DIÁRIO DE NOTÍCIAS
"A ?classe política?", copyright Diário de Notícias, 13/1/02
"O DN noticiou, no passado dia 2, com o título de capa Sampaio e o cardeal alertam políticos, as mensagens de Ano Novo do Presidente da República e do cardeal-patriarca de Lisboa. Segundo o DN, ?Jorge Sampaio quer combater o laxismo e o desleixo? e D. José Policarpo ?entende que os partidos devem pôr à consideração dos portugueses os modelos de sociedade que defendem?. Da mensagem do Presidente, o DN salientou, também, que a próxima campanha eleitoral para as legislativas ?deve basear-se numa ?agenda realista? e o debate deve afastar o acessório e centrar-se naquilo que é essencial?. Por seu turno, das palavras do cardeal, o DN citou o apelo ?a uma colaboração, na complementaridade, entre políticos, agentes culturais e fazedores de opinião?.
O DN interpretou as duas mensagens como sendo ?dirigidas à classe política?. Contudo, uma leitura atenta de ambas mostra que as preocupações reveladas pelo Presidente e pelo cardeal apontam, também, para os processos pelos quais as propostas políticas são comunicadas ao público. Na realidade, na medida em que apenas uma escassa minoria de pessoas acompanha de perto as campanhas eleitorais, o conhecimento das ideias e das propostas dos líderes partidários faz-se através dos media, pelo que se torna difícil isolá-las da sua representação mediática. Ao acentuar que o debate deve ?afastar o acessório?, centrando-se ?naquilo que é essencial?, o Presidente está a dirigir-se, pois, implicitamente, não apenas aos políticos, mas também àqueles a quem cabe levar as propostas políticas ao conhecimento do público, isto é, aos jornalistas. De facto, sem a intervenção dos jornalistas o debate dificilmente chegaria ao espaço público.
É sabido que durante períodos de intensa comunicação política, como é o caso das campanhas eleitorais, os media assumem grande relevo, colocando os políticos e os votantes numa grande dependência das notícias que publicam. Daí que os jornalistas possuam uma especial responsabilidade na informação que chega ao conhecimento do público, a qual é susceptível de influenciar a atitude dos cidadãos face à actividade política e ao funcionamento da democracia.
Se atentarmos na maneira como a política é tratada nos media, em especial durante os períodos eleitorais, verificamos que as palavras do Presidente e do cardeal são oportunas. De facto, entendendo como ?o acessório? as querelas partidárias, os aspectos folclóricos da campanha e o ?jogo? das sondagens, pode afirmar-se que nas últimas eleições (presidenciais e autárquicas) as notícias privilegiaram, sobretudo, o acessório, deixando para plano secundário o essencial. Tudo leva a crer que assim será, novamente, na próxima campanha. Com efeito, não é exagerado afirmar que a ?crise? da política ? amplamente documentada ? é acompanhada por uma crise da comunicação política. Trata-se, com efeito, de uma crise sistémica que envolve a actividade política, os media e o público e que não é, apenas, nacional. Daí que não seja fácil, nem realista, pensar que isso se pode mudar em dois dias, ou sequer que possa ser mudado sem que existam, também, alterações no exercício da própria actividade política.
O estilo de jornalismo centrado na personalização, na dramatização, no conflito e no fait-divers, que caracteriza a cobertura da política, torna difícil a afirmação de ideias e argumentos que não possam ser facilmente reduzidos a slogans. Mas, se é certo que é essa a lógica do jornalismo político actual, não é menos certo que os actores políticos, ao invés de a tentarem contrariar, procuram adaptar o seu discurso aos formatos mediáticos. Comunicar tornou-se mais importante que governar. Para um político é essencial alimentar a máquina dos media, produzindo, regularmente, um certo número de mensagens. A ?classe política? concebe e fornece ?menus? a pensar no que interessa aos jornalistas, enquanto estes argumentam que se limitam a reportar o que lhes é oferecido. Este círculo vicioso cria aquilo a que os especialistas chamam ?espiral de cinismo?.
É impossível saber quem iniciou o modelo de discurso que é, hoje, transmitido pelos media: se a dita ?classe política? com o seu discurso orientado para os sound-bites e guiado pelo conflito, se os jornalistas com uma cobertura estruturada em torno da polémica e do conflito. Qualquer que seja a resposta, o que se verifica é que cada uma das partes procura alimentar a outra, provocando no público cepticismo e desconfiança relativamente aos políticos e às instituições.
O leitor, Mário Moura Pinto ? que escreveu à provedora a propósito do título do DN Cunhal volta a atacar (13/12/01) ? tem razão quando se interroga sobre se ?o jornal veicula, desta forma, uma informação isenta e objectiva?. Diz o leitor que, como o DN costumava ?encher essa página com a guerra no Afeganistão, quem lê é levado a pensar que Cunhal também combate nessa guerra?. O título a que se refere o leitor denota, sem dúvida, criatividade. Mais que informar, este tipo de títulos pretende, sobretudo, impressionar o leitor, estimulando-o a comprar o jornal. Mas os leitores nem sempre apreciam esses exercícios estilísticos, podendo, mesmo, provocar-lhes sentimentos de rejeição, como aconteceu com Mário Pinto. A sua nota de humor é, aliás, um exemplo do cepticismo e do desinteresse que certas formas de comunicação da política podem criar."