Saturday, 28 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Estrela Serrano

DIÁRIO DE NOTÍCIAS

"Entre o jornalismo e a publicidade", copyright Diário de Notícias, 23/12/01

"A avaliar pela correspondência chegada à provedora, os leitores procuram no DN, principalmente, informação sobre o País e o mundo, em especial matérias que, pela sua importância e alcance, interferem directamente no seu quotidiano, quer ocorram a nível nacional, quer internacional. Mas, ao comprarem o jornal, os leitores procuram, também, informações de caracter utilitário, como as cotações da bolsa, as farmácias de serviço, os programas de televisão, os filmes em exibição, ou as páginas de anúncios.

Os leitores habituais sabem onde encontrar, no jornal, todo este tipo de assuntos. Sabem que o caderno principal se divide em secções onde se encontram as notícias principais e os artigos de opinião. Sabem, também, que existem suplementos semanais dedicados a temas específicos e que a publicidade se encontra em páginas próprias e noutras, sempre, devidamente, identificada.

O aparecimento, no caderno principal, na rubrica Boa Vida, de textos como ?Neste Natal deixe-se levar pelos seus sentidos (…) e ?mime? os seus amigos oferecendo ?Baileys?, ?Cardhu é um wisky de malte de extrema suavidade, tornando-se uma das escolhas ideais para oferecer aos seus amigos neste Natal? (27/11/01), presta-se a algumas confusões. São textos assinados por jornalistas, ou não assinados, nem identificados como publicidade, mas cuja redacção os aproxima do registo publicitário. Não está em causa a utilidade das informações que veiculam, nem a qualidade ?literária? de muitos deles. O que se questiona é o hibridismo que os caracteriza, que os assemelha mais a ?publicidade redigida? ? ou ?publi-reportagem? ? do que a textos jornalísticos. O director do DN, Mário B. Resendes, admite que os exemplos citados ?ultrapassam o desejável caracter exclusivamente noticioso?.

Dado o interesse e a controvérsia de que este assunto se reveste, pareceu à provedora que seria útil ouvir a opinião de dois especialistas, ambos professores e com experiências diversificadas. Hermenegildo Borges, professor de Direito e Deontologia dos Media na FCSH da Univ. Nova de Lisboa, referindo-se à ?inclusão persistente das bebidas alcoólicas nos produtos publicitados? em algumas peças inseridas (…) na rubrica Boa Vida, afirma: ?Em tais situações a ?publi-reportagem?, enquanto género que não se assume como mensagem publicitária explícita e que faz uso do modo ?redaccional? jornalístico, presta-se magnificamente a cumprir os desígnios dos anunciantes muito mais eficazmente do que o faria a estrita ?publicidade?. Uma das tarefas que cumpre com mais eficácia tem a ver com a descrição técnica dos produtos publicitados (…) que faz de uma maneira mais credível, em linguagem científica, rigorosa, e tanto mais eficaz quanto se não identifica como publicidade (…)?. Para o citado professor, nas denominadas ?publi-reportagens? procura-se ?cooptar o prestígio do discurso jornalístico referencial como suporte para veicular comandos publicitários?. Segundo H. Borges, a sua ?inserção (…) numa sequência de rubricas onde aparece um jornalismo menos exigente (…) a coberto do sugestivo tíiacute;tulo Boa Vida, oferece-se já de algum modo (embora apenas implícito) identificada na sua índole hedonista associada ao consumo?. Não obstante, em seu entender, a rubrica ?pouco perderia em eficácia persuasiva e muito ganharia em credibilidade deontológica, com a clara indicação da sua natureza de ?publi-reportagem? ou ?publicidade redigida?.?

Por seu turno, Carlos Chaparro, professor de jornalismo na Univ. de Santa Catarina, São Paulo, Brasil, considera que ?as referências a produtos, marcas e preços em espaços não publicitários (…) estão relacionadas com o crescimento do que podemos chamar de ?jornalismo utilitário? ou ?jornalismo de serviço?, no qual se manifestam os discursos, as acções e os interesses do mercado, mas sob critérios determinados pelo ?serviço ao leitor?.

