DIÁRIO DE NOTÍCIAS
"Dizer sem ter dito", copyright Diário de Notícias, 4/5/03
"É esta a primeira vez que me dirijo ao vosso jornal e não pensava fazê-lo, mas acontecimentos últimos (…) levaram-me a isso. Sinceramente, nunca pensei que fosse possível que um título tão prestigiado como o DN fizesse uma primeira página como a de hoje (28/3): ?Cavaco 30 Ferro -2?. Que leitura extraordinária de uma sondagem! (…) Não há palavras que exprimam tamanha indignação. Estas palavras são do leitor Estrela Duarte. Vejamos a que se referem.
No dia 28 de Março, o DN chamou para a primeira página os dados do ?Barómetro? que publica regularmente. O título da ?chamada? era: ?Cavaco em ascensão?. Um pouco abaixo, via-se uma fotografia de Cavaco Silva e, em letras gordas, ?30%?, seguida de outra, de Ferro Rodrigues, e ?-2%?. Junto da primeira foto o DN dizia: ?Cavaco Silva ganha mais quatro pontos e da segunda, com igual destaque, Ferro Rodrigues sem mudança.?
Um curto texto, a remeter para as páginas 22 e 23, afirmava: ?Cavaco Silva continua a subir nas intenções de voto para as eleições presidenciais. O PS ganha vantagem e distancia-se oito pontos em relação ao PSD.?
No interior do jornal, os dados do ?Barómetro? surgem enquadrados em torno de quatro temas correspondentes a outras tantas questões colocadas aos inquiridos. Textos curtos acompanham fotografias dos protagonistas, quadros e gráficos com as percentagens obtidas por cada um.
A primeira pergunta incide sobre ?o melhor candidato para a Presidência da Republica?. De entre ?presidenciáveis?, Cavaco Silva recolhe 30%, como se diz na primeira página. Ferro Rodrigues não se encontra na lista dos ?candidatos? não sendo, portanto, mencionado.
A segunda peça incide sobre as eleições legislativas, tendo os inquiridos respondido à pergunta, em que partido votariam se elas se realizassem nesse dia. O resultado vem expresso no título: ?os socialistas descolam do PSD?, sendo a diferença de oito pontos. Ao lado, junto a uma foto de meio corpo de Mário Soares, encontra-se a frase: ?Mário Soares perdeu popularidade nos últimos meses.? O dado consta de uma ?escala? de popularidade dos ?políticos de esquerda?, na qual o ex-presidente ocupa o primeiro lugar.
A terceira peça, incide sobre a ?actuação dos ministros?. Junto das fotografias dos ministros é apresentada a votação recolhida por cada um.
Na última peça surgem os resultados sobre a ?actuação dos líderes políticos? (positiva ou negativa). No título, afirma-se: ?Durão Barroso e Portas em queda.? Ao lado, junto a uma fotografia de meio corpo de Durão Barroso, o DN diz: ?Durão está este mês no fim da lista de popularidade dos líderes políticos.?
Procurando, nessa peça, os valores atribuídos a cada líder verifica-se que os ?-2%? de Ferro Rodrigues, mencionados na primeira página, se referem ao ?balanço? entre as opiniões positivas e negativas. Trata-se, pois, de um valor que nada tem a ver com o valor obtido por Cavaco Silva.
A menção na primeira página, fora do contexto em que foram obtidos, dos dados relativos a Cavaco Silva e a Ferro Rodrigues convidava os leitores a uma comparação que não podia ser feita. De facto, a existir, a comparação seria entre resultados obtidos na mesma pergunta. Os valores atribuídos ao ex-primeiro ministro poderiam, assim, ser comparados, apenas, com os atribuídos aos outros sete ?presidenciáveis? submetidos a escrutínio. Do mesmo modo, a avaliação da ?actuação? de Ferro Rodrigues só poderia ser contraposta à das personalidades incluídas na mesma pergunta, por exemplo, os dois líderes da coligação governamental.
