"Não basta apenas jogar", copyright Gazeta Esportiva, 2/8/00
"Os estrategistas de comunicação e marketing, quando olham a bola do mundo, se perguntam se continuará existindo lugar para o produto local. Coisas como a banana-nanica, farinha de mandioca, paçoca, jerimum, Chico Buarque, aguardente, carne de sol, arroz-com-feijão e bife, avião da Embraer, queijo Catupiry, manteiga Aviação, doce de leite de Uberaba, café do Norte do Paraná, pagode, axé, chimarrão, chiapas, Fiesp e o futebol da várzea. Será que aos 45 minutos do segundo tempo todas as coisas da pelota onde respiramos vão ter uma só cara, uma só língua, um só estilo?
O Ronaldinho, aquele menino da periferia carioca, anunciou que vai passar alguns meses nos Estados Unidos para aprender inglês. Ele já fala italiano, espanhol e arranha o holandês. Ele, o Fenômeno, está momentaneamente parado mas a sua boca já dispara em três idiomas a palavra futebol, calcio e soccer. A sua cabeça raspada, estilo Michel Jordan, é uma bola globalizada como as caras do Rivaldo, Roberto Carlos, Anelka. Todos que, a contar por suas cabeças, são absolutamente iguais. Todos que, potencialmente, serão embaixadores das crianças no mundo, patrocinarão alguma organização não governamental. Será essa a cara do jogador global? Vai sobrar ainda algum espaço para figuras que transcendem o esporte, como Mohamed Ali – que um dia foi Cassius Clay – até hoje importante para a afirmação dos negros americanos, africanos e muçulmanos de todo o mundo? Ou Ayrton Senna, que, além de pilotar as suas máquinas de guerra, já começava a construir uma simbologia ancorada no Brasil? Para não ser injusto com o universo do futebol brasileiro, lembremos que já existiram pessoas dignas e combativas como João Saldanha, primeiro técnico da seleção de 70, rifado pelo regime político da época, e também jogadores como os doutores Tostão e Afonsinho. Não esquecendo, evidentemente, de lembrar Raí e Leonardo, que, nos dias atuais, dão lição de cidadania com a Fundação Gol de Letra.
Será que os nossos atuais ídolos da bola vieram ao mundo só para vender tênis, chuteiras, celulares, carrões e bebidas energéticas? Ou os ídolos esportivos vão ser daqui para frente apenas construções virtuais de relações públicas? Muitas dessas perguntas correram o campo da minha cabeça durante os 90 minutos de Brasil 3 x Argentina 1? já que nesse jogo a maioria dos participantes, tanto argentinos quanto brasileiros, são figuras globais, que atualmente jogam nos principais torneios da Europa. Esse continente onde hoje, pela quantidade e qualidade de jogadores emigrados, se desenham equipes multirraciais, miscigenadas, do técnico ao último reserva. Nelas convivem atletas de todos os continentes. Cada equipe é uma torre de babel organizada correndo atrás da bola, ambiente que favorece teoricamente o encontro de culturas, o respeito pela diversidade e o fortalecimento dos direitos democráticos e do trabalho. A vitória da Seleção da França na Copa de 98 tem o gosto de vitória do ex-colonizado. Muitos craques franceses têm as chuteiras nas Antilhas, África e Guiana Francesa.
Os nossos estrangeiros da pelota ? Rivaldo, Roberto Carlos, Emerson, Antônio Carlos, Dida, entre outros ? vivem lá na Europa em uma realidade sem cartolas predadores e torneios formatados para acomodar situações criadas no tapetão. Não é o melhor dos mundos, mas é uma demonstração de que há outros mundos da pelota, muito além do nosso atual futebol S.A. Ambiente onde o jogador de futebol pode exercer a sua dimensão de cidadão. Não é porém o que acontece por aqui. Talvez seja por isso que nas discussões sobre a Lei Pelé não se viu jogador tipo global meter o seu pitaco. E o Rei, sozinho, acabou sendo devorado pelos políticos.
Os nossos jogadores globais, os estrangeiros, poderiam trazer para os campos verde-amarelos, além dos dólares ? é bom que se diga, merecidamente ganhos ? uma nova identidade ligada aos valores de cidadania, justiça e democracia."