DIÁRIO DE NOTÍCIAS
"A condecoração" copyright Diário de Notícias, 1/7/02.
"O leitor Vasco Hogan Teves escreveu á provedora, a propósito de um texto inserido na rubrica Notícias da TV, no DN de 11 de Junho. O texto é ilustrado por uma imagem da RTP, da sessão solene do 10 de Junho, em Beja, e mostra o primeiro-ministro e o presidente do Tribunal Constitucional (TC) sentados, lado-a-lado, conversando com aparente intimidade e boa disposição. Por baixo, surge o título-legenda Há coincidências felizes. O jornalista Martim Silva, autor do texto, relata uma conversa imaginária entre o PM e o presidente do TC sobre a Lei da Televisão, objecto de veto do TC no dia seguinte. A ?conversa? é descrita nos seguintes termos: ?Então, sr. dr. juiz, almoçou bem? Espero que sim… amanhã, hein… grande dia, hein… acho que vai estar sol lá para os lados da Rua de O Século.? ?Resposta? do juiz-conselheiro: ?Sim, sr. primeiro-ministro, sim… as migas tavam óptimas… para tudo ficar a preceito, nada como um bom vetozinho a uma lei, hein… caía mesmo bem…?
Foi, contudo, o segundo parágrafo, também centrado na cerimónia do 10 de Junho, que motivou o protesto do leitor. Vejamos o que diz: ?Por um dia, Guterres (lembram-se? o nome diz-vos alguma coisa?) voltou aos palcos políticos. Não, não se assustem que foi por poucos segundos. O engenheiro foi condecorado por Jorge Sampaio, que lhe atribuíu a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo. Que, do que se viu, basicamente consiste numa reluzente faixa vermelha colocada ao peito do ex-primeiro ministro. Tipo miss, tão a ver??
O leitor Vasco Hogan Teves ficou chocado com esta referência à condecoração atribuída pelo Presidente da República (PR) ao ex-primeiro-ministro e manifesta a sua ?indignação face ao desrespeito (do jornalista) ao comparar uma condecoração nacional (…), um símbolo da Pátria (…), a uma ?reluzente faixa vermelha, tipo miss.? Segundo o leitor, ?não está em causa a personalidade que o PR entendeu dever distinguir (…), mas reconhecer (…) que um tal dislate não é de admitir? nas páginas do DN, afirmando não entender esse tipo de ?humor?.
O jornalista Martim Silva, questionado sobre o assunto, afirma ter ?por regra não fazer comentários?, por considerar que o leitor ?é soberano para gostar ou não dos textos que escreve?, não lhe cabendo rebatê-los mas, apenas, ?respeitá-los e melhorá-los, para poder agradar ao maior número de leitores?. Acrescenta o jornalista que ?o tom mais leve usado na referida coluna se enquadra no pretendido pela editoria Nacional?, não sendo ?a linguagem? idêntica ?à utilizada em textos meramente noticiosos?.
A análise da questão colocada pelo leitor necessita de uma reflexão prévia sobre alguns aspectos, entre os quais a natureza da rubrica na qual o texto se insere. Essa rubrica, juntamente com outra, de formato idêntico, intitulada Diário do Parlamento, teve início no dia 3 de Junho, ambas publicadas na secção Nacional, sem serem acompanhadas de qualquer explicação sobre o ?género? em que se enquadram, o seu significado e objectivos.
Contudo, alguns dias após o seu aparecimento, o jornalista Martim Silva referia-se ao Diário do Parlamento como um espaço onde se pretende ?relatar assuntos, acontecimentos, pormenores, curiosidades, etc., que todos os dias se passam nos corredores de São Bento (…) e que dificilmente são enquadráveis no espaço noticioso diário?. Ora, esta informação deveria ter sido dada ao leitor desde início e relativamente a ambas as rubricas – como, aliás, costuma acontecer com outras iniciativas – passando a ser assinaladas como espaços de opinião. Isso ajudaria o leitor a situar-se perante o seu conteúdo. Como isso não foi feito, o leitor foi obrigado a descobrir, por si, que se trata de relatos, em registo geralmente humorístico ou jocoso, de episódios sobre a Assembleia da República, num dos casos, e de comentários aos telejornais, no outro.
