REALITY SHOWS
"Dois casos americanos: ?Família Osbourne? e 11 de Setembro", copyright Trópico (www.uol.com.br/tropico), 2/05/02
"A constatação de que mesmos textos e/ou imagens são passíveis de múltiplas interpretações já não é mais novidade. Desenvolvida no contexto pós-estruturalista dos anos 70, 80 e 90, diferentes correntes teóricas e disciplinares se dedicaram desde então a demonstrar que os mesmos textos são passíveis de diferentes interpretações em diferentes contextos.
Mas qual é o limite dessa variação de significados? E como ela se aplica ao documentário, à ficção e ao ?reality show??
Bill Nichols, professor de história da arte no programa de doutoramento em Estudos Visuais e Culturais da Universidade de Rochester, (EUA), autor, entre outros, de ?Representing Reality: Issues and Concepts in Documentary?, ?Introduction to Documentary? e ?Maya Deren and the American Avant-Garde?, e Michael Renov, professor de estudos críticos da Escola de Cinema e Televisão da University of Southern California (EUA), autor de ?Theorizing Documentary? e ?Collecting Visible Evidence?, estiveram no Brasil para participar da Segunda Conferência Internacional do Documentário ?Imagens de Conflito?, uma promoção do 7o. Festival Internacional do Documentário de São Paulo, em parceria com o Cinusp e com o Departamento de Cinema, TV e Rádio da USP.
No dia 17 de abril, os dois convidados conversaram com alunos e professores na universidade. Leia abaixo os principais trechos desse seminário, em que falam dos ?reality shows? e suas relações com o documentário.
Bill Nichols e Michael Renov discutiram os limites entre documentário e ficção, as distinções entre o trabalho de documentaristas que procuram criar sobre registros domésticos da vida cotidiana e ?reality shows?, como ?A Família Osbourne?, da MTV, que deve estrear neste mês no Brasil.
Os estudiosos do documentário comentaram também as tensões entre o produto sensacionalista das grandes corporações televisivas e o trabalho autoral de independentes. O atentado de 11 de setembro serviu como exemplo na discussão das maneiras pelas quais as mesmas imagens se prestam a diferentes interpretações dependendo das formas como são editadas.
Bill Nichols: Um bom sinal do futuro do documentário foi o evento trágico de 11 de setembro, com o ataque nas torres do World Trade Center. A maior parte das pessoas nos Estados Unidos -e provavelmente no mundo- estiveram coladas à televisão querendo ver imagens e entender o que aconteceu e como aconteceu.
Ao mesmo tempo, Hollywood estava tirando do mercado filmes que lidam com terrorismo, seqüestro, ataques, violência que de alguma forma se assemelhava muito aos eventos. Acho que essa é uma razão pela qual temos documentário.
O documentário enfrenta questões que pessoas querem ouvir de maneiras muitas vezes diferente da ficção. E um dos fenômenos recentes mais interessantes é como diretores estão aprendendo a trabalhar de maneira a cruzarem as fronteiras entre documentário e ficção.
Um exemplo: a MTV nos EUA está apresentando ?A Família Osbourne? (?Osbourne Show?), um programa que é real demais para ser ficção e ficcional demais para ser documentário. Há uma história de documentários sobre famílias e vida familiar (1) , e acho que os Osbournes estão levando o gênero um passo adiante. O programa é uma combinação bizarra do mundo no qual eu cresci -uma família feliz, ajustada, de classe média alta. Uma série de personalidades, intenções, desejos, subjetividades, ações que parecem contrárias àquele mundo, são apresentadas em um estilo que dificulta o discernimento do que é daquele de fato a realidade e o que aparece como resultado de montagem, edição, música e comentário.
Concordo que é possível pensar uma combinação da ?teoria? e da ?prática?. Nos Estados Unidos a maior dicotomia vem quando saímos da universidade e temos que decidir fazer documentário, ou filme etnográfico de maneira ?independente?, seja lá o que isso quer dizer, ou trabalhar em uma estrutura profissional corporativa.
A maior parte das pessoas que fazem filmes baseados na realidade para o Discovery Channel ou para a televisão pública, onde há espaço para liberdade de expressão, estão preocupadas com questões práticas, como orçamento, tempo de filmagem, que as vezes se dão em detrimento do questionamento sobre como fazer um filme que desafie a audiência, que construa a audiência de uma maneira diferente, que ajude as pessoas a perceber o mundo com as discriminações de gênero, raça e classe, de uma maneira diferente do que elas viam antes. Quanto mais você pensa nessas questões -que você poderia denominar teoria, conceitos, ou política- mais você vai escolher uma rota independente, que é mais difícil de financiar.
