Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Esther Hamburger

ASPAS

CIRCO ELETRÔNICO / DANIEL FILHO

"Cineminha na TV", copyright Folha de S. Paulo, 9/06/01

"Talvez ?O Circo Eletrônico? marque uma mudança de tom na literatura brasileira especializada. Ele traz à tona a complexidade específica do fenômeno televisivo, oferecendo material para o desenvolvimento de interpretações distanciadas sobre os significados múltiplos desse veículo na história recente do Brasil.

Na condição de quem conhece esse universo por dentro, Daniel Filho chama a atenção para a figura invisível, embora crucial, do produtor de televisão. O livro, que começa com incursões históricas quase anedóticas, cresce na medida em que abandona essa perspectiva para se concentrar nas funções e gêneros televisivos: autor, diretor, equipe, atores, pós-produção, todos dominados pela figura do produtor criativo.

Amálgama de ator, diretor, editor e executivo, o produtor é um profissional múltiplo, com formação artística, talento administrativo e liderança. Além de Daniel Filho, desempenharam funções afins José Bonifácio Sobrinho, Walter Clark e Cassiano Gabus Mendes. São homens autoritários, que exerceram cargos de comando, reuniram equipes heterodoxas e deram face profissional e lucrativa a uma empresa familiar.

O livro cobre quase 51 anos de história da TV, segundo depoimento de um dos profissionais estratégicos na construção de um sistema de produção original que, há pelo menos 30 anos, catalisa repertórios que os brasileiros compartilham e no qual se situam para equacionar dramas do cotidiano.

Em tom quase professoral, o autor adota a perspectiva do produtor que inventa, decupa, articula as diversas etapas de um processo de criação que é essencialmente coletivo e, ao fazê-lo, reforça o argumento dos que comparam a televisão brasileira ao cinema americano.

A referência à arte cinematográfica é uma constante no livro e se estende àquela produzida no Brasil. Logo na introdução, Daniel Filho justifica o título, atribuindo a Nelson Pereira dos Santos a expressão ?circo eletrônico? para definir o meio de comunicação cuja disseminação é lembrada como fator de decadência do cinema. Ao aceitar a sugestão, Daniel Filho veste a carapuça, mesmo porque nasceu numa família de atores e iniciou sua carreira no teatro de revista. Quando começou a trabalhar em televisão, em 1952, era ?um comediante experiente, sabia fazer o palhaço até com a maquiagem característica?.

A referência ao circo funciona como aceitação do caráter popular da televisão, que é entretenimento. Como a maioria dos profissionais de TV, Daniel Filho se antecipa às patrulhas ideológicas e delimita seu campo de atuação: reconhece que a cumplicidade do público é a obsessão do meio televisivo, demarcando um paradigma de criação que não se enquadra nos marcos autorais preconizados. Considerado arrogante e insuportável até por colegas, Daniel Filho tem noção do valor de seu trabalho, cuidadosamente sistematizado, por gênero e meio, ao final do volume.

A interlocução entre cinema e TV revela um ângulo sugestivo para a interpretação da história do audiovisual brasileiro. Aqui, vale uma pequena digressão. Não é possível ignorar o debate alusivo entre o cinema e a TV brasileira, no qual as referências ao circo e ao teatro são recorrentes. Em ?Bye, Bye Brasil? (1979), de Cacá Diegues, Chico Buarque cantava o fim da autêntica cultura nacional. O filme conta a história de um grupo de artistas itinerantes reunidos na ?Caravana Rolidai?, vencidos pelas ?espinhas de peixe? ou antenas de televisão espalhadas pelo território nacional. A trupe perde alguns membros, ganha um ipslone no final e é obrigada a flertar com a prostituição e o contrabando. Há no filme uma referência explícita às novelas da Globo nas imagens e som da vinheta de abertura de ?Dancin? Days?, de Gilberto Braga, dirigida por Daniel Filho, então no ar.

