Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Estrela Serrano

DIÁRIO DE NOTÍCIAS

"Em alguns dos seus aspectos, o trabalho do jornalista assemelha-se ao do historiador. Tal como este, o jornalista procura, principalmente, estabelecer factos e situá-los num contexto, a fim de os compreender. Reconstituir um acontecimento a partir de documentos pressupõe que o documento seja interrogado, para se encontrar o seu sentido. Na maioria dos casos, na evocação ou reconstituição de um acontecimento, o jornalista, tal como o historiador, é confrontado com testemunhos em primeira ou segunda mão, tais como comunicados, declarações, memórias, etc. Esses documentos não apresentam a mesma segurança que documentos históricos autenticados. Por isso, obrigam a uma crítica e a uma interpretação do seu conteúdo.

Muitas vezes, a intervenção do jornal sobre determinado acontecimento resume-se à reprodução ou transformação das vozes (fontes) que reporta. Ora, quer a reprodução quer a transformação do discurso de outros constituem operações complexas, cujas regras os jornalistas conhecem, mas, por várias razões, nem sempre cumprem. Uma citação pouco clara, ou a confusão entre uma citação textual e comentários sobrepostos, provocam, quase sempre, dúvidas no leitor, quanto ao rigor da notícia.

No dia 22 de Maio, o DN dedicou duas páginas ao aniversário dos 20 anos da morte de Maria de Jesus, governanta de Salazar. Trata-se de três peças assinadas pelo jornalista António Valdemar, duas das quais são totalmente estruturadas com base nas Memórias de Pedro Teotónio Pereira e Costa Brochado. A peça principal, intitulada ?A Maria de Oliveira Salazar?, provocou uma reacção negativa do leitor Vítor Carvalho, por, segundo diz na mensagem que enviou à provedora, ?transportar para D. Maria todo o anti-salazarismo do jornalista e ?medos? do Antigo Regime?. Vítor Carvalho afirma que António Valdemar, ao escrever que ?ter a simpatia da governanta representava o aval e o impulso para uma carreira auspiciosa (…)? e que ?Maria de Jesus preopinava e interferia em nomeações e demissões de ministros?, está a insinuar que Salazar aceitava ?cunhas e pedidos?. Diz ainda o leitor que, ao afirmar que ?de todas (…) a única que o suportou e dominou (com ou sem relações sexuais) foi Maria de Jesus?, o jornalista ?levanta a suspeita de que entre Salazar e a sua governanta tivesse havido relações sexuais, o que ninguém alguma vez conseguiu provar?. Vítor Carvalho faz questão de referir que não é um ?velho? nem um saudosista ou alguém que tenha beneficiado do regime anterior, tendo sido perseguido durante manifestações estudantis.

Solicitado a pronunciar-se, o jornalista António Valdemar afirma que, ?conforme está referido, a peça é fundamentada nas Memórias de Costa Brochado (…), nas de Pedro Teotónio Pereira (…), nos livros de Fernando Dacosta e na entrevista deste a Mavilda de Araújo?, acrescentando que no decurso da peça se encontram assinaladas com aspas as transcrições que o leitor alega serem ?insinuações e suspeitas?.

A provedora analisou o texto ?A Maria de Oliveira Salazar? e teve dificuldade em distinguir a ?voz? do jornalista das vozes das fontes por ele referidas. De facto, apenas uma frase surge entre aspas – ?um vendaval loiro e perfumado? – como referência à entrevista da jornalista Christine Garnier a Salazar. É certo que nos parágrafos finais do referido texto o jornalista tem o cuidado de recusar o apelo à (sua) memória para ?reconstituir murmurações, suspeitas e anedotas?, com isso pretendendo marcar o seu distanciamento relativamente às asserções contidas no texto. Contudo, na medida em que essas asserções não são expressamente atribuídas a nenhuma das fontes documentais utilizadas, elas surgem, aos leitores, como pertencendo ao próprio jornalista. No texto ?A Maria de Oliveira Salazar?, quer as informações de natureza factual quer as do domínio da opinião não surgem atribuídas a nenhuma fonte, em concreto, o que significa que a responsabilidade da sua autoria é transferida para o jornalista.

