DIÁRIO DE NOTÍCIAS
"Do rigor da informação", copyright Diário de Notícias, 11/11/01
"O leitor Nelson Henriques escreveu à provedora a propósito de um artigo publicado no DN, no passado dia 31 de Agosto, no qual ?era destacado que a AACS (1) deu razão a uma queixa de um jornalista do DN contra a provedora dos leitores (…), por achar que a sua coluna de 9 de Julho passado pôs o seu bom nome em questão?.
N. Henriques estranha o relevo dado ao caso pelo DN e afirma que isso não o surpreendeu, por considerar ?a classe dos jornalistas como uma das mais corporativas?. Afirma, também, que ?o facto de algumas queixas ou observações dos leitores encontrarem eco na provedora talvez deixe alguns jornalistas do DN desconfortáveis?. N. Henriques faz apreciações à AACS: ?Quem são estes sábios? (…) Recentemente, a AACS foi alvo de várias campanhas onde era posta em causa a sua competência e até a sua razão de existir (…). Mas, quando convém aos jornalistas, é projectada como se fosse um tribunal independente, competente e, sobretudo, acima de qualquer suspeita.? O leitor termina a sua mensagem, pedindo à provedora que ?não ceda a pressões?.
Solicitado a pronunciar-se, o director do DN, Mário Resendes, considera que ?o leitor não tem razão?, dado que o texto que refere era ?meramente factual? e acrescenta que ?convinha um comentário da provedora à decisão da AACS, instituição relativamente à qual a direcção do DN tem grandes reservas?.
Respondendo ao leitor e aceitando o repto do director do DN, importa recordar o caso: em 22 de Maio, o DN publicou um conjunto de textos sobre os 20 anos da morte da governanta de Salazar. Um deles, intitulado A Maria de Oliveira Salazar, levou um leitor a acusar o jornalista de fazer insinuações e levantar suspeitas, além de ?transportar para D. Maria todo o seu anti-salazarismo (…)?, devido a afirmações (polémicas) inseridas nesse texto.
Na sua análise do caso, a provedora considerou que essas afirmações não estavam claramente atribuídas a uma fonte, pelo que elas surgiam, perante os leitores, como pertencendo ao próprio jornalista.
Considerou, ainda, que existia ?ambiguidade? no citado texto, em virtude de não se distinguir, nele, o que era relato (de fontes) do que era comentário (do jornalista).
Sentindo-se atingido na sua ?idoneidade pessoal e profissional? o jornalista queixou-se à AACS e esta deu-lhe razão, deliberando que não foi infringido ?o normativo ético-legal? a que o jornalista estava vinculado, ?que manifestamente cumpriu?.
O DN deu destaque à deliberação, num texto intitulado Tudo uma questão de aspas, com o subtítulo AACS deu razão a um jornalista em processo inédito que envolve Provedor dos Leitores.
O leitor Nelson Henriques estranhou o relevo dado à decisão da AACS. Contudo, o seu interesse é inegável – daí o destaque que o Público também lhe deu – não apenas devido ao facto de a AACS ter dado razão ao jornalista, mas, também, por ser a primeira vez que aquele órgão foi chamado a pronunciar-se sobre uma queixa de um jornalista contra o provedor do seu jornal.
Quanto ao título da notícia – Tudo uma questão de aspas – apesar de redutor, como quase todos os títulos (os factos surgem no subtítulo), é sustentado pelo corpo da notícia, como mandam as regras. De facto, a questão das aspas, não sendo o essencial, aparece em todos os documentos sobre o caso. Não só o jornalista, autor do texto sobre a governanta de Salazar, afirma, na sua resposta à provedora, que ?no decurso da peça se encontram assinaladas com aspas as transcrições que o leitor alega serem insinuações e suspeitas?, como também a provedora diz, na sua coluna, não ter encontrado as ditas aspas e a AACS escreve que ?não seria razoável exigir ao jornalista que reproduza ipsis verbis, entre aspas, as afirmações que manifestamente se presume abonadas nas fontes (…) que cita?. As aspas foram, pois, um elemento comum aos discursos dos intervenientes no caso.