Michael Renov: Eu gostaria de continuar com o que Bill falou sobre o 11 de setembro. Não posso deixar de pensar sobre uma exibição que ocorreu 6 meses depois do evento e que volta a colocar a diferença entre um estilo mais corporativo e um estilo mais pessoal, doméstico, de fazer documentário.
Espero que esse exemplo seja relevante para pensar como teoria e prática se encontram em torno da questão ética. Embora teóricos tenham muito a dizer sobre padrões éticos, é o profissional prático que se defronta regularmente com decisões que têm implicações éticas e políticas.
Há dois irmãos franceses, os irmãos Gaudet, que estavam fazendo um documentário sobre um bombeiro em Nova York. No dia 11 de setembro, um dos irmãos por acaso estava filmando e gravou o primeiro avião batendo na primeira torre e, portanto, possuía as primeiras imagens, talvez as imagens mais completas de tudo que aconteceu naquela manhã, já que ele continuou a filmar durante a manhã inteira.
Imaginem que esses dois jovens tiveram acesso ao interior das torres porque eles eram amigos e aceitos pelos bombeiros _um grupo que estava perto do que veio a ser chamado de ?ground zero?. Então um cineasta foi admitido à torre 1 do World Trade Center e filmou lá dentro durante e depois que o segundo avião atingiu a segunda torre. Esse cineasta tomou decisões na hora sobre o que filmar.
Havia imagens horríveis que ele decidiu não filmar, incluindo pessoas com o corpo literalmente em chamas, por causa do combustível que escorria pelos fossos dos elevadores. Eu não sei exatamente como isso ocorreu, mas esse irmão, o Gilles, disse que de alguma forma, talvez através da visão periférica, ele viu essas imagens e decidiu não olhar, não registrar as pessoas sofrendo daquele jeito. Você ouve na banda sonora da fita o som de corpos atingindo o chão. Não havia nada que ele pudesse fazer para mascarar ou ocultar o som, mas ele fez o que pôde para não olhar para aquilo que ele pensou ser irrepresentável.
Mas a CBS decidiu exibir uma versão editada do material dos irmãos Gaudet por ocasião do aniversário de seis meses do atentado de 11 de setembro. A emissão foi extremamente polêmica. Muitas pessoas, amigos ou parentes de gente que morreu no atentado foram contrárias à exibição do material. Essas pessoas acharam que os eventos eram muito recentes para que as pessoas fossem expostas dessa maneira. E protestaram.
Uma coisa que a CBS fez com essa exibição, que foi massivamente divulgada, foi se apropriar das imagens -gravadas em vídeo digital- feitas pelos irmãos franceses. Mas a emissora também se apropriou do dia em si. O nome da emissão foi simplesmente: ?11/09?. A emissão foi promovida e exibida, quase sem interrupções comerciais, em um evento apresentado por Roberto de Niro, um ator bastante associado com a cidade de Nova York. Você tinha o trabalho de dois cineastas independentes apropriado, editado, incluindo a apresentação de Roberto de Niro, pela CBS.
O estilo do material que foi ao ar era monumental. Mas assistindo o programa é possível detectar uma batalha entre o que Bill estava chamando de modelo independente de fazer documentário e o modelo industrial ou corporativo.
O trabalho dos videomakers era cru, emocional, forte de assistir. Mas foi empacotado de maneira a garantir a apropriação do e evento, para cumprir o que a CBS necessitava daquela ocasião.
O ponto de referência mais próximo ao material filmado por Gilles Gaudet, que por sinal acabara de aprender a filmar naquele verão, é George Halliday, que é o homem que por acaso estava na varanda de sua casa em Los Angeles, quando viu e registrou Rodney King ser espancado por policiais em 3 de março de 1991. Sua fita, como se sabe, se tornou um importante ponto de conflito e interpretação em vários julgamentos.
Isso tem a ver com o que Bill Nichols se referia sobre o poder do documentário -sua capacidade de capturar e representar o mundo de maneira dificilmente contestável e preenchida de emoção. Essa é a promessa.
É temerário como o documentário pode ser usado para os mais variados fins, muitas vezes imprevisíveis. Seja a maneira pela qual os advogados de defesa dos policiais envolvidos no caso distorceram o significado que achamos que o vídeo tinha, seja as maneiras pelas quais uma corporação pode se apropriar de um registro como este do 11 de setembro e usá-lo como uma oportunidade de marketing.