Ao associar as fotos dos dois protagonistas e os valores obtidos por cada um em contextos absolutamente distintos, a primeira página do DN induziu os leitores em erro. De facto, apesar de a não ter feito abertamente, a comparação entre ambos tornou-se, contudo, implícita. Deu a entender sem incorrer na responsabilidade de ter dito.
No interior do jornal, quer os títulos, quer os textos estão de acordo com os resultados mostrados nos quadros. A manipulação dos dados verificou-se, apenas, na primeira página, o que é grave, dada a importância de que se reveste a informação surgida nesse local, para mais acompanhada das fotografias dos dois protagonistas.
As sondagens tornaram-se, nos últimos anos, um poderoso instrumento de intervenção, fazendo e desfazendo líderes, sobretudo, em períodos eleitorais. Acresce que, para além das suas próprias limitações, as sondagens são, muitas vezes, tratadas, nos media, de uma maneira pouco rigorosa.
Isso é especialmente perturbador quando se trata de apurar preferências ou julgar candidatos (ou pseudocandidatos) e líderes partidários. Ora, o facto de o País não se encontrar em período eleitoral não desobriga os media do tratamento rigoroso de resultados de sondagens.
O DN pode criar a sua lista de presidenciáveis, admitindo e excluindo dela quem lhe aprouver. Não pode, contudo, apresentar títulos mistificadores de uma ?realidade? já de si frágil e pontual, como é a que resulta de sondagens.
Bloco-Notas
Sondagens e ?leituras?
Não é a primeira vez que leitores do DN contestam a ?leitura? jornalística de resultados de sondagens publicadas pelo jornal. A interpretação de sondagens é, aliás, uma área de especialização em que os media não investem muito, limitando-se a encomendá-las e a publicar os dados fornecidos pelos institutos que as realizam. Geralmente, esses dados ?rendem? títulos de impacto e alimentam algumas páginas durante dois ou três dias. Raramente os jornalistas e os responsáveis pelos estudos discutem, em público, as metodologias utilizadas, limitando-se a publicar a ficha técnica, aliás, por imposição legal. Isso não acontece, contudo, apenas em Portugal. Vejamos um exemplo.
Margem de erro
O último número da revista The Harvard International Journal of Press Politics, (Winter 2003) publica um estudo sobre a cobertura televisiva de sondagens nas eleições presidenciais americanas de 2000. Partindo da importância crescente das sondagens como principal elemento da cobertura das campanhas eleitorais, a autora, Stephanie Larson, tentou apurar se os jornalistas melhoraram o tratamento de sondagens, por exemplo, explicando ao público o que elas significam (e o que não significam). O objectivo era apurar se as notícias fornecem a margem de erro das sondagens e identificar a extensão e a natureza dos erros praticados nos canais de televisão norte-americanos. A autora recorda que não basta mencionar a margem de erro, uma vez que a generalidade do público tem um conhecimento limitado de estatística. Em sua opinião, é necessário que os jornalistas expliquem o seu significado e como aplicá-la, usando-a correctamente quando interpretam ou apresentam resultados de sondagens. O problema, diz a autora, é que, os próprios jornalistas não estão, geralmente, preparados para fazer esse trabalho.
Dramatizar os dados
Outra das razões que a autora apresenta para os jornalistas não valorizarem a margem de erro na apresentação de sondagens é o facto de esse elemento introduzir um grau de incerteza que impede conclusões definitivas, retirando aos resultados a componente ?dramática? de que os jornalistas precisam para construir as notícias. Para Stephanie Larson, o desprezo da margem de erro pode encorajar os jornalistas a fornecerem ?explicações fantásticas? e a verem ?saltos significativos? nas sondagens. A aparente realidade e a precisão das sondagens conduz os jornalistas a cometerem erros crassos, incluindo tentativas de encontrar significado profundo onde ele não existe.
Grande confusão
O estudo conclui que na campanha eleitoral de 2000, apesar de a margem de erro ter acompanhado as notícias, existiu grande confusão quanto ao seu significado. Os canais de televisão ou a ignoraram ou aplicaram-na mal, nomeadamente quando os dados indicavam os dois candidatos muito próximos. Por exemplo, os jornalistas apontavam um ou outro na posição da frente, quando não existia uma evidência clara de que assim era."