A VOZ DOS OUVIDORES
DIÁRIO DE NOTÍCIAS
"Compromisso com os leitores", copyright Diário de Notícias, de Lisboa, 8/4/01
Os leitores do Diário de Notícias e os seus jornalistas estão já familiarizados com a figura do provedor. Não vou, por isso, repetir os princípios a que a provedora está vinculada e as funções que o estatuto do provedor lhe atribui, as quais se mantêm desde que, há quatro anos, o primeiro provedor deste jornal – Mário Mesquita – assumiu as funções. O DN foi pioneiro, entre os jornais diários portugueses, na criação do cargo e é agora também pioneiro, no nosso país, no convite a uma mulher para o exercer. A singularidade do gesto, se não tiver outro significado, representa, pelo menos, uma abertura à ?feminização? da função do provedor – na Europa menos de um terço dos provedores são mulheres – que corresponde, aliás, à feminização da própria profissão de jornalista.
Ao aceitar o desafio lançado pelo director do Diário de Notícias – que me honra e me estimula -, não ignoro a responsabilidade de suceder a Mário Mesquita e a Diogo Pires Aurélio – os anteriores provedores do DN. Não ignoro, também, as dificuldades da tarefa. A coluna do provedor é o lugar de encontro do jornal consigo mesmo, espaço de cruzamento das ?vozes? que o compõem.
A dificuldade maior reside, porventura, na impossibilidade de avaliação, de uma maneira peremptória, de uma ?peça? jornalística como justa ou injusta, objectiva ou parcial. Em primeiro lugar, porque nenhum texto jornalístico pode aspirar a cobrir a totalidade do ?real?. Em segundo lugar, porque, apesar da existência de instrumentos legais, normativos e profissionais que enquadram o exercício da profissão, o jornalismo não é uma ?ciência exacta? baseada em regras e métodos aos quais se possam aplicar critérios de medição e de precisão definidos aprioristicamente. Mesmo quando uma notícia nos parece objectiva e rigorosa, ela é sempre o produto de uma escolha e de uma interpretação da ?realidade?, de um ?julgamento? feito por um ?homem social? – o jornalista – e resulta quase sempre de uma tensão permanente entre a incerteza e a exactidão. A mediação jornalística, isto é, a apresentação, transmissão e interpretação do discurso de outros, contém, em si mesma, uma parcela de redução e de distorção – o ?desvio mediático? -, na medida em que constitui uma representação de relações, entre pessoas, apreendidas através de processos sociais no seio dos quais a realidade é construída.
A constatação de que jornalismo não é uma actividade neutral ou asséptica não pode, contudo, justificar a adopção de procedimentos que afastem os jornalistas da procura do equilíbrio e da equidade. Pelo contrário, o ?desvio mediático? tem de ser sempre enquadrado por uma ética e uma deontologia implícita ou explícita. Precisamente por não existir um modelo de jornalismo ?perfeito? e o estatuto de ?facto? ou de ?verdade? não se encontrar indefinidamente assegurado, todos – e especialmente os jornalistas – têm o dever de questionar permanentemente as suas escolhas e julgamentos sobre a informação publicada, cultivando uma atitude humilde e aberta relativamente às críticas e sugestões vindas do interior ou do exterior do jornal.
O jornal não é uma instância autónoma no processo de comunicação. Encontra a sua fundamentação nos seus leitores, isto é, no seu público. Mas ?o público? funciona muitas vezes, na retórica do jornalismo, como um objecto de homenagem ritual que ninguém sabe já ao certo o que é.
Apesar de os jornalistas possuírem um conhecimento intuitivo das expectativas dos leitores, é geralmente admitido que existe um défice na relação entre eles. Estudos sobre as audiências mostram que o conhecimento do grau de aceitação ou recusa que o trabalho dos jornalistas desperta nos leitores é insuficiente ou inexistente. Mesmo nos casos em que as empresas jornalísticas organizam internamente a sistematização e análise das cartas dos leitores, essa informação raramente ultrapassa o círculo de chefia do jornal, o mesmo se verificando com os resultados de pesquisas do mercado. Grande parte do feedback do seu trabalho chega, assim, aos jornalistas, sobretudo por auscultação directa no seio da família, amigos e colegas.
Por outro lado, a diversidade que caracteriza os leitores de um grande jornal é, muitas vezes, problemática para a escolha das formas de apresentação e enquadramento das mensagens. A relação do jornalista com os seus leitores não é, pois, de molde a permitir-lhe saber, com alguma precisão, para quem escreve. John Dewey 1, escreveu em 1927, num livro que é já um clássico dos estudos sobre comunicação, que a informação resulta de conhecimentos partilhados, não apenas entre membros da mesma comunidade mas também com outros cidadãos. O jornalismo só faz sentido quando se relaciona com a sociedade.
Para os leitores a relação com os jornalistas também se apresenta difícil. Para muitos deles as formas tradicionais de feedback são inadequadas como meio de exprimir pontos de vista e sentimentos. As cartas dos leitores constituem ?válvulas de segurança? e oferecem a possibilidade de rectificação, mas não criam condições para uma troca. Os estudos sobre a recepção são unânimes no reconhecimento do papel activo do leitor, ouvinte ou telespectador na construção do significado das mensagens difundidas pelos media.
Se para além do conhecimento das exigências do mercado, os media não tiverem desenvolvido os seus próprios mecanismos de ultrapassagem do défice de comunicação com os leitores, não poderão cumprir eficazmente a sua missão de informar. É nessa perspectiva que a função do provedor ganha relevância. A relação entre os leitores e o jornal é, desse modo, orientada e definida dentro de um enquadramento institucional de relacionamento mais vasto entre o jornal e a sociedade.
O provedor pode ajudar o jornal a construir um ?lugar? que outros possam frequentar, permitindo que os leitores, seja como pais, cidadãos, membros de grupos minoritários ou de partidos políticos, possam influenciar o jornal e pedir-lhe responsabilidades por omissões e falhas.
Mas o provedor não é um ser infalível, pronto a julgar e a acusar com base num hipotético e, felizmente, inexistente catálogo do bom jornalismo.
Como provedora dos leitores do DN, a minha ação balizar-se-á, assim, pelo estrito cumprimento do estatuto do provedor na tripla função de análise das reclamações, dúvidas e sugestões dos leitores, de crítica regular do jornal, e de análise e crítica de aspectos do funcionamento e do discurso dos media. Para isso, conto com a minha dedicação e independência e, sobretudo, com a participação atenta e exigente dos leitores, sem o que esta tarefa será destituída de sentido. Conto também com os jornalistas e demais trabalhadores que fazem, todos os dias, deste jornal uma ?referência? de qualidade no jornalismo português.
A provedora espera estar à altura do compromisso que hoje assume com os leitores.
1. Dewey, John (1927) The Public and Its Problems. New York: Henry Holt"
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