MÍDIA & GESTÃO
Luciano Martins Costa (*)
A sucessão de debates que lotaram os fóruns prediletos dos jornalistas, estudantes de comunicação e agregados na última semana ? entre os quais este Observatório ?, em torno de um novo capítulo na novela do diploma de jornalismo e sobre a punição ao apresentador Augusto ("Gugu") Liberato, mais as manifestações de algumas estrelas do Seminário Internacional de Jornalismo, realizado em São Paulo, de 24 a 26 de setembro, trazem à tona uma questão que os observadores da imprensa têm bordejado com cautela, para não dizer com temor de mexer em vespeiro. Pois vamos, então, escarafunchar um pouco mais o problema, a ver se sangra e se tratamos a ferida.
Por trás de todas as manifestações coletadas, quase uma centena, precisamos destacar um tema que conceituamos como central e comum a todas elas, embora às vezes implícito nas questões debatidas. Vamos falar, então, da qualidade do cidadão jornalista. Não de qualidades pontuais, específicas, explícitas, que sobressaem na atividade do dia-a-dia, como a qualidade de bem alinhar palavras adequadas, de grafá-las corretamente, de organizar com lógica e graça os textos e ilustrações de uma página, de fazer perguntas adequadas numa entrevista. Vamos nos aventurar pela análise daquela qualidade que perpassa todas essas, e que está na essência do fazer jornalismo: a qualidade do pensamento.
Ave de mau agouro
Essencialmente, parece haver duas correntes a definir a hermenêutica, que é fundamento do nosso negócio. Ou seja, os processos pelos quais os jornalistas interpretam o sentido das palavras e símbolos parecem derivar de duas premissas essenciais. A primeira delas indica a percepção do jornalismo como uma atividade que se desenvolve ao mesmo tempo dentro e acima do seu tempo. Acima, mesmo, como um conceito de superioridade ou de vanguarda. A outra, completamente oposta, aponta para o conceito segundo o qual o jornalismo deve ser sempre uma atividade de seu tempo, perfeitamente afinada e identificada com todos os valores da contemporaneidade. Nem um segundo atrás, nem um ponto fora do círculo estrito da contemporaneidade.
A primeira visão transparece, nesse levantamento precário e sem pretensão a ciência, das manifestações de estudantes de comunicação e profissionais deslocados das redações para a universidade e outras atividades paralelas à imprensa. A segunda visão parece dominar o universo dos profissionais em cargos de chefia e daqueles que, com pouca experiência, estão empregados em redações.
Essa dicotomia perpassou também os debates em torno da palestra do português Carlo Campos, diretor do Innovation Media Group ? consultoria muito popular entre as empresas brasileiras mais afetadas pela crise ? durante o Seminário Internacional de Jornalismo. De um lado, a visão do consultor, desvelada em sua recomendação para que as redações evitem demitir e tentem preservar seus talentos. Do outro, a voz da contemporaneidade, personificada no diretor-secretário editorial da Editora Abril, Laurentino Gomes, e no diretor-adjunto de redação do Valor Econômico, Carlos Eduardo Lins da Silva.
Gomes argüiu a necessidade da busca de sustentabilidade no negócio, lamentando a falta de compromisso de editores com os resultados das empresas a que servem. Lins da Silva fez coro ao mais recente fruto da filosofia "satisfaça o cliente", ao defender a tese de que os jornais estão grandes demais e diversificados demais ? sendo, portanto, mais custosos. E lamentou publicamente o fato de ter produzido na mesma manhã outro punhado de demissões, anunciando que aquela ave de mau agouro estaria para decolar de suas mãos para mais um vôo rasante logo em seguida ao evento. Faltou dizer: "Lamento, estou apenas cumprindo ordens".
Premissas encaixotadas
Outros debates se sucederam, no seminário e nos fóruns de jornalistas, e mais uma vez os gestores da imprensa brasileira passaram ao largo daquilo que alguns bons pensadores da estratégia chamam de análise prospectiva de cenários ? que não é outra coisa que situar a observação acima e fora do círculo de premissas que definem a contemporaneidade.