Pergunta: Como se dá essa manipulação de significados? Como o trabalho de documentaristas americanos importantes da década de 60, como De Antonio, se insere nesse jogo?
Renov: Estou descrevendo uma ?atividade semiótica? que tem a ver com a atribuição de sentido a signos diferentes. Então não é necessariamente uma questão de bons e maus. Às vezes o sentido correto é manipulado pelos profissionais corporativos. O ato de atribuir sentido a imagens e sons é uma atividade aberta e não há garantia de certo ou errado. É por isso que, se você é cineasta, você deve ser bom no que faz e pensar em como você organiza as coisas. Deve estar ciente de que muito do trabalho pode ser deturpado muito facilmente.
Nichols: Eu diria que Emile De Antonio é um dos grandes documentaristas de todos os tempos. Fico contente que você tenha mencionado o nome dele. Michael e eu estamos co-editando um livro sobre um outro cineasta que trabalha, como De Antonio, com material filmado por outras pessoas -Peter Forgasch, que mostrou um filme aqui no festival há alguns anos. Ele usa filmes inteiros, a maioria deles realizados nos anos 30 e 40 na Europa Oriental, na Hungria e em outros países, reedita o material, adiciona música de um tipo muito distinto e não nos dá entrevistas ou narração para explicar coisas, mas coloca comentários indiretos de diversos tipos para produzir um filme completamente diferente do original.
O que era um filme caseiro, torna-se como que uma história dos anos 30 e 40 e do que aconteceu sob o nazismo, ou sob o comunismo, dependendo do filme. São filmes muito poderosos, e como os de De Antonio, eles demonstram como qualquer imagem pode ser usada para muitos propósitos diferentes.
Pergunta: Em que medida esses filmes baseados em filmes dos 30 e 40, que retrabalham registros domésticos, se assemelham com ?reality shows?? Renov: Essa é uma questão interessante, porque estamos falando de um contraste radical. O que diferencia por exemplo o programa da MTV e Forgasch e De Antonio, é precisamente um processo de pensamento -mediação em suma. Não há transparência, não há esforço para que a imagem seja manipulada rapidamente, mas ao contrário, há uma ênfase no processo de pensamento cuidadoso. De Antonio lecionou filosofia durante um certo tempo. Ele era um filósofo muito interessante. Forgasch estudou história, mas é mais um autodidata.
O pensamento e o tempo despendido no trabalho com o material é muito diferente do caso da MTV ou outros exemplos que se baseiam na sensação e na superfície. As diferenças podem ser descritas como diferenças entre superfície e profundidade, pensamento e mediação.
Nichols: Uma outra maneira de colocar seria dizer que a ?reality TV? tem mais a ver com espetáculo, enquanto o trabalho desses documentaristas tem mais a ver com historiografia, com escrever história em forma de filme, para oferecer às pessoas uma forma nova e única de entender o que ocorreu no passado.
?Reality TV? creio que é sobre esquecer o passado, fruir o momento. Veja como os Osbourne são malucos, ou veja como a polícia é efetiva. E aí assista um comercial de automóvel. Acho que está tudo na mesma espécie de registro. Então é muito diferente, embora ambos envolvam a manipulação de imagens produzidas por outras pessoas.
Renov: Bill falou em espetáculo. Ainda uma outra maneira de colocar essa questão seria pensar em sensação, significando um tipo de efeito ?resposta instantânea? e ?resposta corporal?. E eu argumento que essa é uma das coisas que a TV pode fazer melhor, por causa do imediatismo do sistema de emissão e recepção. Mas é irônico, por exemplo no ?game show?, em que as pessoas estão dispostas a fazer as coisas mais escabrosas, como comer insetos.
Mas a TV pode servir ao outro lado também, por isso é difícil de entender. De Antonio recicla material de televisão. O trabalho de Forgasch é difundido pela televisão, especialmente pela TV européia, que é paga e costuma exibir seus filmes, que são meditações sobre a história e nos oferecem a possibilidade de entrar em contato com esses momentos do passado.
Pergunta: A estrutura comercial da TV e do cinema americano -o alto custo, a gravação em estúdio- faz com que a realidade apareça de maneira maquiada, diferente da vida cotidiana das pessoas. Será que o cinema brasileiro, até pela falta de estrutura, tem mais de documentário e de realidade?