No outro pólo, a telenovela ?Roque Santeiro? (1985) também apresenta José Wilker e Fábio Júnior em papéis de destaque, ao lado de Regina Duarte, que faz a viúva Porcina depois que Beth Faria, que contracenou com os dois em ?Bye, Bye Brasil?, recusou o papel. ?Roque Santeiro?, de Dias Gomes e Aguinaldo Silva, supervisionada por Daniel Filho, problematiza com ironia e cinismo a resistência da crendice popular, que insiste em acreditar no santo que foi sem nunca ter sido, apesar dos esforços desmistificadores do padre, ligado à teologia da libertação, e do próprio Roque. Se o cinema alude à TV, a novela responde, ridicularizando-o na figura do galã bobo e galinha (Fábio Júnior) e do diretor gago e alienado (Ewerton de Castro).

Em compensação, o cinema internacional aparece como referência positiva e explícita, pois ?O Circo Eletrônico? é rico em citações de cenas e argumentos cinematográficos que inspiraram novelas, casos especiais e minisséries. O repertório diversificado de obras italianas, francesas, americanas, mexicanas serve de inspiração para a construção de climas, definição de movimentos de câmera e enquadramentos. Daniel Filho conta que foi contratado por Boni para dirigir novelas no final da década de 60.

O profissional versátil, já com quase duas décadas de experiência, aceitou o desafio de fazer o que Boni chamou de o ?seu cineminha? na TV. Daniel expõe sua memória fotográfica de cinéfilo bem formado. Embora citações cinematográficas não sejam privilégio seu, sua orientação certamente contribuiu para reforçar a convenção de usar o cinema como referência para comunicar climas e movimentos às equipes compostas de numerosos profissionais, que necessitam estar afinados em torno de um projeto.

Igualmente decisivo é o que o livro revela sobre o sistema de produção criado a partir do final dos anos 60, nos tempos de Walter Clark e Joseph Wallace, quando a Globo verticalizou a produção, deixando de se limitar a exibir os populares seriados anteriormente desenvolvidos pelas patrocinadoras e passando a produzi-los. Para fazer telenovelas que, na linha das ?soap-operas? americanas e novelas latino-americanas, eram produzidas por companhias fabricantes de sabonete, a emissora montou um departamento de teledramaturgia. A centralização se assemelhava ao sistema de estúdios norte-americanos, em que a produção, distribuição e exibição eram centralizadas por corporação.

A centralização da produção é acompanhada por outras medidas, como a padronização e definição de sistemas de administração de comerciais, a contratação de um corpo fixo de atores e autores, a criação de um departamento de pesquisas especializado em monitorar audiências e opiniões, e ainda a sofisticação do tratamento visual, cenográfico, de figurino, edição e trilha sonora.

Expressando teorias desenvolvidas na prática e que demonstram que fazer televisão é bem mais complexo do que os estereótipos supõem, Daniel Filho descreve com minúcia a rotinização do processo. Uma novela começa com um argumento aprovado e continua com uma sinopse, que teoricamente especifica os movimentos da narrativa, capítulo a capítulo. O ritmo intenso de gravação, mantido enquanto a novela está no ar, é precedido por estudo minucioso dos cenários, figurinos, personagens, pelo trabalho intenso com os atores, pela decupagem das cenas.

Daniel Filho define a busca da narrativa verossímil como essencial ao sucesso de um produto de teledramaturgia. E oferece amplo material que aponta para as referências históricas e jornalísticas na construção de narrativas que se tornaram verdadeiros palcos de problematização da vida contemporânea brasileira. Confirmando depoimentos de outros profissionais, Daniel Filho sustenta que a novela veicula novidades. A estrutura melodramática, repetitiva e convencional, é a base da narrativa.

Mas cada folhetim precisa surpreender. E por novidade se entende uma variedade de coisas que incluem: artigos de consumo, tecnologia médica, arranjos familiares e alusões políticas. Produtos eletrônicos, marcas de banco ou refrigerante, meias listradas, trilhas musicais, doação de órgãos, inseminação artificial, divórcio, segundos casamentos, perda de virgindade, pílula anticoncepcional são elementos que recheiam narrativas, elaborando ganchos que sustentaram o caráter de ?vitrina de modernidade? que as novelas assumiram. E potencializaram sua capacidade de impulsionar outros produtos, como por exemplo as trilhas sonoras, cujo desenvolvimento também está relatado no livro.