Não por coincidência, quando a semana terminava, a empresa E-Consulting Corp distribuía artigo do consultor João Oliveira, no qual a matéria era analisada com simplicidade e clareza. Segundo Oliveira, o papel da administração estratégica ? aquela da qual faz parte a ferramenta da análise prospectiva ? é "captar e transformar a vasta quantidade de informações disponíveis em conhecimento competitivo e comunicá-lo, de forma a produzir ações na corporação".
Na equação de Laurentino Gomes e Lins da Silva, de resto um reflexo do que pensam a Editora Abril, o jornal Valor Econômico e a maioria das empresas de comunicação, essa é uma perna que parece faltar: é correto observar que os editores precisam aprender a enxergar o negócio por trás de suas decisões de conteúdo, mas não basta educar editores se eles não forem estimulados a estender suas visões para além do mercado ? este, real e verdadeiro contêiner da visão exclusivamente contemporânea do negócio. Ou seja, não basta visão de negócio, é preciso ter visão de futuro e coragem para romper o círculo de vícios que gerou a crise e que a alimenta ? a despeito de quantas consultorias sejam contratadas. Aliás, não seria essa uma fonte de custos que, ao final, acabaria conduzindo à urgência das demissões?
João Oliveira nos brinda com alguns exemplos de análises ? que acabaram influenciando decisões de negócios ? baseadas em premissas encaixotadas na contemporaneidade:
** "Quando a exposição de Paris se encerrar, ninguém mais ouvirá falar em luz elétrica ? Erasmus Wilson, Universidade Oxford, 1879.
** A televisão não dará certo. As pessoas terão de ficar olhando a tela, e a família americana média não tem tempo para isso ? The New York Times, 18 de abril de 1939, na apresentação do protótipo de um aparelho de TV.
** Acredito que há mercado mundial para cerca de cinco computadores ? Tomas J.Watson, presidente da IBM, 1943.
** (…) O mais provável, por tudo que o governo tem dito, é que a estratégia de desvalorizações graduais do câmbio seja mantida ? Especial Exame/The Economist, 23 de dezembro de 1998.
Fundo do poço
Poderíamos, por conta própria, encher estas telas com centenas de outras "análises" feitas pela própria imprensa ou amplificadas por ela, ao sabor dos interesses ou pendores de seus donos, mas vamos adiante.
No noticiário geral, a aparente incapacidade de muitos jornalistas de diferenciar militantes autênticos de picaretas, oportunistas de mercenários, tem concedido credibilidade a grande número de organizações não-governamentais que são verdadeiras arapucas, utilizadas por empresas para pressionar o poder público e obter aprovação de projetos de seu interesse ou prejudicar concorrentes. Assim avalizadas, essas organizações passam a cumprir papel de destaque na vida real.
Na política, a falta dessa visão estratégica tem produzido manchetes definitivas que não sobrevivem aos fatos da manhã seguinte. No futebol, grandes "sacadas" e a transformação de pequenos grupos de torcedores organizados em porta-vozes da grande massa de aficcionados produzem crises nos clubes e previsões que se auto-realizam no resultado dos jogos.
Não falamos, portanto, de haver mais ou menos qualidade no trabalho jornalístico ? falamos de uma qualidade da qualidade, ou seja, que premissas fundamentam as decisões, independentemente da qualidade específica que tenham elas e as ações que delas derivam. Por exemplo, qual a qualidade real dos comentários bem remunerados dos mais qualificados analistas adotados pela imprensa? Que estados de espírito instilam nos formadores de opinião? Qual o grau e qualidade da diversidade que a imprensa oferece, a partir dessas escolhas, para a formação do pensamento nacional?
A julgar pelo tamanho e longevidade da crise, quanto mais dessa qualidade tivermos, mais fundo o poço.
(*) Jornalista