Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Estrela Serrano

DIÁRIO DE NOTÍCIAS

"Uma inesperada ausência", copyright Diário de Notícias, 4/11/02

"Escrevo-lhe só para desabafar. Indo para o meu emprego a pé como de costume, vejo nos escaparates que a greve (…) na Administração Pública mereceu, com maior ou menor destaque, a primeira página dos jornais diários com as excepções do 24 Horas e do Diário de Notícias. Acabo de ler na Internet os dois pequenos textos publicados só para marcar serviço. Claro que são critérios editoriais que, a manterem-se, terão reflexos nas tiragens.? O ?desabafo? é do leitor M. Gaspar Martins e refere-se ao DN do dia 17 de Outubro. Olhando a primeira página dessa edição do DN verifica-se que, de facto, não existe nela qualquer referência à greve da função pública. A manchete dizia que ?um milhão não tem médico de família?, a propósito de dados constantes de um ?levantamento nacional sobre a distribuição de médicos?. A capa do jornal mostrava uma fotografia do desafio de futebol Portugal-Suécia e destacava duas notícias: Bruxelas absolve défice português e Condução cool dá prémio e evita acidente. Ao alto da página, três temas e três fotografias: Maria José Ritta na Wall Street africana; José Manuel de Mello desanca socialista Pina Moura; A Catalunha é uma referência internacional (citação de Jordi Pujol).

?O assunto foi tratado com destaque na página 6 da edição do DN desse dia?, diz o director do DN, Mário Resendes. De facto, assim é. Folheando o jornal, encontra-se, na dita página, a notícia da paralisação e das manifestações, com o título Trabalhadores contra ?terrorismo social?. Ao cimo, uma fotografia da manifestação possui a seguinte legenda: ?Milhares de manifestantes, vindos de todo o País, desfilaram da Praça do Comércio até São Bento.? A notícia divulga os números oficiais e os fornecidos pelos sindicatos sobre a adesão à greve e cita depoimentos de manifestantes.

Apesar de se tratar de um texto essencialmente descritivo, refere- -se nele o ?descontentamento generalizado de milhares de trabalhadores da função pública que, de norte a sul do País, (…) marcaram presença no protesto de rua, ou aderiram à greve que paralisou vários sectores de actividade?. O tema ocupa ainda, na edição desse dia, metade do editorial assinado pelo subdirector do jornal. A importância que o seu autor lhe concede está patente em frases como ?foi uma jornada de luta conseguida, medida sob a tutela da CGTP?, ou ?A manifestação foi relevante e obriga o Governo a ouvir e explicar melhor o que quer. É seu dever?. Esta breve recapitulação do tratamento dado pelo DN à greve e às manifestações da função pública do passado dia 16 mostra que quer as jornalistas que acompanharam o acontecimento (autoras do texto e da fotografia) quer o subdirector lhe reconheceram relevância e significado. Daí que, à primeira vista, se afigure estranho que o mesmo não tenha merecido qualquer menção na capa do jornal, tanto mais que não lhe faltavam alguns dos ?valores-notícia? que o DN gosta de privilegiar nas suas capas: espectacularidade, dimensão, conflitualidade, proximidade.

?São critérios editoriais que, a manterem-se, terão reflexos nas tiragens?, afirma o leitor, manifestando algum desencanto. Vejamos: a construção da primeira página de um jornal é complexa e nem sempre fácil, sendo da exclusiva responsabilidade da direcção, que, naturalmente, se baseia em determinados critérios, tendo sempre como ?pano de fundo? a linha editorial do jornal. O DN não é um jornal ?alinhado? ideológica ou partidariamente. O seu estatuto editorial obriga-o a manter ?liberdade crítica e autonomia em relação a quaisquer entidades ou forças políticas, económicas ou de outra natureza?, ao mesmo tempo que lhe confere ?a responsabilidade de emitir opinião própria, através de editoriais assinados pela Direcção?. Relativamente à greve da função pública, não existiu uma posição institucional do jornal, a favor ou contra, independentemente de posições individuais, expressas, em editorial, por membros da direcção.