Os títulos e o destaque, dados ao caso pelo DN, têm, pois, justificação. Sobre o ?corporativismo da classe dos jornalistas?, não dispondo de dados que confirmem, ou infirmem, essa afirmação, alguns exemplos ocorridos, entre nós, nos últimos tempos, levam a concluir o contrário, tal a frequência com que surgem, nos jornais, críticas (algumas de grande contundência) de jornalistas a outros jornalistas.
Por outro lado, a provedora não encontra razões para crer que os jornalistas do DN se sintam ?desconfortáveis? com a existência de um provedor do jornal. O DN foi o primeiro jornal português de referência a ter um provedor (e já vai no terceiro), não constando que algum deles se tenha queixado de pressões. No que respeita à actual provedora, as relações com a direcção e com os jornalistas processam-se com a lealdade e a independência requeridas pelo exercício das respectivas funções.
Sobre o conteúdo da deliberação, trata-se de um documento de carácter opinativo que contraria princípios que enquadram, desde há muito, as práticas profissionais dos jornalistas.
Como se sabe, todo o texto jornalístico possui uma estrutura e uma ?gramática? particulares, mas isso não é incompatível com requisitos indispensáveis a um jornalismo de qualidade, entre os quais se conta o rigor na selecção de dados informativos e a necessária atribuição às respectivas fontes. Com todo o respeito pela AACS, a deliberação revela, a esse respeito, uma estranha permissividade.
(1) Alta Autoridade para a Comunicação Social
Bloco-Notas
Diz a deliberação [da Alta Autoridade para a Comunicação Social acima referida]: ?Não é legítimo esperar que, a cada pormenor factual (…) o jornalista juntasse a publicitação da fonte concreta a que recorrera nessa circunstância (…). Em jornalismo, uma tal prática sistemática transformaria (…) o texto em algo de pesado e virtualmente ilegível, ou seja, antijornalístico (…). O que urge (…) fixar é que o jornalista se muniu de fontes conhecidas, idóneas e referenciadas, que as utilizou criteriosamente, que não caiu na confusão entre factos e opiniões (…). Um artigo de jornal (…) não pode pretender ser uma interminável sucessão de citações.?
Da doutrina
A AACS, ao defender que ?o rigor da enunciação não pode, não deve repousar na fiabilidade imediatamente ?comprovada? de cada frase, de cada episódio contado, mas na relação dialéctica entre as fontes afirmadas e o discurso disponibilizado ao leitor (…)? e ao considerar ?normal que o trabalho de reconstituição histórico-memorialista, depois de arrolar cuidadosamente as fontes, enverede (…) por uma lógica descritiva que obedece a um registo com exigências estéticas, literárias, de homogeneidade, de comunicabilidade, de coerência jornalística muito próprias?, está a defender que um texto jornalístico pode privilegiar ?exigências estéticas? em prejuízo do ?rigor da enunciação?. Ao invés, a provedora defende que o jornalismo deve assentar na ?fiabilidade imediatamente comprovada? das fontes.
No texto em questão não era possível saber a quem pertenciam as frases polémicas que motivaram a queixa do leitor.
E, não havendo atribuição de fonte, o jornalista tornou-se, implicitamente, o responsável por elas. A própria AACS reconhece isso, ao afirmar que ?a responsabilidade do conjunto das menções incide (…) sempre no autor.
Do leitor
Diz a AACS: ?Os termos da queixa do leitor que sustentou a intervenção da provedora (…) estão eivados de uma subjectividade não escondida, obviamente ofendida pelos factos reportados (…) considerados desfavoráveis a Salazar, político de que o leitor, aparentemente, será adepto, apesar de o negar. Tem, aliás, o direito de o ser, mas (…) o pendor salazarista do seu texto enviesa a qualidade do protesto (…).? A provedora não pode concordar com os termos usados pela AACS para se referir ao leitor. E nota que em nenhuma das 14 páginas da deliberação se encontra resposta à questão de saber quem é o autor das frases que indignaram o leitor: a única que o dominou (com ou sem relações sexuais) foi Maria de Jesus (…). Maria (…) preopinava e interferia em nomeações e demissões de ministros (…). Ter a simpatia de Maria (…) representava o aval (…) para uma carreira pública auspiciosa. Ora, no contexto da queixa do leitor, era essencial saber se a autoria dessas frases pertencia a alguma das fontes ?arroladas? pelo jornalista, se ao próprio jornalista. Parecendo um pormenor, não o era, efectivamente."