Trata-se, para o professor, de ?uma subespécie de reportagem (…) para servir a conteúdos unicamente determinados pelas razões dos negócios. São textos escritos em jeito de reportagem, com simulações narrativas temperadas de propaganda, sempre vinculados à oferta e busca de produtos e serviços, ou ao consumo e aos gostos de quem consome. (…) Aí se cria um tipo híbrido de informação em que, sob os encantos da forma jornalística, reinam intencionalidades e acções de propaganda?. Nesses textos, continua o professor, ?a fronteira entre jornalismo, publicidade e propaganda torna-se perigosamente ténue, diria até que desaparece (…). As coisas pioram muito quando esse jornalismo (…) sem nervura crítica invade os espaços nobres da informação diária, sob a protecção de nomes notáveis na assinatura do texto. É uma imprudência, que põe em situação de risco a confiabilidade do discurso jornalístico, que deveria ser tratada como bem social?.

A provedora não desconhece que outros jornais ?de referência? possuem, também, rubricas semelhantes, nas quais predomina uma escrita híbrida entre o jornalismo e a publicidade. Trata-se de textos cujo conteúdo interessa a muitos leitores que, compreensivelmente, os jornais não querem ignorar. Mas nada obriga os jornalistas que os assinam a prescindirem dos princípios que usam no tratamento jornalístico de outros temas.

Bloco-notas

Embora se encontre generalizada, a ?publi-reportagem? e a sua ?parente? legal ? ?publicidade redigida? ? não são pacíficas. Menos pacífica é, ainda, a prática de um jornalismo que não se assume como nenhuma dessas formas mas usa a sua linguagem. Os próprios jornalistas não são unânimes na aceitação, ou negação, dessas práticas. Henry Pigeat, professor na Universidade de Paris, afirma que, apesar de a publicidade redigida ser legal, o facto de ser escrita por jornalistas constitui o aspecto mais crítico do problema.
Portugal Em 1984, o Conselho de Imprensa (CI) definia princípios a que devia obedecer ?qualquer informação noticiosa jornalística que referencia normas ou características de produtos ou empresas?. Entre esses princípios, o CI recomendava que os nomes ou características fossem, preferencialmente, noticiados de uma maneira substantiva, segundo as técnicas e usos normais de noticiário de órgãos de informação. Se o jornalista optasse por ?informação objectiva?, os termos em que o fizesse não deveriam confundir-se ?com os padrões ou técnicas do processo publicitário?, nem incorrerem em ?inveracidade, omissão, exagero ou ambiguidade?.

O CI referia, ainda, que ?da publicação desses textos não poderão advir, para o jornalista, benefícios materiais directos ou indirectos, anteriores ou posteriores?.

Suíça Em 1988, o Conselho de Imprensa da Federação Suíça de Jornalistas foi chamado a pronunciar-se sobre um editorial, assinado pelo chefe de redacção, publicado na primeira página de um periódico, chamando a atenção dos leitores para uma ?colaboração? assinada pelos gerentes de uma firma de decoração de interiores, publicada numa página interior, onde se descreviam as novas tendências da decoração de casas-de-banho. O chefe de redacção argumentou que não tinha havido pagamento publicitário, apresentando ao CI uma página de assuntos ?redactoriais? que iriam ser publicados nos próximos meses e que incluíam ?ócios na moda para homens?, ?a boa forma e as instâncias termais?, ?perfumes sofisticados para homens?, ?o relógio como jóia? e ?a moda nas malas de viagem?.

O CI sugeriu aos jornalistas que recusassem a apresentação de ?colaborações? em espaços cedidos ? com ou sem pagamento ? a empresas comerciais para apresentação dos seus produtos.

EUA No Washington Post, o editor da secção Estilos não concorda com as críticas feitas pelo provedor do jornal a certas liberdades estilísticas e a algumas quebras na demarcação de fronteiras verificadas nas páginas dessa secção. Diz o editor que o provedor tem uma visão conservadora, enquanto ele pretende estimular os jornalistas a tentarem formas de escrita mais criativas. Mas o provedor considera que o Post não é como certos programas de televisão, perante os quais o público pode mudar de canal. Para o provedor, um jornal de referência deve manter os padrões e ser um dos bastiões da cultura nacional."