ELEIÇÕES 2002
Fátima Oliveira (*)
"O Brasil quer ?essa coisa de mulher?"
"Estamos escolhendo o presidente do Brasil, e não a Miss Brasil 2002"
"A candidatura de Roseana é um ?balão de ensaio? e não passa de uma ?jogada? para ela garantir o lugar de vice"
É ver essas declarações na mídia. Mas nunca tive dúvida: Roseana Sarney não estava "brincando de casinha". Sou da mesma geração da governadora, embora de origem e caminhos distintos. Sou negra, maranhense do médio sertão, sobrevivente do tétano neonatal, uma "sem-pediatra", como até hoje, quase meio século depois, há milhares de crianças no Maranhão e pouquíssimas poderão dizer como eu: sobrevivi. A primeira vez que vi um pediatra deve ter sido quando estudante de Medicina. Há um fosso de classe e uma clivagem racial entre nós.
Isto é, jamais pertencemos à mesma "turma".
Aprendi que a família Sarney quando quer vai; quando lhe é conveniente, manda; e quem pode e manda chega a qualquer lugar, que o instinto de preservação do clã é incomensurável, o fôlego de sobrevivência política da família é imenso. E que a governadora também paga um pesado tributo de gênero por ser, da prole de três do patriarca, a única mulher, mas que foi ungida por ele para ser a grande política do clã. É explícito que há um entrevero familiar, ainda que debaixo de "sete capas". O que significa que ela não pode se dar ao prazer de recuar diante de nenhum dos desafios postos no campo da política.
Mulher que entra na política tendo como base o poder ancestral, especificamente o patriarcal, vai a qualquer canto "em nome do pai" e do clã. A força que a move tem origem nas decorrências da opressão de gênero na vida familiar. Quem sabe o que é isso reconhece que pode destruir montanhas. Além do que, no caso em tela, há o reforço do patriarca que, mesmo no outono da vida, ainda é um "marimbondo de fogo" e conhece, como poucos, o "Norte das águas"… Tudo junto representa uma força política considerável. Mas o que causou espanto foi a ingenuidade generalizada da imprensa. E sobretudo a dos políticos e seus marqueteiros, que não levaram em conta tal realidade!
Ela não pode ser SIMPLESMENTE ROSEANA, como tenta exaustivamente. Sempre foi, e ainda é, Roseana Sarney, pois não rompeu com seu clã e não chegou ao poder em esquema de mérito pessoal e de propostas avançadas em sintonia com demandas e reivindicações das causas populares e dos movimentos sociais, dentre eles o de mulheres. Ela é uma mulher das classes dominantes, que jamais traiu a sua classe e é improvável que o faça agora, pois sempre esteve a seu serviço. Não podemos culpá-la sozinha pelo fato de o Maranhão ser o menor PIB do país, mas chegamos onde estamos com a contribuição decisiva de cerca de três décadas sob a batuta dos Sarney. É inegável que é uma oligarquia "modernosa", cuja riqueza não é oriunda dos antigos latifúndios, mas oficialmente vem de parques gráficos e de todos os meios de comunicação.
Nó a deslindar
Apesar de tal atenuante, Roseana não pode ser desresponsabilizada da parte que lhe cabe no "moderno latifúndio". Os Sarney estão cada dia mais ricos e o Maranhão cada vez mais pobre, pobre… Como ela não tem nada a ver com tanta miséria, inclusive a nacional?
Condenáveis subestimações estereotipadas, preconceitos e discriminações, vindas da mídia grega e troiana, deram a tônica da aparição da governadora como pretensa presidenciável. Mas, quem pagou para ver está sentindo até na alma que a fatura do machismo é alta. A candidatura dela foi achincalhada tão-somente porque foi considerada "coisa de mulher"… o que demonstra que a maioria dos políticos brasileiros, assim como a mídia tradicional, menospreza a condição feminina e acredita no conto da mulher universal. Ledo engano e fruto dele a candidata caiu no "gosto popular"!
