Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Espaço nobre para os livros

PRIMEIRA LEITURA

Deonísio da Silva

A edição 22 (dezembro de 2003) da revista Primeira Leitura que está nas bancas traz quatro resenhas imperdíveis ? duas de Hugo Estenssoro, uma de Almir de Freitas e outra de Caio Blinder.

Destaque-se primeiro que o espartilho do espaço dedicado a livros, em geral diminuto em outras revistas, se não transformou o conhecido minifúndio em latifúndio, deu-lhe propriedade de bom tamanho, capaz de acolher comentários de livros muito pertinentes.

Além disso, inovou numa outra coisa: comenta um velho livro, na verdade um clássico, agora relançado pela Companhia das Letras, que é Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Faz bem a revista em chamar a atenção para um autor, que ao lado de Gilberto Freyre, com Casa-Grande & Senzala, ajudou várias gerações a entender o Brasil, apesar de, como registra com muita propriedade Almir de Freitas, usar uma terminologia que continua incompreendida, a começar pela conceito polêmico de nossa "cordialidade".

Não há como disfarçar a polêmica. Basta ler Raízes do Brasil, por exemplo, tendo ao lado o Dicionário das Batalhas Brasileiras, de Hernâni Donato, ou a bibliografia sobre as guerras fratricidas do Brasil meridional e suas famosas degolas de imensos contingentes de prisioneiros já dominados pelos vencedores. Ou dar uma espiadinha nas manifestações da cordialidade brasileira nas guerras contra os irmãos latino-americanos. Um exemplo? Guerra do Paraguai. Batalha de Tuiuti, travada a 24 de maio de 1866. Os paraguaios deixaram 6.000 mortos, 7.000 feridos e 370 prisioneiros. É verdade que a cordialidade do lado de lá também fez seus estragos: 3.913 mortos, dos quais 3.011 eram brasileiros. Houve uma segunda batalha de Tuiuti, travada a 3 de novembro do ano seguinte, com outro horrendo saldo de mortos: 2.227 do lado paraguaio, contra apenas 294 da Tríplice Aliança.

Entre os pontos altos de Raízes do Brasil está a nossa especialidade: o modo com as nossas elites conceberam o Estado, tirando-lhe a aura impessoal, que lhe deveria ser inerente, ao cobri-la com conhecidas vestes de nosso patriarcalismo. Um Estado assim concebido é sério empecilho à democracia moderna. E traz no útero um velho problema constitucional: a lei não é igual para todos. Ela é brandida ao sabor e aos interesses do grupo político que está no poder.

Controles rígidos

Na outra resenha, Reinaldo Azevedo ocupa-se do novo livro de Otavio Frias Filho, Queda Livre (Companhia das Letras), escrito a partir de um mirante insólito, assim definido pelo próprio autor, que não esconde sua preferência pelo texto teatral: "Procurei focalizar a mim mesmo como ?personagem? e tomo o livro como sendo uma obra de comédia". Admite ainda que "eventuais leitores possam não achar tanta graça como eu achava, ao escrever". A resenha tem um mérito essencial às resenhas: desperta no leitor a vontade de ler imediatamente os sete ensaios que Otavio Frias Filho reuniu no volume, classificados como "relatos tão engraçados como cruéis de experiências de fato vividas".

Nas outras duas resenhas, Caio Blinder comenta Imperial America, de John Newhouse (Alfred Knopf, US$ 23, ainda sem tradução no Brasil). Caio chama a atenção para a originalidade da crítica ao imperialismo americano. Autores dos EUA gostam muito de criticar os EUA, como fazem Noam Chomsky e Gore Vidal, mas segundo Caio os dois dão "golpes incisivos" ? caso do lingüista ? e "exuberantes" ? caso do romancista ? mas "previsíveis". O livro vem em boa hora: o dilema entre a diplomacia paciente e o diktat de quem tem a força foi resolvido por Bush sem nenhuma vacilação: seu governo adotou uma truculência inaudita para resolver qualquer problema e dividiu o mundo de forma a fazer inveja a qualquer maniqueu: no mundo inteiro só um lugar para Estados soberanos. Ao lado dos EUA. Pois até a neutralidade lhe parece supremo atrevimento.

A última resenha, a segunda de Hugo Estenssoro, ocupa-se de um livro sobre o Japão, publicado na Inglaterra. É Inventing Japan: From Empire to Economic Miracle, 1853-1964, de Ian Buruma. Outro antigo império já havia se ocupado do Japão, como, aliás, registra o resenhista quando transcreve fragmentos de dois versos de Os Lusíadas.

Que alguma editora nacional providencie logo a tradução dos dois livros. O primeiro, pela necessidade urgente de aprofundarmos a confusão que ameaça irromper em nossa diplomacia e em nossas relações com os EUA. E o segundo, se mais motivos não houver, porque na área econômica o Japão eliminou radicalmente a pobreza, embora reflita um "atraso democrático e social" muito semelhante ao nosso.

De todo modo, o mais gratificante é ver uma revista desparoquializar e destribalizar conhecidas igrejinhas e ocas que dão um espaço miserável ao comentário de livros. Primeira Leitura inova principalmente nisso: abre espaço para aquilo que a imprensa tem obrigação de fazer, que é ampliar os estreitos círculos que em geral asfixiam saudáveis polêmicas ainda no nascedouro.

Os recursos mais usados em outros órgãos são o aborto e um rígido controle de natalidade das idéias de quem ousa pensar sem os tradicionais maniqueísmos "do contra" e do "a favor".