Saturday, 28 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Estrela do jornalismo perde brilho

WOODWARD & BUSH

Marinilda Carvalho


Bush at War, de Bob Woodward, Simon and Schuster, 376 pp., Preço: US$ 28 [sobre matéria On the west wing, de Anthony Lewis, publicada em 13/2/03 na The New York Review of Books]


A fama e a glória perseguem o jornalista Bob Woodward desde que suas investigações sobre o escândalo de Watergate, com o parceiro do Washington Post Carl Bernstein, resultaram na renúncia de Richard Nixon à presidência dos Estados Unidos em 1974. [No filme de Alan Pakula Todos os homens do presidente, Robert Redford encarnou Woodward.] Todos os livros dele atingem rapidamente o status de best seller, e o mesmo vem acontecendo com Bush at War (Bush em guerra), lançado pela Simon and Schuster no calor dos preparativos para a guerra ao Iraque.

Para um ícone do jornalismo investigativo como Woodward, portanto, não deve ter sido fácil ler no dia 13 de fevereiro na New York Review of Books, a bíblia da intelectualidade, uma resenha cheia de reparos a seu novo livro, assinada pelo veterano jornalista Anthony Lewis. Prestigiado colunista do New York Times de 1969 a 2001, duas vezes agraciado com o Pulitzer e profundo conhecedor de política americana e internacional, Lewis começa comentando o "espantoso acesso" que Woodward teve à Casa Branca para escrever uma espécie de "prestação de contas" (expressão do autor) do presidente George W. Bush, em guerra naqueles primeiros 100 dias após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 ? segundo Lewis, "os dias em que teve início o processo de transformação da América".

"Longas entrevistas com Bush e seus assessores, anotações nas reuniões do Conselho de Segurança Nacional (CSN) e assim por diante", escreve Lewis. "Duvido que qualquer outra história sobre um período de crise tenha reproduzido as palavras de tantos participantes decisivos, tão perto dos acontecimentos". E aqui começam os muitos reparos ao livro (apenas dois parágrafos são elogiosos), listados abaixo:

** Trata-se de um tipo curioso de história, diz Lewis, ao qual faltam os fundamentos de um trabalho histórico: contexto, análise, um ponto de vista. Woodward pode negar o título de historiador. Não tenho ponto da vista, poderia argumentar. Sua intenção seria apenas contar-nos o que aconteceu, ponto por ponto. A ausência de análise torna Bush at War um livro frustrante. Página após página surgem perguntas na mente do leitor que Woodward não menciona, muito menos tenta responder. Um exemplo: quando e como a guerra ao terrorismo se transmutou na guerra ao Iraque. A idéia de atacar o Iraque, prossegue Lewis em sua análise, surgiu no CSN, no dia seguinte ao 11/9, diz o livro. Donald Rumsfeld, secretário de Defesa, perguntou: por que não vamos atrás do Iraque, e não apenas da al-Qaida? (Woodward não usou aspas aqui, ressalva Lewis.) Em Camp David, no dia seguinte, Rumsfeld repetiu a proposta, contestado pelo secretário de Estado, Colin Powell, e pelo vice-presidente, Dick Cheney. Em agosto de 2002, entretanto, espanta-se Lewis, Cheney estava publicamente defendendo uma guerra para depor Saddam Hussein. O que houve nesse ínterim? Woodward não explica.

Woodward relata que Bush teria dito em 17/9/2001 não haver evidências para atacar o Iraque. Mas no Washington Post de 12/1/2002, lembra o atentíssimo Lewis, Glenn Kessler reportou que justamente em 17 de setembro Bush assinara o plano para a Guerra no Afeganistão, que determinava que o Pentágono estudasse opções militares para uma invasão do Iraque. Segundo a matéria, os defensores da guerra ao Iraque convenceram Bush sobre isso em questão de dias, senão horas, após o 11/9. Lewis insiste: a matéria de Kessler tinha outra informação crucial ? os planos contra o Iraque foram mantidos em segredo não só do público, mas de seus críticos no próprio governo, inclusive Colin Powell. Esses críticos ainda discutiam a questão meses depois, embora Bush já tivesse tomado sua decisão.