Agora estão, todos, correndo atrás do prejuízo e ainda dizem, despudoradamente, que pesquisa de intenção de voto não vale nada! Bem, pode não valer, e significar a mesma coisa daqui a um ano e meio, já que as pesquisas retratam momentos. Todavia, a situação atual está bem refletida nas pesquisas e demonstram que Roseana é uma concorrente de peso. E que 61% de suas intenções de voto vêm de mulheres que acreditam piamente que eleger uma mulher, qualquer uma, para a Presidência da República poderá significar que todas nós seremos "empoderadas", como num passe de mágica. O legítimo desejo da presidenciável de voltar para casa, o Palácio do Planalto, e lavar a honra do pai, que saiu de lá "em baixa", não pode ser confundido com o desejo das mulheres, ou que se trate de pleito de todas as brasileiras, pois não representa uma "candidatura das mulheres". Deve ser respeitado como uma vontade de uma mulher, cuja vida política percorreu outras vias que não a luta contra a opressão feminina. O que não configura um crime. Porém, não pode ser faturado como algo feminista. Eis o nó a ser deslindado.
Marca bem usada
Como feminista, analisar o cerne e o entorno da candidatura de Roseana Sarney, ainda que de modo inicial, posto que muita água ainda vai rolar, parece complicado, mas é simples, basta dizer a verdade e ter a coragem de admitir que a sua candidatura está contribuindo, ainda que "por linhas tortas", para aumentar a visibilidade da "questão da mulher" no cenário eleitoral. Papel da imprensa. E o povo brasileiro merece conhecer a verdade para que possa fazer a sua escolha com autonomia e não confunda "alhos com bugalhos". Papel ainda da imprensa. Que não está fazendo o dever de casa.
O mito da mulher universal está superado. Entre nós, as mulheres, há um eixo geral e básico resultante do entrelaçamento de sexo/gênero, classe e raça/etnia. Conforme a antropóloga Myreia Suaréz, "apenas as mulheres compartilham a opressão de gênero, assim como negros e indígenas têm em comum a opressão racial/étnica". O que faz toda a diferença. Não há uma mulher universal e nem sororidade entre mulheres. A solidariedade de gênero não está acima das classes sociais e não suplanta outras questões que se imbricam no delineamento da condição de mulher. A mídia precisa se dar conta disso para cumprir, eticamente, a sua função social de desvendar a realidade para toda a sociedade.
Não basta ser mulher! E, sendo mulher, não basta que tenha "duas coisas" de estimação, uma negra e uma lésbica. Assim como não basta que algum dia tenha sido simpatizante in pectoris de "partidos de esquerda" e que tenha se limitado a jogar, da sacada do sobradão colonial, confetes e serpentinas em aplausos para nossas lutas.
Roseana Sarney, honradamente, não pode inscrever em seu currículo que é uma militante feminista, ou que é uma feminista, ainda que in pectoris. A vida tem demonstrado "que não se faz feminista a facão". O feminismo é uma visão de mundo e de vida, logo implica que feminista é um jeito cotidiano de ser… de compromisso explícito contra todas as formas de opressão. Na luta feminista não dá para acender uma vela a Deus e outra ao Diabo. Não há "meia" ou "quase" feminista. Somos bruxas. E as bruxas são todas radicais "de carteirinha", que não tiram férias, jamais! Não há como artificializar isso. Todavia é inegável que Roseana soube, com muita sagacidade, analisar a conjuntura favorável à participação política das mulheres no Maranhão e, partindo de lá, silenciosamente, conseguiu se projetar bem no cenário nacional com a marca MULHER.
A marca das guerreiras
O que causa comichão é ver Roseana Sarney como um "produto feminista", embalado em celofane, fitas e paetês, uma peça de marketing alicerçada em inverdades, comprada pela mídia. No Maranhão, as mulheres participam dos embates eleitorais, de modo destacado, desde a conquista do voto feminino, mas em geral a trajetória política das eleitas passa pelos "currais" das "relações de parentesco de pai, irmão, marido, ex-marido, cunhados e primos", como afirma a professora Mary Ferreira, da UFMA, em "Mulher e Política no Maranhão". Em 1998 o Maranhão teve o expressivo aumento de 150% em deputadas eleitas: na legislatura anterior eram 3 deputadas, e em 1998 foram eleitas 8, uma bancada que chegou a 10, pois duas suplentes assumiram o mandato.
