Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Entrevista com o presidente

BAND

Cláudia Rodrigues (*)

Aconteceu na quinta-feira, 22 de novembro, no horário em que Cinderela virou abóbora.

Mediados pela jornalista Marcia Peltier, cinco jornalistas experientes ? Fernando Mitre, Mauro Santayana, José Paulo de Andrade, Fernando Parada e Fábio Pannunzzio ? foram ao Palácio do Planalto fazer uma entrevista com Fernando Henrique Cardoso.

Márcia abriu a programação citando matéria do Jornal do Brasil, segundo a qual os bancos brasileiros tiveram lucros de mais de 400%. Parecia que o caldo ia engrossar, mas a pergunta de Márcia virou mingau de bebê.

Fernando Henrique comprovou, de entrada, que é mesmo um expert em retórica, ao afirmar que seu governo é democrático e que não tem poderes sobre o mercado. Depois ainda esticou, fechando a resposta com catraca de chumbo, ao informar que em seu governo os bancos passaram a pagar impostos, coisa que antes não acontecia.

Ninguém mais ousou falar sobre os lucros absurdos dos bancos e nem passou pela cabeça dos entrevistados questionar os custos do Proer. Estava tudo explicado.

Os jornalistas resolveram encarar os problemas sociais, levantaram a velha bola do sociólogo de idéias marxistas, que acabou sendo o presidente de um país que aumentou a chaga da distribuição de renda. O mingau estava por azedar. Nada disso, acrescentou-se mais açúcar e ficou doce.

Primor de retórica

Sorrindo, muito à vontade, o presidente explicou que o Brasil é um país de regime capitalista e negou, citando dados estatísticos, que o país esteja sofrendo com o aumento da miserabilidade, já que diminuiu o índice de mortalidade infantil, aumentou o de empregos, fez assentamentos e projetos como o bolsa-escola. A culpa da miséria recaiu sobre o êxodo rural. Temos mais empregos e mais gente querendo emprego. Não há emprego que chegue.

Falou muito o presidente, falou bem e vendeu seu mingau direitinho. Ao final da entrevista, por volta de 1h, os espectadores devem ter dormido felizes, como bebês com a barriga quentinha.

Ficou muito claro que vivemos em um país rico, que melhorou o valor agregado dos produtos exportados, diminuiu o preço dos telefones, permitiu acesso ao celular, além de ter melhorado o salário do funcionalismo público.

Alguns dos dragões do jornalismo brasileiro, os seis jornalistas presentes, pareciam estudantes em segundo ano de curso, diante da retórica do presidente. José Paulo de Andrade, bebezinho que não estava satisfeito com a quantidade de mingau em seu pratinho, ainda deu uma esperneada, referindo-se aos custos da telefonia. É que no Brasil de hoje, depois dessa maravilha das telecomunicações privadas, a gente gasta R$ 60 em chamadas, mas valores embutidos fazem com que a conta seja de R$ 180.

De qualquer maneira o presidente achou a colocação absurda pois a compensação, a quantidade de telefones celulares, paga qualquer cobrança. Ele fez biquinho e tudo.

Os entrevistadores ainda tentaram fazer algumas perguntas, falaram da forma como o governo vem administrando as greves e chegaram, por não mais de 30 segundos, a abordar a questão da CLT. Mas FHC era rápido no gatilho, tinha a resposta na ponta da língua, como se soubesse exatamente cada resposta por antecipação.

A entrevista foi quase um pronunciamento oficial e terminou, é claro, com a fofocalhada da sucessão. Daí baixou o nível do jornalismo, que insiste na especulação, e ganhou o presidente, mantendo-se numa posição de pai que abençoa a todos os candidatos e está à espera de que o mais bem preparado seja eleito para candidatar-se. Um primor de retórica, do início ao fim, que só foi abalado quando o presidente disse uma frase triste do ponto de vista humano: "Eu não sou ingênuo para acreditar no ser humano, eu conheço o ser humano e não espero nada de ninguém, nenhum reconhecimento, nenhuma gratidão."

"É ruim mas é queijo"

Talvez nessa frase ele tenha conseguido contar muitas singularidades de seu governo, mas ninguém pescou, o assunto era sucessão, desafetos, e quando a fofoca jornaleira prolifera fica difícil fazer associações mais profundas.

E depois de uma entrevista como esta ainda se questiona o diploma e se atacam as universidades, falando que o mau jornalismo é fruto apenas de uma universidade deficiente?

Eu insisto. O mau jornalismo é fruto e conseqüência de armações do mercado. Ficou uma lição muito clara, dada pelo próprio presidente. Democracia em país capitalista não permite que um ditador sente na cadeira do presidente. Nessa cadeira senta um homem democrata. Acima desse homem, acima do Senado, acima do Congresso, acima do bem e do mal, e principalmente acima da miséria do povo, tem um rei déspota que tudo pode e tudo faz: o mercado. Democracia capitalista é o governo do mercado, pelo mercado e para o mercado.

Mas ainda ficam, além de várias colocações e perguntas que cabiam na entrevista, duas questões que não poderiam mesmo ser feitas ou respondidas. Elas nos deixaram com três pulgas atrás de cada orelha:

** O que o presidente da República Federativa do Brasil pretendeu ao dar uma entrevista exclusiva a uma emissora de TV?

** O que a Rede Bandeirante de Televisão pretendeu ao transmitir uma entrevista com o presidente à meia-noite de uma quinta-feira?

Enfim, "é ruim mas é queijo", como dizia uma velha cega comendo sabão.

(*) Jornalista