma-se a leis equivocadas ? como a que obriga prefeituras a publicar anúncios oficiais em veículos editados no município ? para favorecer a existência de falsas publicações, de tiragem ou alcance mínimos, sem qualquer conteúdo informativo, ou então meros boletins de propaganda política.
A tecnologia ? a facilidade com que, na era dos computadores, pode-se simular vida inteligente apenas copiando e colando ? agrava a questão, na medida em que pode dar aparência de produto jornalístico ao que é, na verdade, mero clipping a serviço da picaretagem.
Dimensões diversas
A decisão judicial que susta liminarmente a exigência de formação universitária específica para os jornalistas insere-se nesse quadro. Ela favorece mecanismos tradicionais de proteção das estruturas de corrupção local que, em última instância, sustentam as oligarquias. Sua face aparentemente liberal e democrática lembra outra lei estranha, essa nos Estados Unidos, onde, em nome dos "direitos humanos", foi proibida a divulgação dos nomes ou imagens de vítimas em crimes ou acidentes antes da comunicação à família. Por isso, quando houve o atentado ao World Trade Center, as pessoas saíram de hospital em hospital, de necrotério em necrotério, em busca de parentes que talvez estivessem nas duas torres. Tornados inúteis os jornais, rádio e televisão, muita gente foi obrigada a colar retratos nas paredes na busca dos desaparecidos.
Mas o processo não termina aí. Em outra frente, setores identificados como progressistas defendem o "controle social da imprensa". Quando se alega que não é próprio das sociedades controlar coisa alguma ? alguém exercerá o controle em nome delas, e aí está a questão ?, respondem invocando a "sociedade organizada", isto é, eles próprios.
Costurando todo esse conjunto de discursos de demonização do jornalismo está a sempre renovada "teoria da agulha de injeção", que alguns sábios pernósticos chamam de "teoria hipodérmica": a mídia injetaria nas pessoas um veneno contra o qual elas não têm defesa. Essa crença, apresentada de várias formas, da extrema-direita à ultra-extrema-esquerda, difundiu-se nos meios acadêmicos e, destes, a profissionais de várias habilitações (como os juízes, por exemplo), embora desmentida por décadas de pesquisa científica.
Como se explica isso? Primeiro, porque é preciso achar um culpado pelas más notícias e o mais evidente é o mensageiro que as traz; segundo, porque, entre muitas explicações complicadas, culpar a mídia é a que exige menos reflexão e tem maior abrangência; terceiro, porque, numa época em que todos buscam seus minutinhos de glória, aparecer no expediente de uma revista, assinar uma reportagem ou mostrar-se na televisão é algo que sugere poder e prestígio. Os jornalistas, sabedores das limitações da profissão e dispostos a aceitar críticas ou assumir culpas, não souberam defender-se e, em muitos casos, deixaram-se levar por intelectuais ressentidos, saudosos do tempo em que eles, com sua linguagem rebuscada, ditavam os rumos à sociedade ? com freqüência, de maneira absolutamente irresponsável. O domínio desses intelectuais em "cursos de comunicação" reflete essa tolerância, pela qual estamos agora pagando.
Controlar abusos do jornalismo envolve competência específica que segmentos políticos não possuem ? tanto que não conseguem ter um veículo próprio, um sítio sequer na internet, sem que isso provoque tremendos conflitos ideológicos na militância. E é nesse quadro que devemos saudar os múltiplos aniversários que o Observatório de Imprensa está comemorando: ele é um exemplo do que é possível fazer para formular críticas eventualmente contundentes, mas informadas, sobre a atuação dos veículos jornalísticos.
O Observatório, sendo feito por gente do ramo, sabe que o jornalismo é uma atividade de múltiplas dimensões, que veicula fatos e idéias de seu tempo. É instrumento político, mas não só. É também fator de cultura, espaço de conflitos, forma de conhecimento e de difusão dos discursos (científicos, filosóficos, jurídicos) de cada época.
Aí está a importância do Observatório, como pioneiro de uma atividade ? a crítica abalizada da mídia ? que é preciso prestigiar e difundir.
(*) Jornalista, professor-titular da Universidade Federal de Santa Catarina, autor de A reportagem: teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística e outros