Caso fosse de fato uma militante ou tivesse consciência feminista, ela saberia que a moralidade e a ética feministas não permitem descer tanto. E quando aparece, lépida e fagueira, belamente "quase zen", empunhando bandeiras das quais se omitiu quando era "primeira filha" ? uma mulher poderosa no governo Sarney; deputada federal e em seus dois mandatos de governadora, enfim durante toda a vida, apenas explicita que é perspicaz o bastante, muito mais que as velhas raposas da política, para ter compreendido que há, vincado na sociedade brasileira, o sentimento, ainda que difuso, de que as mulheres têm direitos e que a luta feminista em nosso país nos últimos 30 anos foi capaz de mudar substancialmente a cultura e evidenciar que as demandas e a condição femininas podem tocar corações e mentes e fazer toda a diferença em meio ao mar de lama que os "cabra machos" jogaram a política!
A lição que fica é que políticos(as) no Brasil não podem mais não enxergar a chamada "questão da mulher", sob pena de derrota nas eleições. A mídia vê isso?
Esperamos que gregos e troianos aprendam a lição – o susto pregado pelo "fator Roseana Sarney" -, e tenhamos contempladas em suas propostas os nossos anseios e necessidades para o exercício pleno da cidadania. Abominamos "salvadores(as) da pátria". Necessitamos de governantes ? independentemente do sexo, da orientação sexual e da raça/etnia ? que sejam sensíveis e saibam respeitar a luta milenar pelos nossos direitos e sejam capazes de garantir políticas públicas que, pelo menos, tornem menos árdua a nossa caminhada, que tem a marca de milhares de guerreiras – e em todos os tempos há maranhenses que não fugiram da raia. A mídia entendeu isso?
Em comum com ACM
Mas a governadora jamais ousou transpor, pelo menos publicamente, as soleiras de nossas andanças. Embora na execução do dito projeto de "modernização administrativa", que transformou as antigas Secretarias de Estado em 18 Gerências Regionais, ela tenha nomeado 7 mulheres como gerentes e decretado a ascensão das militares ao coronelato (oui, temos coronelas no Maranhão!). Não há como negar, são medidas louváveis, ainda que pontuais, porém fazem parte de uma vitrine cujos bibelôs não são suficientes para dar ao governo a "cara mulher" que ela tenta vender na mídia, pois durante dois mandatos esqueceu de fazer uma lição de casa fundamental: elaborar e implementar políticas públicas com enfoque de gênero!
Perspectiva feminista então, nem pensar!
A governadora em duas gestões sequer elaborou um Plano Maranhense de Atenção à Mulher e nem mesmo ensaiou algo como um "desempoderado" Conselho Estadual da Mulher. Não há em nosso estado, o Maranhão, assim como nos demais, uma proposta governamental para enfrentamento da opressão de gênero. Nisso a governadora, o seu partido e todos os outros dão a largada em pé de igualdade: não há nenhum estado ou município (dos mais de 5.500) que tenha, pelo menos no papel, uma política definida para mulheres!
Como o estado mais pobre do Brasil tem a petulância de não ter uma proposta de intenções de inclusão e cidadania para metade de sua população, as mulheres, ainda mais no governo de uma mulher? Como um estado majoritariamente negro, arrogantemente, não se dá conta disso? Fora as fotos da governadora nas festas folclóricas e dançando tambor de criola penduradas em todos os bares da ilha de São Luís, nós, a negrada, estamos à míngua em todas as áreas! Ela tem algo em comum com ACM.
Maranhenses de garra
Não se pode negar o cantado e decantado, em verso e em prosa, amor de ambos pelas "coisas da terra". Embora o amor dela pelo povo maranhense, o seu governo evidencia, deixa muito a desejar. E agora, a mesma mulher que usufrui das benesses do poder há pelo menos três décadas, que silenciou enquanto lutávamos, de repente aparece desfraldando as nossas bandeiras e apresentando-se como a redentora e porta-voz dos nossos sonhos e das nossas lutas. Como vimos, todo cuidado é pouco pois, lamentavelmente, não há lastro para sustentar a atual farsa televisiva da governadora. Tudo é areia movediça! Como vimos, na governança, não fez diferença a sua condição de mulher. O que é uma pena.
A governadora Sarney tem o dever ? por ter sido a primeira governadora de um estado brasileiro ? de olhar para a situação das mulheres. Teve quase oito anos de governo para fazer isso e "não deu bola". É deplorável que agora se utilize, demagogicamente, de sua condição de mulher e tente usurpar o patrimônio de tantas lutas das quais se omitiu.
