Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Estrela Serrano

DIÁRIO DE NOTÍCIAS

"… de etnia cigana", copyright Diário de Notícias, 13/1/02.

"O DN publicou, no passado dia 4 de Novembro, na secção Regional, uma notícia com o título Cabo da GNR assassinado a tiro em Odemira e o subtítulo Agente foi alvejado à queima-roupa na presença da filha, num café em S. Luís, após abordar três indivíduos de etnia cigana. Segundo a notícia, ?os três indivíduos de etnia cigana, entre os quais uma mulher, estariam alegadamente a consumir droga? (…) e um deles ?ter-se-á apoderado da arma do agente da GNR e disparado à queima-roupa, atingindo-o mortalmente?.
Carla Silva, Eulália Pereira e Tânia Nascimento, estudantes de Ciências da Comunicação na FCSH-UNL, consideram que houve, por parte do autor da notícia – José Manuel Oliveira – ?alguma falta de responsabilidade ao mencionar, quer no subtítulo (…) quer no corpo da notícia, a etnia dos presumíveis autores do crime?. As leitoras invocam ?o artigo 8.? do Código Deontológico do Jornalista Português, que diz que ?o jornalista deve rejeitar o tratamento discriminatório das pessoas em função da cor, raça, credos, nacionalidade ou sexo??.
Acrescentam as estudantes que a menção da etnia ?pode ser instigadora de animosidade e desconfiança no seio de uma sociedade que, como a nossa, vive já vários casos de conflitualidade em relação aos ciganos?. E perguntam: ?Até que ponto terá sido aquela opção pertinente? Seria a notícia diferente, em termos de conteúdo, se o crime tivesse sido praticado por quaisquer outros indivíduos??
O autor da peça afirma não ter havido, da sua parte, ?qualquer intenção em denegrir a imagem de quem quer que fosse?, acrescentando que apenas procurou ?relatar factos com toda a imparcialidade, independentemente dos intervenientes em causa?.
Por seu turno, o director do DN, Mário Resendes, afirma não ter ?qualquer dúvida sobre os critérios profissionais e deontológicos – bem como da competência comprovada – de José Manuel Oliveira?. Segundo o director, ?no caso em apreço, a referência à etnia não parece trazer qualquer valor acrescentado à matéria?.
Também a jornalista Paula Carmo assina nos dias 3 e 4 deste mês, na mesma secção, duas notícias sobre ?um tiroteio entre famílias de etnia cigana?, na cidade da Guarda, que provocou um morto.
A menção, nas notícias, de características étnicas ou religiosas de pessoas envolvidas em assuntos de polícia, é delicada. Em que medida é legítimo mencionar essas características? Os códigos deontológicos, e outros documentos orientadores da actividade jornalística, condenam qualquer forma de discriminação. À luz dos princípios constantes de muitos desses documentos, a menção da raça, cor, etnia, sexo e religião só se justifica nos casos em que esses elementos sejam necessários à compreensão dos factos e desde que não conduzam a generalizações de caracter discriminatório. Em geral, os jornalistas respeitam esses princípios mas, em muitos casos, embora sem intenções discriminatórias, mencionam-nos sem que isso se justifique do ponto de vista do esclarecimento dos factos. Na realidade, a publicação de notícias onde a prática de actos violentos, venda e consumo de drogas, entre outros, surge associada a indivíduos pertencentes a minorias étnicas, é susceptível de criar ou alimentar, entre os leitores, sentimentos de rejeição dessas minorias.
Não é fácil traçar os limites entre o que deve, ou não, ser mencionado acerca de pessoas envolvidas em situações delituosas. Em determinadas circunstâncias, o público tem o direito de conhecer detalhes sobre a raça, cor ou etnia dessas pessoas. Mas essas indicações devem acautelar o risco de poderem resultar em anátemas sobre toda uma comunidade. Em situações que provocam grande emoção no público, os media devem evitar polarizar antagonismos que conduzam à criação de alvos para eventuais acções punitivas.
Quando, como aconteceu nos casos em apreciação, se menciona a etnia dos indivíduos envolvidos em acções violentas, ou associadas a consumo de droga, o sentimento de revolta e de rejeição que essas acções, naturalmente, provocam, acaba por reflectir-se, ainda que inconscientemente, em toda a comunidade cigana. Acresce que, nestes casos, tal como se encontra nas notícias, a indicação da etnia não se afigura relevante para a compreensão dos factos. De facto, não existe nessas notícias, qualquer enquadramento que mostre relação entre os distúrbios e a etnia dos que neles participaram.
As generalizações baseadas em comportamentos individuais são sempre injustas. Na verdade, os autores das notícias citadas não as fazem, nem seria legítimo duvidar da sua boa-fé. A menção feita nestes casos corresponde, aliás, a uma tendência dos media. Uma boa maneira de a corrigir será os jornalistas tentarem substituir a etnia ou nacionalidade mencionada por outra qualquer, por exemplo, pela portuguesa e verificar se essa referência contribui para um melhor esclarecimento dos factos.
Tal como grande parte dos países europeus, Portugal é, hoje, uma sociedade multicultural e multirracial, na qual se torna essencial a existência de uma sã e pacífica convivência entre todos os cidadãos. Não podendo eliminar as desigualdades socioeconómicas que separam as diferentes comunidades que vivem no nosso país, os media podem, pelo menos, contribuir para a existência de um ambiente do qual o racismo e a xenofobia sejam expurgados.

