LIÇÕES DO CASO GUGU
Alberto Dines
Gugu, quem diria, vai se tornar um marco. Na periodização da história da TV brasileira, certamente teremos duas novas fases: a.G. e d.G. ? antes e depois de Gugu. O nome do apresentador é aqui utilizado como sinônimo do vale-tudo televisivo, da irresponsabilidade social e da omissão p&uacuacute;blica.
Entramos na era d.G. dias antes das sentenças judiciais que suspenderam a apresentação do programa do domingo, 21/9. O novo momento começou quando a repercussão do Domingo Legal do dia 7 de setembro transcendeu à esfera do bate-boca entre Gugu versus similares e foi levado a segmentos mais responsáveis da sociedade, inclusive o governo.
Pode-se dizer que a repercussão produzida pela edição do dia 16/9 deste Observatório na rede pública de TV em muito ajudou a federalizar o debate, ao acionar diretamente dois ministérios (Justiça e Comunicações), ONGs, juristas e uma parcela ponderável da opinião pública alheada por opções morais e culturais da programação de baixo nível.
A suspensão do Domingo Legal, atendendo a uma proposta do Ministério Público Federal, deu ao episódio a imperiosa dimensão jurídica. Sobretudo porque alguns aspectos da punição, pelo seu ineditismo e pelos perigosos precedentes que criava, acendeu um intenso debate político. Extremamente salutar. Cívico.
Quando uma sociedade se dispõe a debater uma sentença judicial, dá prova de sua maturidade. Se um cidadão, mesmo não entronizado pelo diploma de bacharel, dispõe-se a argüir pela imprensa um magistrado, está exercendo na sua plenitude o papel de cidadão consciente. A ciência jurídica não pode impor-se ao bom senso e à boa-fé, especialmente numa questão que envolve princípios morais.
A administração da justiça não pode estar confinada às dependências físicas dos fóruns. A toga soleniza o ato em que se pronuncia a sentença, mas não confere imunidade cívica aos que a envergam. O cidadão-juiz não é um deus ou semideus inacessível e insensível aos juízos do cidadão preocupado com o bem comum.
A sociedade delegou ao Ministério Público a missão de defender zelosamente o interesse público. Cabe a ele acionar o aparelho policial e judicial para coibir infrações e punir infratores. Mas um parceiro da sociedade como é o MP não pode enfiar-se num bunker, investir-se da onipotência e oniscência e considerar como equívoco qualquer manifestação que contraria sua presunção de infalibilidade. Sobretudo porque nos últimos anos multiplicaram-se os casos de censura judicial ? alguns em causa própria.
Tesoura, mordaça e tacape
No caso do Gugu, o MP fez o que lhe competia fazer: reuniu os elementos factuais, adicionou a argumentação jurídica e propôs ao Judiciário duas penalidades: multa pecuniária e a suspensão do programa pelo prazo de trinta dias.
O Judiciário foi cauteloso, aceitou a multa e reduziu a suspensão a um domingo apenas. Mas esta suspensão, ainda que reduzida, contém um componente simbólico, altamente explosivo, que não pode nem deve ser ignorado.
A suspensão de uma emissão televisiva antes de conhecido
o seu teor, por mais justificadas e justificáveis que sejam
as razões que a motivaram, é um ato censório
inequívoco. Nesta matéria o saber jurídico
não pode sobrepor-se à experiência daquele que
já foi objeto da violência. Um torturado sabe o que
é tortura ? o juiz conhece a matéria teoricamente,
livre da dor.
Isto não significa que só jornalistas sabem discernir o que é ou não é censura. Significa, sim, que o clamor dos censurados não pode ser menosprezado do alto dos tratados de Direito. O direito de espernear e reclamar é um direito legítimo numa democracia, e aqueles que estão na linha de frente em defesa da democracia ? os jornalistas ? não podem se omitir de um debate que, levado às últimas conseqüências, envolverá a salvaguarda de outros poderes da República.
Além da multa ? irrisória, considerando os polpudos lucros do apresentador e da emissora ? a sentença deveria prever uma advertência. E a possibilidade do fim da concessão em caso de reincidência. Está previsto na Constituição, não é matéria controversa.
Controverso é o uso da tesoura, da mordaça ou do tacape porque consagra a tesoura, a mordaça e o tacape como os únicos instrumentos capazes de educar comunicadores e concessionárias de comunicação para as suas reais obrigações perante os concidadãos.
Ilhas de arrogância
Errou o respeitado e respeitável Estado de S.Paulo no seu tonitruante editorial de sábado ("Precedente auspicioso", 27/9, pág. 3) quando prefere uma decisão discutível à omissão. Este é um dilema falso e perigoso. Ignora que certas decisões "discutíveis" podem ser consagradas pelo uso e abuso até tornarem-se palatáveis e válidas. Assim foi com a censura do AI-5 do qual o jornalão foi uma das grandes vítimas. Uma censurazinha aqui, outra acolá e, de repente, para evitar complacência e omissões, estamos enfiados num escancarado processo de controle de informações e opiniões [leia o texto do editorial no DOSSIÊ GUGU, nesta rubrica].
A todos os que, de uma forma ou outra, alinham-se a favor da suspensão-censura ao Domingo Legal, é bom lembrar o "princípio da precaução", em boa hora lembrado pela ministra Marina Silva no seu arrazoado contra a adoção da soja transgênica na próxima safra gaúcha.
Prudência e jurisprudência são inseparáveis, magistrados não podem perder de vista as implicações políticas e institucionais de suas sentenças e votos. Dentro de alguns anos, a suspensão do abominável Domingo Legal poderá servir de modelo e exemplo para acessos autoritários inomináveis e incontroláveis.
Quando este Observatório da Imprensa sugere um "controle social" sobre a mídia eletrônica não está propondo a criação de um órgão ou instrumento específico para policiar o rádio e a TV. "Controle social" é um elenco de iniciativas que começam com a auto-regulação, passam por ouvidorias e corregedorias abertas e devem culminar com agências fiscalizadoras oficiais que podem ter o formato da FCC americana ou da britânica Press Complaints Comission. Daí a vitória esmagadora desta opção na urn@ eletrônica em nossa edição passada.
Só a ligeireza de Veja (1/10, págs.52-53) e seu histórico ressentimento com este Observatório podem confundir "controle social" com censura. São opções diametralmente opostas que tornadas similares confundem a audiência do maior semanário brasileiro e impedem a consolidação de um repertório de ações verdadeiramente inovadoras. Está aí um caso em que a existência de uma Ouvidoria eficaz poderia acabar com as ilhas de arrogância e prepotência que envenenam nossa mídia e a distanciam de seus compromissos sociais [veja íntegra da matéria na rubrica Entre Aspas desta edição].
Uma coisa é certa: este debate deve ser levado às últimas conseqüências. Se a mídia, finalmente acostumou-se a ser observada e discutida em público, outras esferas de poder precisam igualmente despojar-se e descer do pedestal. Em nome da humildade, em nome da democracia.