Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Estatuto do Torcedor, vitória da sociedade

ENTREVISTA / JUCA KFOURI

Luiz Antonio Magalhães e Marinilda Carvalho

Uma espécie de motim tomou conta do futebol brasileiro na semana passada. Para quem não gosta do esporte nem acompanha o noticiário específico, vale a pena rememorar. Na quinta-feira, 15 de maio, o presidente Lula sancionou o Estatuto do Torcedor, um código do consumidor do futebol profissional, com artigos prevendo os direitos de quem paga ingresso para assistir aos jogos e os deveres dos clubes e entidades organizadoras dos campeonatos.

Menos de uma semana após a sanção presidencial (terça-feira, 20/5), dirigentes de oito clubes (Santos, Flamengo, Vasco, Fluminense, Grêmio, Cruzeiro, Atlético-PR e Atlético-MG) e de três federações (RJ, PR e SC) se reuniram no Rio de Janeiro, na presença do presidente da CBF Ricardo Teixeira, e anunciaram uma rebelião: estava suspensa a rodada do fim de semana do Campeonato Brasileiro. Os cartolas alegavam falta de condições para cumprir as exigências do estatuto relativas à segurança nos estádios. Contestavam desde itens simples, como disponibilidade de ambulâncias e numeração de ingressos, aos artigos que os obrigam, pela primeira vez na história do futebol profissional brasileiro, a responder por incidentes comprovadamente causados por falha de segurança.

A rebelião era uma forma de chantagem contra o governo. Na quarta-feira (21/5), a visita de uma comitiva de dirigentes ao ministro dos Esportes Agnelo Queiroz supostamente abriu uma negociação: o ministro acenou cortesmente com uma avaliação de inconstitucionalidade, pela Advocacia Geral da União, do artigo 19 ? o que obriga o dirigente a responder pelos incidentes nos estádios, "independentemente de culpa". Mas nem isso acabou acontecendo. O presidente Lula foi inflexível e determinou obediência à lei, debatida por mais de um ano em várias instâncias e aprovada pelo Congresso.

Na quinta-feira, o presidente da CBF recuou e anunciou que a rodada do Brasileiro estava mantida. A rebelião terminara. Começou então a troca de acusações: a CBF atribuía aos dirigentes a idéia do motim, os cartolas apontavam o dedo para Ricardo Teixeira. Ficou visível a divisão na cúpula do futebol.

Desde o primeiro momento em que os cartolas anunciaram a insurreição, a imprensa brasileira se comportou, com as exceções que só comprovam a regra, de forma irrepreensível: revelou a farsa dos dirigentes em tempo recorde, mostrou as contradições de um movimento enfraquecido e chantagista, defendeu o interesse público (no caso, os torcedores) e repudiou qualquer negociação do governo, reforçando a posição do presidente Lula que, por sua vez, não hesitou em autorizar que seu ministro "pagasse para ver" o blefe dos clubes, para usar a metáfora de outro jogo.

A imprensa cumpriu seu papel e colaborou para que o golpe dos cartolas fracassasse e o Estatuto do Torcedor vingasse. Entre tantos profissionais que trabalharam intensamente na cobertura do episódio, um merece ser destacado. Primeiro a manifestar indignação, pela Rádio CBN e em telefonemas seguidos à redação da ESPN Brasil ? que ficou no ar até alta madrugada debatendo a manobra dos cartolas ?, e o primeiro a localizar o ministro Agnelo Queiroz, o jornalista Juca Kfouri mostrou mais uma vez por que é um dos mais respeitados e temidos cronistas esportivos do Brasil. Respeitado por colegas e fontes, temido pela escória da cartolagem. Na entrevista a seguir, Juca dá sua opinião sobre a cobertura que a mídia dedicou ao episódio e comenta as ambigüidades na relação da TV Globo ? detentora dos direitos de exibição dos jogos do Campeonato Brasileiro ? e os dirigentes de clubes de futebol.

Raras vezes a imprensa teve reação tão firme em relação a um episódio polêmico, vocalizando afinadamente o sentimento da sociedade. Jornais, Lance!, ESPN Brasil, iG e CBN ? o repúdio à manobra dos cartolas parece ter sido praticamente unânime. A mídia quando quer presta serviço público?

Juca Kfouri ? É curioso, mas isto é mais freqüente exatamente na imprensa esportiva que, talvez pela proximidade com o torcedor, fica mais sensível para representá-lo.

A que você atribui a reação incolor da Globo no primeiro momento? (A julgar pelas cartas de crítica ao repórter Tino Marcos, enviadas ao Observatório, essa reação até foi favorável aos cartolas.) O comercial ficou à frente do jornalismo?

J.K. ? A TV Globo padece de uma ambigüidade que, por exemplo, não contamina O Globo, Extra! ou o Sistema Globo de Rádio, aí incluída a CBN. E a razão é clara: a TV ainda confunde compra de direitos com uma espécie de "sociedade" com os cartolas. Tal promiscuidade é sempre fatal.

Apesar da reação quase unânime de repúdio, a mídia não teria falhado na divulgação do Estatuto do Torcedor? Por exemplo, só no Bom Dia Brasil de sexta-feira (23/5) veio uma matéria completa de Londres sobre a experiência britânica, modelo para o futebol mundial. Não seria o caso de a imprensa brasileira comparar nosso estatuto às iniciativas da Grã-Bretanha?

J.K. ? Acho que não. O estatuto foi dissecado antes de sua aprovação e depois dela. O Lance!, por exemplo, publicou-o inteiro, com comentários, num encarte especial na quinta-feira (22/3). E o Relatório Taylor, o inglês, foi sempre bastante comentado como exemplar.

Quando o presidente Lula assinou o Estatuto do Torcedor, o ato foi noticiado burocraticamente. A mídia falhou ao não prever essa reação dos cartolas, conhecendo a CBF, as federações e os dirigentes de clubes?

J.K. ? De fato, não se deu a importância devida no dia da assinatura, talvez porque o assunto tenha sido muito comentado antes.

Por que a imprensa é tão complacente com os dirigentes de clubes? Ouvimos no rádio e na TV manifestações inacreditáveis de desinformação por parte dos cartolas, e bem poucos, como você ou José Luiz Portela (um dos responsáveis pelo estatuto), ousaram contestá-los. Por que essa benevolência?

J.K. ? Pela tal promiscuidade, principalmente nos meios eletrônicos, e pela visão editorialmente incorreta de supor que o torcedor quer saber de bola correndo ? uma cômoda desculpa para silenciar e não correr risco de perder fontes ou ganhar processos.

O recuo dos cartolas foi uma vitória da imprensa?

J.K. ? Foi uma vitória, sem demagogia, da sociedade brasileira, aí incluída, sim, a imprensa; e do governo, que foi firme.