BLOCO-NOTAS

Minorias e droga

Em Março de 1998 foram publicados, nos EUA, dois estudos sobre a cobertura jornalística de crimes relacionados com a droga e com as minorias raciais. O primeiro, da autoria da Physician Leadership on National Drug Policy, permitiu apurar que, ao contrário da percepção popular, os maiores consumidores de droga não pertencem a minorias raciais nem a grupos étnicos. No caso dos consumidores adultos, 60 % dos consumidores de cocaína são brancos. Também 77 % dos consumidores regulares de marijuana são brancos e apenas um em cada seis são afro-americanos. A confirmar estes dados, uma sondagem publicada no Jornal da Associação Médica Americana, em 3/11/98, sobre a percepção pública do problema da droga, apurou que a maioria dos americanos possui escasso contacto directo com os problemas associados ao consumo de drogas, sendo a informação que possui obtida nos media, principalmente na televisão. O estudo constatou, ainda, que os media contribuem para uma informação deformada sobre as questões relativas aos problemas relacionados com a droga e com as minorias étnicas que a ela estão associadas.

?A preto e branco?

O segundo estudo, publicado na revista Harvard International Journal of Press/Politics, em 1996, com o sugestivo título Crime a preto e branco, incide sobre as notícias do canal local da ABC, de Los Angeles. Segundo esse estudo, a notícia típica sobre crime assenta em dois pressupostos fundamentais: o crime é violento e os criminosos são ?não brancos?. Os resultados demonstraram que as notícias de televisão distorcem a realidade em dois aspectos: cobrem desproporcionalmente crimes violentos e dão relevo sobretudo àqueles em que indivíduos afro-americanos surgem como responsáveis. Os autores afirmam que os media, especialmente a televisão, fornecem ao público doses maciças de crime, contribuindo para divisões raciais e criando instabilidade na sociedade e na economia. Segundo eles, a explicação para a fixação da televisão no crime é a sua incapacidade de fornecer ao público uma cobertura adequada de grande número de assuntos sociais e políticos.

Consequências

Os responsáveis por este último estudo concluíram que os telespectadores estão tão acostumados a ver, nas notícias de televisão, afro-americanos como suspeitos de crimes que, mesmo quando a raça do suspeito não é especificada, os espectadores tendem a recordar que viram um negro. Outra conclusão foi a de que, apesar de alguns crimes violentos poderem ter interesse noticioso, esse tipo de crime representa, apenas, cerca de um terço da totalidade dos crimes, nos EUA. A concentração da televisão na sua cobertura distorce a realidade e impede a discussão aprofundada do problema das divisões raciais nas sociedades contemporâneas. Construindo o problema do crime como um ?problema de negros?, os media criam sentimentos de medo nas populações."