A competência soberana da direcção para valorizar, ou não, determinado acontecimento não impede que os leitores questionem os critérios utilizados, como faz Gaspar Martins. Acontece, contudo, que na resposta do director não se vislumbra uma explicação que ajude o leitor a perceber a decisão do jornal. Na opinião da provedora, a greve e as manifestações dos trabalhadores da função pública inscrevem-se no tipo de acontecimento que interessa quer às ?grandes massas? quer às elites dirigentes. Trata-se, de facto, de um assunto através do qual um jornal com o perfil do DN pode conciliar ?a sua vocação de órgão de grande informação com o seu papel tradicional de jornal de referência com responsabilidades na formação da opinião pública dirigente? (princípios inscritos no seu estatuto editorial).

Não se questiona a escolha, como manchete desse dia, dos resultados do ?levantamento nacional sobre a distribuição de médicos?, dado tratar-se, também, de um tema de indiscutível interesse público. Mas, sendo certo que nem tudo cabe na primeira página, a ausência de qualquer referência, em texto ou imagem, nesse local, a um acontecimento que o próprio subdirector considera suficientemente ?relevante? para obrigar ?o Governo a ouvir e explicar melhor o que quer? é, pelo menos, inesperada. A reacção do leitor é, pois, compreensível.

Bloco-notas

Reflexão ? A coluna ?Sobre a autonomia dos jornalistas? (28/10), na qual a provedora referia que ?em textos (…) noticiosos? é visível uma certa ?displicência relativamente aos políticos?, exemplificando com o Orçamento 2003 apresentado, no DN, como um ?campo de desportos radicais?, em que os ministros surgiam caricaturados como praticantes de várias modalidades, o jornalista Luís Naves enviou à provedora a sua ?reflexão? sobre o assunto:

?Brincadeira? ? ?Fui co-autor da brincadeira sobre o Orçamento 2003, em que os ministros praticavam desportos radicais, e venho (?) discordar cordialmente do seu comentário (?). Na realidade, a intenção das páginas não tem a ver com aquilo que escreveu, mas sim com a necessidade de tornar mais legível um assunto que, de outra forma, se arriscava a ser uma seca gigantesca, o OE 2003. Sentindo este problema, desenvolvemos a ideia de juntar um pouco de análise a caricaturas e, no meio disto, as verbas dos ministérios. Temos esta estratégia há vários anos e usámos diversas ideias, como uma equipa de futebol, a ópera, um baralho de cartas, a queda do Império Romano e, agora, os desportos radicais.?

?Caricatura? ? Diz, ainda, o jornalista Luís Naves: ?(…) Acho que, do ponto de vista do leitor, não há lugar para dúvidas: as páginas são caricatura e opinião política. O que é imperdoável é que tenham mau gosto ou falta de graça. Penso também que o seu comentário inclui um problema: tal como nem tudo é sério no mundo que nos rodeia, não faz mal que, por vezes, os assuntos mais sérios sejam um pouco relativizados. Os jornais portugueses tendem a ser ilegíveis pela sua pomposidade – digo isto não como jornalista, mas como leitor. Os políticos levam-se demasiado a sério e seria bom que os jornalistas não lhes seguissem o exemplo.?

Ambiguidades ? As palavras do jornalista esclarecem que as páginas citadas na coluna da provedora, sobre o Orçamento 2003, eram ?caricatura e opinião política?. Ora, a caricatura e a opinião têm o seu lugar no jornal em espaços próprios, reconhecidos pelos leitores. De facto, embora a separação tradicional entre géneros jornalísticos esteja hoje muito esbatida, continua, no entanto, a ser essencial eliminar ambiguidades quanto à natureza dos textos publicados.

?Uma seca? ? Refere, também, o jornalista, ?a necessidade de tornar mais legível um assunto que, de outra forma, se arriscava a ser uma seca gigantesca?. Vale a pena, sobre isso, lembrar as palavras da jornalista Françoise Giroud, citando madame de Staël: ?Nunca se deve atribuir àqueles que nos lêem faculdades inferiores às nossas (…) e não nos devemos colocar ao nível do maior número, mas tender ao mais elevado grau de perfeição possível.? Também o ex-director da radiotelevisão belga – Robert Wangermé – costumava dizer que nunca se deve partir do princípio de que o público é demasiado ignorante para compreender o que queremos dizer-lhe."