Das corridas de Fórmula 1, em ?Véu de Noiva? (1969), esporte em que o Brasil começava a se destacar, ao futebol em tempos de Copa Mundial, em ?Irmãos Coragem? (1970), a novela captura temas e imagens familiares, recontextualizando-os. As referências à corrupção política merecem destaque, uma vez que novelas como ?Roque Santeiro? e ?Vale Tudo?, emolduradas de verde e amarelo, anteciparam temas que dominariam a cena política nos anos 90.

Aqui há uma diferença em relação ao cinema clássico de Hollywood, fiel a narrativas diferenciadas para ficção e documentário, e elas não param aí. Nos EUA, o sistema de estúdios supunha competição entre diversas companhias, e essa competição, por limitada que fosse, oferecia espaço de manobra aos produtores. No Brasil, essa competição não vigorou nos anos áureos do sistema verticalizado, quando a rede Globo detinha praticamente o monopólio da audiência, e ainda hoje é limitada.

Aqui a verticalização tenha sido talvez mais radical porque incorporou também o Estado, governos e políticos, agentes ativos na distribuição de concessões, no exercício da censura, na instalação da infra-estrutura técnica necessária à expansão do meio. A centralização da estrutura brasileira limita inclusive o papel dos produtores, que, devidamente reconhecidos nos EUA, no Brasil estão encapsulados na situação de empregados, possuem menos margem de manobra e se sentem na iminência do esquecimento.

Nos EUA o sistema de estúdio se desmonta na década de 50. No Brasil, os anos 90 testemunham um início de diversificação, ainda em curso. Há hoje alguma competição entre emissoras e ensaios, ainda tímidos, de produção independente. As novelas já não conseguem sintetizar toda a novidade. E talvez já nem seja possível ?antenar? o Brasil em uma só emissora, um horário, um programa.

As novidades em curso anunciam mudanças que captam e expressam redefinições da ordem social. Talvez a passagem para uma nova fase permita um distanciamento histórico que facilite interpretações capazes de dar conta dos paradoxos de uma indústria quase monopolizada, cujos produtos constituem elemento ativo da história recente do país e cujos mistérios não são redutíveis a intencionalidades ideológicas ?pré-supostas?, seja dos militares, autoritários e conservadores, seja de autores intelectualizados e de esquerda, seja de publicitários eficientes no estímulo ao desenvolvimento de um mercado consumidor.

Sobre novelas, por exemplo, o autor adverte que são principalmente femininas. Sua afirmação expressa um amplo consenso, que vai de Homero Sanchez, o mestre da pesquisa de mercado no Brasil, a telespectadores nas mais diversas classes sociais. Esse consenso nacional, mais uma vez comprovado, suscita a curiosa questão sobre os nada desprezíveis 40% de audiência masculina que a novela das oito manteve ao menos no período áureo que vai de 1970 a 1989. Como explicar que a almejada ?integração nacional?, pretendida pelos militares, tenha ocorrido principalmente por meio da novela, gênero seriado, feminino e melodramático, associado ao que de mais comercial a indústria cultural é capaz de produzir?

Para além de projetos específicos, a televisão brasileira capta e expressa redefinições em curso nos domínios do masculino e do feminino, da notícia e da ficção, do político e do doméstico, do público e do privado.

As inúmeras possibilidades de comparação entre o cinema e a TV que ?O Circo Eletrônico? abre são sugestivas para pensar de que modo elementos da cultura audiovisual, disponíveis no mundo globalizado, são apropriados de maneiras específicas em locais e contextos históricos distintos. O livro é agradável de ler, denso em informações úteis, servindo a um público que inclui os telespectadores em geral, os estudantes e os pesquisadores do audiovisual.

O Circo Eletrônico – Fazendo TV no Brasil Daniel Filho Jorge Zahar Editor (Tel. 0/xx/21/240-0226) 359 págs., R$ 39,00

(Esther Hamburger é antropóloga e professora na Escola de Comunicações e Artes da USP)"

    
    
              

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