Renov: Há muitas coisas que se poderia dizer sobre isso. Nos Estados Unidos há uma competição comercial intensa entre a pequena e a grande tela. E, nessa competição, a pequena tela se especializa na realidade, mesmo que não seja a realidade, como acabamos de descrever, ela joga com a realidade. Já a grande tela joga com a hiperrealidade, com os efeitos especiais que a tecnologia digital permite e que se ajustam melhor na tela grande. Eu diria que uma grande parte disso é simplesmente uma jogada de marketing que visa dar continuidade à idéia de que o cinema é simplesmente monumental e não cabe na tela pequena, não dá para ser assistido em casa. Tudo ficaria diminuído na tela pequena. É basicamente uma jogada econômica."
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"TV sem moralismo", copyright Trópico (www.uol.com.br/tropico), 2/05/02
"A onda recente de ?reality shows? ao redor do mundo estimula o debate acirrado sobre temas recorrentes, como o excesso de sensacionalismo, a invasão de privacidade, o voyeurismo, a impropriedade de determinadas cenas na TV, a falta de ética envolvida na realização de experimentos com seres humanos.
Embora alguns desses elementos estejam, de uma forma ou de outra, presentes nos programas, cabe perguntar se justificam o sucesso de público e o alarde, que fazem dos ?reality shows? uma espécie de ?fenômeno midiático? global e contemporâneo inconteste.
O moralismo que marca o debate dificulta o discernimento. O que há de realmente novo nesses reality shows do início do século 21? Polêmicas em torno da propriedade da exibição de sexo e escatologia na mídia não são novas. O teatro de revista, o cinema desde os primeiros tempos, o circo, as revistas pornográficas e, é claro, a TV, ao longo do tempo ofereceram assunto de sobra à especulação. Estaria nessas violações o diferencial dos reality shows?
Versões mais ou menos escandalosas sugerem que não. Basta notar a disseminação de versões ?politicamente corretas? ou de ?ação afirmativa? dessas atrações, como os recém estreados programas de formação de calouros.
A tematização do cotidiano de pessoas anônimas, por sua vez, ecoa experiências televisivas passadas, presentes desde os primórdios da história da TV no Brasil, nos Estados Unidos e em outros lugares, como sugere Arlindo Machado em artigo nesse dossiê.
A performance dos calouros no Chacrinha, os encontros amorosos no Sílvio Santos, as histórias escabrosas no Homem do Sapato Branco são apenas alguns exemplos brasileiros.
Embora experiências desse tipo estejam presentes na história, elas não ganharam as dimensões de público, publicidade e crítica que provocam hoje. Essa repercussão inusitada constitui parte da novidade a ser explicada.
Trópico dedica esse dossiê aos ?reality shows?. A idéia aqui é contribuir para retirar a discussão do terreno moral em que ela na maior parte das vezes se situa. A história do gênero levantada por Arlindo Machado contribui para ponderar a novidade do fenômeno.
Vale notar que o primeiro ?reality show? norte-americano foi exibido pela PBS, rede de televisão pública daquele país, conhecida pela qualidade de sua programação. Era um programa que acompanhava o cotidiano de uma família ?normal? de classe média americana.
A iniciativa provou-se polêmica pela repercussão que gerou na época. Longe de simplesmente representar à distância, como se supunha, o programa interferiu na vida dos familiares celebrizados. A morte de um deles, gravada recentemente, anos depois, a pedido do próprio, está programada para ir ao ar no fim do ano.
De lá para cá o formato se diversificou. As versões criadas pela Endemol, produtora holandesa se celebrizaram pela apelação. Referências à exibição de atitudes e ações consideradas inadequadas abundam nas diversas partes do planeta. Distante da origem norte-americana, o formato hoje é dos mais comerciais.
As menções de Bill Nichols e Michael Renov ao ?reality show? no seminário que os dois professores norte-americanos especialistas em documentário fizeram para alunos e professores do Departamento de Cinema, TV e Rádio da USP, ao ?reality show? da MTV, atual sucesso nos EUA, lembram que vertentes que agradam a classe média alta, persistem.
No Brasil, como apontam Eugênio Bucci e Bia Abramo em suas participações nesse dossiê, o ?reality show? ecoa a estrutura seriada e folhetinesca da novela. Aqui, o gênero se apoia em seu parente ficcional para gerar um tipo de torcida semelhante.
É como se as pessoas se inspirassem em convenções narrativas do gênero telenovela para criar personagens e tramas em ?Casa dos Artistas? ou ?Big Brother?. Bia Abramo se detêm na análise do processo de ficcionalização do ?reality?.
Eugênio Bucci discorre sobre as maneiras pelas quais o ?reality show? de alguma maneira realiza uma rede, apontando uma pista para desvendar a novidade do gênero. A razão do caráter tão provocativo do gênero pode não estar em nenhum dos excessos convencionais.
