DIÁRIO DE NOTÍCIAS
"O pseudo-evento", copyright Diário de Notícias, 22/6/03
"A conferência de imprensa de Fátima Felgueiras, no passado dia 11, transmitida em directo na abertura dos principais noticiários dos três canais de televisão, constitui um pseudo-evento, no sentido em que o define Daniel Boorstin ? acontecimentos ?artificiais?, não espontâneos, criados para serem cobertos pelos media e cujo sucesso depende da amplitude da sua cobertura. Correspondem à procura crescente de notícias que caracteriza as democracias contemporâneas.
Os políticos e os jornalistas são os maiores criadores de pseudo-eventos. Os primeiros, porque precisam de ser notícia, na medida em que é essencialmente através dos media que transmitem aos cidadãos as suas propostas e as suas ideias, e os segundos porque precisam de satisfazer as expectativas dos seus públicos em matéria de informação. Para corresponderem a essas expectativas, e não existindo acontecimentos ?naturais? em número suficiente para ?alimentar? a procura de notícias, os media criam pseudo-eventos. Como refere Boorstin, o ?repórter de sucesso? é aquele que é capaz de encontrar uma história mesmo que não tenha acontecido nada de relevante. E, se não consegue encontrá-la, pode sempre questionar uma figura pública para obter uma declaração ?interessante?. Pode, também, descobrir um surpreendente ?interesse público? num qualquer evento vulgar, através da técnica ?a notícia por detrás da notícia?.
A conferência de imprensa de Fátima Felgueiras não existia sem a ajuda dos media. O seu anúncio foi feito com antecedência para criar expectativa e permitir que as televisões preparassem a sua transmissão. O seu interesse dependia menos das ?novidades? que seriam fornecidas do que do seu significado e dos efeitos/reacções que produziria. O seu sucesso media-se pela amplitude da sua cobertura ? e fez o pleno dos três canais televisivos. Funcionou como uma autopromoção (independentemente das críticas negativas que provocou nos meios políticos e jornalísticos). As declarações da autarca foram repetidas exaustivamente, nesse dia e nos dias seguintes, dando origem a novos pseudo-eventos, entre os quais, no próprio dia, as declarações de um alto dirigente do Partido Socialista, dos representantes partidários locais e do ?povo? de Felgueiras e, no dia seguinte, de deputados dos partidos representados na Assembleia da República, para além de debates radiofónicos, comentários e entrevistas.
A transmissão em ?directo? e a emoção que criou (embora à escala de Felgueiras) ? com o povo reunido em casa e nos cafés para assistir ao evento ? fizeram da conferência de imprensa um ?acontecimento mediático? e um ?acontecimento encenado?, onde não faltaram as imagens e os relatos da ?encenação?: a colocação ?em campo? dos repórteres, as ?regras? ditadas pelo ?organizador? (o seu advogado brasileiro), as entrevistas de bastidores, as descrições da indumentária da autarca e a notícia (antecipada) sobre o seu ?novo visual?.
Mas, apesar de a iniciativa de Fátima Felgueiras ter sido essencialmente um ?acontecimento? televisivo, os jornais conferiram-lhe, também, grande relevo. No DN, ocupou, no dia seguinte, cerca de duas páginas. No Público e no Expresso foi tema de primeira página e de colunas de opinião.
A caracterização da conferência de imprensa de Fátima Felgueiras como um pseudo-evento não esgota, contudo, a sua análise. Todos os que falaram ou escreveram sobre ele, nomeadamente os jornalistas e os políticos, criticaram severamente a autarca. Perguntar-se-á, então, por que razão os responsáveis dos canais de televisão lhe dedicaram tanto tempo no horário ?nobre?.
Não está em causa o interesse noticioso das declarações de Fátima Felgueiras, cujo conteúdo não era, aliás, antecipadamente conhecido, mas sim a sua transmissão sem tratamento jornalístico.