Então, não são "os homens de Roseana Sarney" a personificação do problema, como têm argumentado os machistas de plantão de todos os matizes, vocalizados pela mídia, mas a mulher que a sua história de vida desnuda que ela é, agregada à visão de mundo que ela tem. Não pode ser moderna uma proposta de governo com a grife PFL, com toda a sua história e seu ideal liberal arcaico, parceiro fiel da implementação do receituário neoliberal selvagem, que considera população supérflua as legiões de desprovidos de cidadania que ele mesmo cria. A retórica da governadora é incompatível com os princípios e a prática de seu partido, e não encontra respaldo na história de vida dela.
O que não significa que ela não possa dar uma guinada de 180 graus para compatibilizar o discurso com a vida… fazer outras opções políticas e mudar. Mas, para tanto, teria de começar mudando de partido.
Nós, as maranhenses, temos o dever de honrar Marta Alonso de Castro Abranches, que criou a primeira escola feminina no Maranhão; Emília Pinto Magalhães Branco, pintora e musicista, mais conhecida como mãe de Aluísio, Arthur e Américo de Azevedo, mas cujo maior mérito foi denunciar a violência doméstica que sofria e ter sobrevivido como "mulher sendeira" (separada do marido), prestigiada como intelectual, criadora de espaços culturais e de debates políticos; Maria Firmina dos Reis, negra, abolicionista, escritora e fundadora da primeira escola mista do Maranhão; Arcelina Mochel, promotora de Justiça, radicada no Rio de Janeiro, onde foi eleita vereadora em 1947, e criadora de inúmeras organizações de mulheres por todo o Brasil nas décadas de 1940/50; D. Noca, arretada política sertaneja, da qual contam barbaridades que carecem de comprovação; e as médicas feministas Rosa Mochel e Maria Aragão, valorosas combatentes contra a ditadura militar de 1964, dentre outras maranhenses de "gana e garra".
Diz que é. Sem nunca ter sido
Em deferência a elas governadora, a nossa condição de "mulheres que fazem política" não nos permite não separar o "joio do trigo": algumas perpetuam o patriarcalismo e todas as formas de conservadorismos ? são opressoras; porém inúmeras são feministas e lutam contra todas as formas de opressão ? são libertárias!
Há tempo, "antes tarde do que nunca", para assumir os compromissos que o Brasil precisa, de privilegiar a maioria de vulneráveis: mulheres e negros, se é que lhe interessa. Não há mais como fugir do enfrentamento do dilema político e ético que está posto: o nosso país não pode se dar ao luxo de prescindir da contribuição plena das mulheres e dos negros que, tanto faz olhar sob o ângulo de sexo/gênero ou de raça/etnia, constituem, grosso modo, metade do povo. Sem as perspectivas de combate às opressões de gênero e racial/étnica qualquer proposta de governo está fadada ao fracasso, pois o eixo de entrave à cidadania no Brasil é o tripé: pobreza, opressão de gênero e racismo.
Um governo sério tem de saber que erradicar a pobreza saiu do campo das ditas questões sociais, agora é um relevante imbroglio econômico, e que a pobreza no Brasil tem sexo e cor. O mote é cidadania para todas as pessoas, com foco em quem precisa mais! É impossível pensar em consolidar os ideais democráticos, uma nação soberana e livre, quando metade do seu povo não goza de condições mínimas de cidadania.
Um alerta para todas as candidaturas: não esqueçam das mulheres! Ainda há tempo para ouvir e aprender com o movimento de mulheres do Brasil, um dos mais aguerridos da América Latina, que ousou e escreveu a constituição mais avançada do mundo no tocante aos direitos da mulher. Agora queremos direitos na vida, tarefa da alçada do Executivo, pois direitos na lei nós conquistamos com a nossa luta. No momento o que podemos dizer é que é difícil confiar em alguém que se apresenta para milhões de pessoas dizendo "que é, sem nunca ter sido".
(*) Médica, diretora da RedeSaúde/Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos e da União Brasileira de Mulheres e da Comissão de Cidadania e Reprodução; integrante do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher; autora de "Engenharia genética: o sétimo dia da criação" (Moderna, 1995); "Bioética: uma face da cidadania" (Moderna, 1997); "Oficinas Mulher Negra e Saúde" (Mazza Edições, 1998), e "Transgênicos: o direito de saber e a liberdade de escolher" (Mazza Edições, 2001)