** Outra frustração no livro: Woodward cita frase de Bush no CSN em 17/9/2001: "O procurador-geral, a CIA e o FBI vão ajudar na proteção da América contra novos ataques". (declaração estranhamente vazia numa tal reunião, observa Lewis, mais adequada a um discurso tranqüilizador). Então, Woodward escreve: "Bush determinou ao procurador John Ashcroft que solicitasse ao Congresso autorização para o FBI rastrear, grampear e reprimir terroristas ? um projeto já em andamento." Teriam essas palavras de Bush conduzido Ashcroft à política de agressão às liberdades civis, com a prisão secreta de centenas de estrangeiros, a afirmação do poder de encarcerar indefinidamente cidadãos americanos sem julgamento ou acesso a advogado se o presidente os considerasse "combatentes inimigos"?, pergunta Lewis. No livro, nada é dito sobre as medidas contra o terrorismo interno ou sobre o conhecimento delas por parte de Bush. O leitor quer saber mais. Woodward diria que escreveu um livro diferente. Muito justo. Mas o acesso que ele teve produziu pautas instigantes que não foram exploradas, reclama Lewis.

** Bob Woodward é um fenômeno jornalístico desde Watergate, elogia a resenha, para em seguida alfinetar: nos últimos tempos tem publicado o que Gerard Baker, do Financial Times, de Londres, chamou de "lustrosas prestações de contas promocionais das mais poderosas figuras públicas da vida americana". Um livro de Woodward é um acontecimento, descortinando aos americanos os bastidores da Casa Branca, do Federal Reserve e de outras instituições geralmente restritas. Esses livros têm um tom singular, uma suave onisciência que muitos críticos condenam, um misto de citações sem procedência e declarações entediantes sobre o que aconteceu e o que sentiram os personagens enquanto as coisas aconteciam. Tais livros tendem a mostrar seus personagens principais em moldes heróicos, critica Lewis. Em Bush at War, Woodward conta uma passagem em que Bush dita seu diário, tarde da noite do 11 de setembro: "O Pearl Harbor do século 21 aconteceu hoje." Woodward então escreve: "Ele agora era um presidente em tempo de guerra. Soldados e cidadãos, o mundo inteiro, captariam logo seu nível de comprometimento, energia e convicção. Sua imagem amplamente divulgada, de um homem sem peso, pouco afeito a detalhes, distante e até ignorante teria que ser dissipada. Ele tinha muito trabalho a fazer."

Pode-se praticamente ouvir a música, ironiza Lewis.

Em seguida, o veterano jornalista faz uma pungente autocrítica: Woodward é um repórter de primeira classe, elogia. "Constatei isso em 1997 quando, em matéria com Susan Schmidt para o Washington Post, ele escreveu que investigadores do promotor independente Kenneth Starr, que supostamente apurava o papel do presidente Clinton no escândalo imobiliário de Whitewater, em Arkansas, estariam fazendo perguntas sobre ?possíveis relações extraconjugais? do ex-governador. Um auxiliar de Starr desmentiu a matéria, que eu critiquei numa coluna como exemplo de jornalismo de tablóide. Eu não poderia estar mais errado. Logo Starr mostrou sua obsessão pela vida sexual de Clinton. Woodward e Schmidt tinham antecipado um indício do maléfico roteiro de Starr."

** O elogio dura pouco. Lewis faz em seguida graves críticas ao autor: Bush at War, como outros livros recentes de Woodward, não é um exemplo de jornalismo investigativo que revela verdades inconvenientes. É exemplo, antes, de uma troca: acesso por glória. Quando Woodward se aproxima de uma pessoa de alto cargo diz, provavelmente ? especula Lewis ?, que quer compreender como as grandes decisões são tomadas, que já entrevistou outras fontes, e que escreverá sobre fulano fale fulano ou não com ele.

Assim, a maioria das pessoas concorda com a aproximação, temendo o que outros possam dizer a seu respeito, e sabendo que se um livro está a caminho melhor cooperar para aparecer bem. E aparecem bem. Bush at War começa com nove páginas sobre a CIA e seu diretor, George Tenet. Ambos tratados com silencioso respeito. O flagrante fracasso da CIA na questão do terrorismo é explicado adiante como resultado da fraqueza de Clinton. (Woodward dá constantes estocadas em Clinton no livro ? registra Lewis ?, refletindo fielmente o desprezo de Bush e dos conservadores pelo ex-presidente).

Uma amostra de como o livro trata o vice-presidente Cheney: "Após 37 anos de casamento, Lynne Cheney, que detém um Ph.D. em Literatura Inglesa e preside a National Endowment for the Humanities, ainda fica maravilhada com a coisinha dentro da cabeça de seu marido, que permite que ele se concentre no que é importante. Ultimamente ele está preocupado com nada menos do que o futuro do mundo."