Daniel Filho se apresenta com o referencial pragmático do profissional céptico. Para ele, a saída parece ser a de, na ofensiva, assumir um caráter desglamourizado da TV. Roberto Moreira vai na linha oposta, provocando pela negação. Marcelo Tas ressalva a sensibilidade da audiência, sensível que é à formação de redes contemporâneas.
A Rede Globo e o SBT acabam de colocar no ar mais dois ?reality shows?. Enquanto as emissoras competem por meio do gênero, a discussão continua.
Em que medida os ?reality shows? podem ser considerados como parte de um movimento -o termo não é bom já que sugere algo orgânico- em direção a representações que problematizem sua capacidade de intervenção social? Em que medida, como sugerem Nichols e Renov, a diferença entre o produto da TV comercial e o produto do documentarista hermético, mas também dedicado a registros do cotidiano, está situada no pensamento e na quantidade de elaboração investidos nos dois produtos? Mas será possível afirmar que o produto comercial demanda menos planejamento? Como distinguir entre produtos que apresentam níveis de complexidade tão diferenciados? É um debate que não se esgota."
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"Busca pelo sucesso atropela talento musical", copyright Folha de S. Paulo, 30/04/02
"Mais dois ?reality shows? estrearam no último sábado: ?Fama?, na Globo, e ?Popstars?, no SBT. As duas emissoras perdem a oportunidade de arriscar e continuam a apostar na apresentação de programas parecidos em horários semelhantes.
A realização profissional no mundo do espetáculo permanece em pauta, dessa vez de maneira mais profissional e explícita. Os programas acenam com carreiras artísticas. Prometem uma espécie de transfusão de sangue azul que seria capaz de promover a aceitação de jovens talentos em um universo que aparece como o terreno da realidade -o dos holofotes.
A competição do domingo agora acontece também aos sábados. Os dois novos programas, como seus antecessores, têm origem em formatos já testados com sucesso no exterior. Seria talvez possível afirmar que ?Fama? e ?Popstars? representam uma ?evolução? em relação à versão ?casas?.
Aqui não se trata simplesmente de eliminar o concorrente em gincanas entediantes e/ou escatológicas. A motivação é produtiva. As provas avaliam algo supostamente genuíno: o talento musical. Mesmo que não vençam, os aspirantes ao sucesso passam pela experiência das aulas em grupo.
Na Globo, as semelhanças com o ?Big Brother? são grandes. Doze ?eleitos?, homens e mulheres, convivem no interior de uma ?academia?. Têm aulas de dança e canto; se exercitam, aprimoram suas habilidades. A cada semana dois serão eliminados. O público pode salvar um.
No SBT o palco da estréia foi o sambódromo. O espetáculo começa de massa. Seis mil garotas, selecionadas num universo de 30 mil inscrições, dançam e cantam lideradas por professores. E são avaliadas por um júri de especialistas, devidamente apresentado ao público -currículo e opiniões.
Há um apelo democratizante nessas iniciativas. No SBT a mensagem é explícita. O programa deve revelar talentos dispersos no território nacional. O objetivo é formar uma banda.
O sucesso pré-concebido trai o espírito da empreitada. Não interessa que tipo de música a banda fará ou qual a afinidade que pode vir a existir entre os componentes.
Consagrado antes mesmo de existir, o conjunto musical provavelmente já possui gravadora e contrato garantidos para o primeiro CD, sucesso antecipado de vendas. Já quanto ao segundo, o futuro é incerto e improvável.
Os compactos altamente editados que irão ao ar semanalmente, em linguagem moderna, deixam o tão anunciado talento individual de lado para enfatizar depoimentos alinhavados por uma narrativa formatada em tom convencional de melodrama. A competição é regada a suor e lágrimas. O foco não está na performance artística de cada um dos jovens bonitos e charmosos selecionados. As câmeras estão atentas às manifestações de emoção e gratidão.
Não se trata aqui de assumir um tom nostálgico convencional ao lembrar, por exemplo, que os festivais da Record ofereceram espaço a novos talentos, deram vazão ao espontâneo e imprevisto, mas seu foco estava na qualidade musical -e por isso fizeram história.
A disposição para o sucesso é louvável. Pena que aqui se confunda sucesso com fama, glamour com espetáculo. Paradoxalmente, no mundo saturado de câmeras é o valor do segredo que aumenta. E a publicidade não garante a sonhada transformação do plebeu em príncipe. Resta a diversão dos participantes."