E não deixa de ser significativo que a discussão posterior se tenha centrado em alguns dos sound bites proferidos pela autarca, deixando na penumbra, entre outras, a questão do financiamento das campanhas eleitorais, apenas aflorada em artigos de opinião ou em editoriais (um dia serão invocadas como ?prova? de que os jornalistas estavam atentos, como aconteceu agora com o perdão de penas de 1999).
Por outro lado, se é certo que a responsabilidade pelo protagonismo conferido à ex-autarca tem de ser atribuída aos responsáveis pela informação televisiva, também é certo que ninguém obrigou os políticos a fazerem declarações públicas sobre um caso que afirmam repudiar, mas em cuja promoção acabaram por colaborar.
Importaria saber se era possível as televisões comerciais recusarem a ?oferta? do ?show televisivo? proporcionado por Fátima Felgueiras. A resposta mais simples é afirmar que não, por se encontrarem reféns dos shares de audiência. Competia, pois, ao serviço público de televisão marcar a diferença, dispensando-se da transmissão directa. Não o tendo feito, desvalorizou o ?furo jornalístico? conseguido, isto é, a entrevista com a autarca.
Bloco-Notas
A análise do ?caso Felgueiras? ficará incompleta, se não se procurarem as razões do sucesso da prestação televisiva da autarca e do interesse das televisões na sua mediatização. Eis algumas explicações possíveis:
A dimensão afectiva
Os estudos sobre a ?agenda dos media? mostram que os elementos predominantes nas imagens do mundo publicadas pelos media se tornam elementos predominantes nas imagens do mundo adquiridas pelo público e que existe, nas notícias, uma ?dimensão afectiva? susceptível de conferir um ?tom? positivo ou negativo a determinadas personalidades. Essa dimensão é visível, por exemplo, na cobertura do futebol. Em Portugal, nos últimos tempos, ouve-se dizer que o ?futebol? é o único motivo de ?orgulho nacional?. A ?dimensão afectiva? explica, assim, que os media concedam largo tempo de antena a dirigentes desportivos, ao contrário do que acontece com figuras relevantes em domínios como a política, a ciência ou a cultura, que não dispõem desse privilégio.
Heróis e celebridades
O ?caso Fátima Felgueiras? ultrapassa o interesse jornalístico, situando-se, sobretudo no plano ?afectivo?. As emoções que desperta oscilam entre o apoio do ?povo? à ?heroína?, transformada momentaneamente em ?celebridade mediática?, e a rejeição da ?foragida?, que afronta a lei e a ordem instituídas. Ao mostrar-se ao País na pele de uma mulher ?injustiçada? e só, longe dos filhos, mais próxima dos que sofrem do que dos poderosos, apelando a uma reflexão sobre a ?condição humana?, bem longe da imagem de autarca indiciada de graves crimes, Fátima Felgueiras ?jogou? com emoções individuais e colectivas.
A aposta das televisões
Não é difícil, neste contexto, perceber por que razão as televisões apostaram na mediatização de Fátima Felgueiras. O ?mistério? que envolveu a sua fuga, por um lado, e as suas características pessoais, por outro, garantiam à partida que o ?povo televisivo? não perderia o ?espectáculo?. A conferência de imprensa de Fátima Felgueiras não se destinava, como ficou provado, a esclarecer o que quer que fosse sobre o processo em que está envolvida ? matéria que não interessava àqueles a quem fundamentalmente se dirigia e para cuja compreensão seria necessária informação adequada. Prova disso é o facto de os responsáveis pela transmissão televisiva não se terem preocupado em enquadrar e aprofundar as suas declarações, de modo a que o ?grande público? pudesse perceber o que está em causa. De facto, as palavras de Fátima Felgueiras não necessitavam de qualquer conhecimento ou competência particular para serem ?consumidas? por aqueles a quem se destinavam. Foi isso que as televisões perceberam desde início e nisso apostaram com sucesso, apesar de saberem que se trataria de uma sessão de propaganda da autarca e que, por isso, seriam, severamente criticadas."