** Woodward acrescenta um tom fatalista ao livro repetidamente observando que documentos a que teve acesso tinham o carimbo de TOP SECRET (em letras maiúsculas). E habilmente recorre a pequenos episódios para mostrar ao leitor que estava lá: Bush telefona a Ferdinand Garcia, o garçom: "Ferdie, quero um hambúrguer." Após uma estressante reunião em Camp David, Bush brinca com um quebra-cabeça. Condoleezza Rice chora ao ver na TV a troca da guarda no Palácio de Buckingham, a banda tocando o hino americano, The Star-Spangled Banner.

As piadinhas não tornam o texto vivo. Nem os sinais da importância do autor, como a etiqueta TOP SECRET nos documentos, fazem o leitor sentir que está sendo informado de coisas de grande interesse. A matéria subjacente certamente tem alto significado, mas a repetição de reuniões e cenas com personalidades faz de Bush at War o exato oposto do clichês "difícil parar de ler". Uma razão é que a escrita é sem sabor; a outra é que o livro desliza na superfície, dando-nos retratos recortados do que Bush e seu pessoal disseram após o 11/9, sem realmente entrar nos temas que o terrorismo levantou para a América e o mundo.

** A narrativa pura dos fatos é um estilo ultrapassado de jornalismo. Foi enterrado nos anos 1950, nos tempos do senador Joe McCarthy, quando os jornalistas deviam simplesmente relatar o que ele dizia, sem informar o leitor sobre suas mentiras. Assim, o jornalista-gravador foi substituído pelo jornalista que tanto reporta quanto interpreta os eventos. Isso tem seus perigos, também, mas nenhum leitor de jornal ficaria satisfeito hoje com "apenas os fatos." Isso é ainda mais insatisfatório num livro.

** A técnica de Woodward tem outro aspecto preocupante. Podemos confiar na maneira com que ele lida com suas fontes, mais neste do que em outros livros seus; sabemos que ele teve duas longas entrevistas com Bush e falou com muitas outras pessoas. Mas isso não significa que o resultado seja a verdade ou algo próximo dela. É raro um entrevistado falar de seus fracassos ou do que saiu errado. A maioria tenta mostra que é sincera, mas sem tocar em temas realmente questionáveis. Quando um advogado admitiu perante a Suprema Corte que um precedente lhe era contrário foi cumprimentado pela sinceridade. Justice Holmes murmurou: "Não há nada tão enganador quanto a sinceridade."

** É o contexto que nos leva mais perto da verdade. Como teria sido útil se Woodward, ao registrar o rigor de Donald Rumsfeld em relação ao Iraque, dissesse ao leitor que em 1983 ele foi ao Iraque como emissário especial do governo Reagan, cobra Lewis. Então, Saddam Hussein usava armas químicas em sua guerra com o Irã quase diariamente, mas Rumsfeld, evidentemente, não mencionou isso quando encontrou Saddam. Este encontro amistoso abriu caminho para a restauração das relações entre os Estados Unidos e o Iraque de Saddam. (Michael Dobbs descreveu este episódio no Washington Post de 30 de dezembro de 2002.)

Ainda assim, Bush at War contém algumas revelações impressionantes, reconhece a Lewis em sua resenha. Não sabíamos que a CIA enviava aos chefes militares afegãos pacotes de dólares para combater o Talibã, algo próximo de 70 milhões, diz Woodward. Ele conta como as forças especiais da CIA foram lançadas em território afegão antes da guerra, iniciada em 26 de setembro com um agente conhecido apenas como Gary. (alguns relatórios dizem que as táticas estão sendo repetidas agora no Iraque, acrescenta Lewis). Uma passagem memorável descreve uma conversa de Gary, antes de partir, com Cofer Black, chefe da central antiterrorismo da CIA. "Procure a al-Qaida e mate todos", Black disse. "Vamos eliminá-los. Ache bin Laden, eu quero a cabeça dele numa caixa". "Você está falando sério?", Gary perguntou. "Completamente", Black respondeu, segundo Woodward. "Quero acabar com ele e mostrar ao presidente."

Por que o Iraque?

Há uma pista em Bush at War, observa Lewis. Antes da guerra no Afeganistão, Bush teve uma reunião confidencial em Nova York com um grupo de empresários. "Acredito verdadeiramente que isso trará mais ordem ao mundo, progresso verdadeiro à paz no Oriente Médio, estabilidade às regiões produtoras de petróleo." Ninguém imaginaria que uma Guerra no Afeganistão trouxesse tais efeitos. Woodward nada faz com esta declaração, mas ela certamente indicava que visão da guerra ao Iraque como caminho para ampliar a paz e o progresso ? a visão de Paul Wolfowitz estava na mente de Bush.

Para Lewis, em resumo, o livro é reverente demais para nos fazer entender o que move George W. Bush.