IMPASSES DA IMPRENSA
Ivo Lucchesi (*)
Algo de profundamente transformador se dá no limiar da modernidade. No curso do século 15, Gutenberg (1400-1468) inaugura a imprensa. Um novo modo de fazer circular a informação altera o ritmo do tempo e abrevia a antiga distância entre os espaços. No diferente cenário do Ocidente, o conhecimento que se alargara, no século 12, com o surgimento da primeira universidade adquiria um forte aliado: a imprensa. Poderia ter sido uma parceria produtiva, se ambas as conquistas houvessem promovido entre si um pacto de fidelidade em favor de um projeto de qualificação do corpo societário.
Por motivos diversos, tanto a universidade quanto a imprensa foram, com o passar do tempo, sendo tragados pela deterioração. Antes de um julgamento apressado, é bom que se afirme que não foi a democratização do saber e da informação a causa do empobrecimento de ambos. A dinâmica feroz com que se move o processo industrial capitalista cria a inevitabilidade desse quadro, uma vez que ele é realimentado pela lógica da quantificação e não da qualificação. Assim, universidade (sede de conhecimento e pesquisa) e prática jornalística (matriz de informação e difusão) acabam sendo capturados pela engrenagem dos negócios. Enfim, o pacto foi abortado na raiz, antes que ele pudesse constituir-se numa ameaça de proporções incontroláveis, capazes de mudar o rumo da história.
A informação e a verdade
O que foi tematizado nos parágrafos acima dá a impressão de que basta atribuir-se a responsabilidade à máquina capitalista e com isso se liquida a questão. Todavia, suspeito não ser bem assim. A compreensão mais larga a respeito dos descaminhos pelos quais enveredou a expressiva maioria da mídia oficial na sociedade contemporânea (aspectos já abordados em artigos anteriores) me parece que exija um olhar para trás, reportando ao tempo de fundação da imprensa e a conseqüência de seu impacto sobre as estruturas de poder.
Vou arriscar uma reflexão a partir de uma pergunta. Galileu (1564-1642), que já conhecera a desventura vivida por Giordano Bruno (1548-1600), teria sido forçado a abdicar da verdade, comprovada pelo conhecimento, para salvar-se da fogueira, se, na sua época, já não existisse a imprensa? O real temor da Igreja se restringia à tese de Galileu ou à instabilidade que provocaria sua propagação? O poder eclesiástico estava perfeitamente preparado para absorver a "evidente" descoberta. O grande problema, no entanto, era como conter os efeitos dela na mediania das consciências. Claro está que aqui não se responsabiliza a imprensa pela sonegação do conhecimento. Pelo contrário, atesta-se o efetivo poder com que ela nasceu e, por isso mesmo, foi objeto de imediato controle.
Em outras épocas, a verdade se fazia protegida pelos mecanismos de controle ajustados às necessidades. Com o advento e a expansão da imprensa, porém, as estruturas de poder se sentiram ameaçadas. Como controlar a velocidade e a multiplicação da informação, sem cortar o elo entre verdade e informação? Esse terá sido um dos maiores impasses no auge da virada entre o século 16 e o 17.
O episódio de Galileu, portanto, ilustra a impossibilidade sistêmica de um acordo estratégico viável entre a eficácia do saber e a eficiência crítica da prática jornalística, que, nos tempos atuais, tende a intensificar-se, dado o processo de homogeneização proposto pela "globalização". São os mesmos temores de outrora, agora apenas intensificados, em função de um contingente populacional que reúne mais de 6 bilhões de habitantes, com possibilidades cada vez mais ampliadas quanto ao acesso à informação, o que, paradoxalmente, interessa e preocupa a preservação dos interesses do capital.
A estratégia construída pela ordem do capital, com o intuito de manter o controle possível, foi o de infundir na consciência média da população o gosto pela informação, distanciando-a, tanto quanto possível, do saber crítico. Em lugar da reflexão como um estado propício ao aprimoramento da razão crítica, o sistema opera a valorização do consumo rápido da informação.
A mídia oficial, por sua vez, sob a tutela de novos senhores afinados com esse propósito, se encarrega de reproduzir o modelo traçado, levando como compensação o "honroso" título de o quarto poder. Se, na escala, a mídia está em quarto lugar, poder não é. E a "verdade"? No estado crescente de transformações em ritmo alucinante, a "verdade", distinta senhora cultuada e desejada pelos filósofos, acabou confinada a pequenos redutos que ainda ao invocarem-na são condenados com o selo de "autoritários" ou "antidemocráticos". No apogeu da modernidade, a ordem do capital plantou o "mito da informação" e condenou "a verdade" à fogueira eterna, levando consigo "o pensamento crítico", ou seja, a informação tomou o lugar da verdade e o pensamento crítico perdeu o posto para o culto à velocidade. As conexões de interesse e funcionamento na associação entre a informação e a velocidade serão objeto para um outro artigo.
(*) Professor de Teoria da Comunicação, ensaísta, mestre em Literatura Comparada e doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, participante do programa Letras & Mídias, exibido mensalmente pela UTV
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