Acresce que, relativamente à rubrica Notícias da TV, os leitores não dispõem de qualquer informação que lhes indique se se trata, ou não, de um espaço de crítica de televisão. Contudo, a sua inserção na secção Nacional, o tipo de abordagem que é feita aos jornais televisivos e a circunstância de os textos serem assinados por jornalistas que escrevem habitualmente sobre política, não aponta para esse género. Presume-se, pois, que se trata, também, de um espaço onde se relatam ?pormenores? e ?curiosidades? sobre a televisão, no mesmo ?tom leve? utilizado na outra rubrica.
Relativamente à observação do leitor Hogan Teves, a comparação da Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo com uma ?faixa? ?tipo miss? ultrapassa o ?tom leve? a que alude o jornalista. Não está em causa o direito, e mesmo o interesse, da existência de espaços, no DN, para a manifestação do humor e da sátira, formas de expressão que, aliás, se inscrevem na tradição literária portuguesa. Contudo, além de esses espaços deverem ser claramente identificados, é suposto que neles não se agridam sentimentos e tradições caros a muitos portugueses.
Apesar de não ser suposto os jornalistas aludirem aos símbolos – ordens honoríficas ou outros – em tom reverencial, espera-se, contudo, que não os ridicularizem, qualquer que seja o registo em que os abordem. Os portugueses, como todos os povos, gostam de preservar os seus rituais e os seus símbolos.
Bloco-notas
Rituais
A importância de cerimónias como o 10 de Junho, a que se refere a coluna de hoje, resulta de se tratar de acontecimentos que, segundo os especialistas no estudo dos rituais, celebram o gosto da história, a memorialização dos lugares e trazem à superfície toda uma simbologia da identidade.
Os discursos oficiais que assinalam essas datas são, quase sempre, um exemplo da procura de um sentido, através de um passado que constantemente é evocado e invocado, como justificação do presente e perspectivação do futuro.
Tal como outras cerimónias que atraem a atenção do povo e dos media, de âmbito nacional ou internacional – como, recentemente, a inauguração do Mundial 2002, os funerais da Rainha-Mãe, no Reino Unido, e de Amália Rodrigues, em Portugal, qualquer deles transmitido em directo pela televisão – o 10 de Junho, embora de dimensão muito menor, é um ritual político próprio das sociedades de ?democracia mediocrata?, funcionando como uma ocasião para o Estado se ?dar a ver?.
Trata-se de cerimónias que fazem apelo à emoção e cultivam o consenso, ao mesmo tempo que criam laços afectivos entre os cidadãos e entre estes e as instituições que os representam.
Crise do ritual
A crise do ritual e do simbólico, motivada pelo contexto político, económico e social, é uma das características das sociedades contemporâneas.
Essa crise leva a redefinições dos objectivos e formatos das grandes comemorações nacionais.
Este facto é visível, em Portugal, nas tentativas dos diversos responsáveis para introduzir alterações às comemorações do 10 de Junho e do 25 de Abril, de modo a reconquistar, para elas, a adesão popular.
Rituais e media
Os media, sobretudo a televisão, gostam das cerimónias rituais, sobretudo pelo seu carácter teatral.
Os políticos recorrem à história e à tradição, criando como que uma mitologia dos grandes momentos mediáticos.
O ritual político permite pôr à prova a performance dos líderes e, como diz Marc Augé, a incapacidade ritual de um político pode ser o seu fracasso. Não é exagerado afirmar, como faz Régis Debray, que um Estado sem rituais, monumentos e documentos é um Estado que não existe.
A História do Estado é, sobretudo uma História visual, cujos sinais de poder, discursos, textos e imagens devem circular, para serem operacionais.
Esta idéia remete para o tema acima focado, isto é, o relato jornalístico do ritual da condecoração do ex-primeiro-ministro, na cerimónia do passado dia 10 de Junho.
O registo jocoso chocou o leitor, porque viu nele a profanação de uma ordem honorífica e do ritual que caracteriza a sua atribuição."