Os dois outros textos incluídos no trabalho, também assinados por A. Valdemar, não merecem qualquer reparo crítico. Esses textos estruturam-se em torno das Memórias dos autores citados e todas as asserções estão atribuídas. De notar que, no parágrafo final de um desses textos – ?Quando a chamavam, para esclarecer e decidir? -, o jornalista refere que, ?depois destes relatos e de muitos mais que poderia citar, são, naturalmente, óbvios todos os comentários e conclusões?. Ora, nenhuma das três peças é apresentada ao leitor como tratando-se de um ?comentário?, isto é, relevando do domínio da opinião.

Não está, evidentemente, em causa a legitimidade de o jornalista comentar as fontes em que se baseou, desde que isso tivesse sido deixado claro.

Independentemente de outras questões que podem ser suscitadas, existe uma clara ambiguidade relativamente ao ?género? em que se enquadra o texto ?A Maria de Oliveira Salazar?, o que legitima a crítica do leitor.

Por outro lado, perante ?verdades de facto? oriundas de testemunhos que não possuem valor histórico incontroverso, como é o caso dos documentos em que se baseou o texto em análise, o jornalista deverá rodear-se de precauções, não se limitando à reprodução acrítica das vozes apresentadas nesses testemunhos, ainda que a vox populi as tenha consagrado.

A jornalista do DN Paula Costa Simões, autora da notícia ?Guterres já tem substituto para a ministra Arcanjo?, escreveu à provedora, lamentando que se tenha debruçado sobre este assunto, na coluna da semana passada, sem ter esperado pela sua resposta, ou pela resposta das outras pessoas do jornal a quem a provedora solicitou um comentário ao desmentido do Gabinete do primeiro-ministro sobre uma reunião e um convite ao presidente do Infarmed para substituir Manuela Arcanjo. A jornalista justifica o não cumprimento do prazo de resposta à provedora com ?o grande volume de trabalho que a Política Nacional teve, na semana passada, por causa da remodelação?. Sobre o desmentido, diz a jornalista: ?Quero reafirmar a veracidade das informações veiculadas na notícia em causa, e que foram motivo, aliás, de uma segunda notícia, no dia 23 de Junho.? Segundo Paula C. Simões, ?o DN confirmou, em dois momentos e junto de várias fontes, ter havido conversas entre António Guterres e Miguel Andrade, presidente do Infarmed, sobre a área da Saúde e tendo como pano de fundo um convite ao referido responsável para ser o próximo ministro da Saúde?. A jornalista afirma, ainda, que a não identificação das fontes citadas nas duas notícias se deve ao ?pedido das próprias?, acrescentando que a credibilidade que essas fontes lhe merecem ?é total?. Como prova dessa credibilidade, sublinha que ?nas mesmas duas peças era adiantada e reafirmada a informação de que Manuela Arcanjo já tinha pedido a sua demissão ao primeiro-ministro, tendo-lhe este pedido que aguardasse até ao dia da aprovação do Orçamento Rectificativo?. Segundo a jornalista, ?essa informação também foi alvo de um desmentido do Gabinete do primeiro-ministro e do Gabinete da então ministra da Saúde, mas correspondia à verdade, tal como ficou expresso no próprio dia da remodelação, por declarações públicas de Manuela Arcanjo?. Paula C. Simões reconhece que não confirmou as informações ?por via oficial?, porque, ?como os acontecimentos vieram a provar, não era seguindo as informações veiculadas pelo Gabinete do primeiro-ministro que o DN informaria com rigor os seus leitores?.

O leitor David Rylatt também escreveu à provedora a propósito da coluna ?Jornalismo e Política?. Apesar de ter considerado a referida coluna ?interessante e informativa?, afirma que não compreende a razão pela qual a provedora não se debruçou sobre ?o imenso poder que o jornalista possui no mundo da política?. Segundo o leitor, ?o facto de o jornalista ter o poder de decidir qual e quando certa informação (obtida de fontes anónimas) deve ser publicada significa que o jornalista pode, estrategicamente, manipular certos acontecimentos políticos, o que, por sua vez, pode ou não influenciar certas decisões, ou opiniões públicas, ou políticas?. O leitor pede à provedora que se pronuncie sobre ?O poder dos jornalistas?.

    
    
                     

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