DIÁRIO DE NOTÍCIAS
"O sentido das palavras", copyright Diário de Notícias, 15/6/03
"O tratamento jornalístico do processo Casa Pia continua a provocar algumas perplexidades nos leitores e a dar origem a controvérsia. Seria, aliás, estranho que assim não fosse, uma vez que os media são um dado incontornável nas discussões sobre o funcionamento da justiça e da actividade política.
Os leitores do DN estão atentos aos múltiplos aspectos da cobertura deste caso e não deixam sem reparo os que lhes suscitam dúvidas.
O leitor Costa Antunes questionou o facto de a manchete que menciona João Soares (26/5) ?relativa ao ?caso Moderna?, vir escarrapachada na primeira página, na coluna Pedofilia? e Sandra Cardoso manifesta o seu ?descontentamento? com a manchete Herman processa Balsemão, afirmando sentir-se ?enganada?, uma vez que esse título ?mostra uma certeza (…), não coloca apenas uma hipótese?. Segundo a leitora, ?no interior do jornal, o título da notícia não mostra a mesma convicção?, falando, antes, ?na possibilidade de o apresentador processar o grupo Balsemão?. Sandra Cardoso afirma que ?o DN é um jornal de referência?, do qual se espera ?rigor no tratamento noticioso?, o que, a seu ver, não aconteceu. Analisemos cada um destes casos no contexto em que surgiram.
Começando por Sandra Cardoso, é justa a observação que faz sobre a diferença entre a certeza do título da primeira página ? Herman processa Grupo Balsemão e a incerteza do título da notícia no interior do jornal ? Herman pode processar SIC.
O leitor Costa Andrade, ao ler a manchete João Soares ataca Portas e Santana ? que julgou referir-se ao ?caso Moderna? ? enquadrada no antetítulo Rede de pedofilia ? ficou perplexo, por não associar esses nomes a Rede de pedofilia. A manchete referia-se, contudo, a uma (alegada) intervenção do ex-presidente da Câmara de Lisboa na reunião do secretariado nacional do seu partido, a propósito da detenção do deputado Paulo Pedroso. Este episódio foi referenciado pelo DN como integrando-se na Rede de pedofilia, como aliás, aconteceu com outros. Se não, vejamos:
O DN tem usado insistentemente ao alto da primeira página, a enquadrar as manchetes sobre o processo da Casa Pia, o antetítulo Rede de pedofilia. Esta frase tem servido como referência de títulos como: Juiz confirma prisão de Ritto (21/5); João Soares ataca Portas e Santana (26/5); Convocados (referindo-se a Ferro Rodrigues e Herman José) (27/5); Advogado de Pedroso com acesso a escutas (28/5); Juiz pode deixar processo (29/5) e muitos outros. Contudo, nalguns dias esse ante-título é substituído por Caso Casa Pia e Processo Casa Pia ou mesmo suprimido. No interior do jornal, os desenvolvimentos destas manchetes não seguem o mesmo modelo de titulação, surgindo antetítulos como Escândalo da pedofilia, Caso Casa Pia ou Rede de pedofilia ou apenas Pedofilia.
Ora, a primeira página é o ?rosto? do jornal e, portanto, o primeiro contacto (visual) do leitor com o jornal. A primeira página pode levar leitores a comprá-lo ou a rejeitá-lo e, a atestar a sua importância está o facto de ela ser da exclusiva responsabilidade da direcção. Deve merecer toda a atenção e cuidado, não apenas quanto às manchetes, mas também quanto aos elementos que as enquadram.
Os títulos de primeira página estão sujeitos a limitações e constrangimentos que decorrem do formato e do grafismo do jornal, obrigando a simplificações e supressões que visam estimular a curiosidade do leitor, muitas vezes, sacrificando o rigor da informação. Já os antetítulos, quando existem, incluem apenas uma ou duas palavras, funcionando como elementos ?referenciais? e ?códigos? de leitura do texto a que se referem. Tal como o título, o antetítulo ?diz? sempre qualquer coisa sobre o tema a que está ligado, constituindo, para o leitor, uma ?instrução de leitura?. O antetítulo ?julga? o texto antes de este ser lido, reenviando-o a uma informação anterior.
Não é indiferente escolher como antetítulo a frase Rede de pedofilia, em vez de Processo Casa Pia ou Caso Casa Pia ? para citar alguns dos utilizados pelo DN ?, uma vez que o sentido dessas frases não é idêntico. Acresce que algumas das manchetes referenciadas sob Rede de pedofilia misturam os estatutos e os papéis das pessoas mencionadas, de pouco servindo que os pós-títulos e os desenvolvimentos das páginas interiores reponham os factos e devolvam a cada protagonista o seu papel.
Uma análise da primeira página do DN nas últimas semanas, mostra, contudo, que o antetítulo Rede de pedofilia é aplicado sem critério visível a vários acontecimentos e protagonistas com intervenção no caso, não se vislumbrando, por parte do jornal, uma intenção de incluir na ?rede? alguém em especial.
Contudo, a escolha desse antetítulo parece não ter em conta os efeitos da associação repetida dessa frase aos nomes a que surge referenciada. Segundo o critério que tem sido aplicado, qualquer figura pública que se pronuncie sobre o processo Casa Pia corre o risco de ver o seu nome referenciado a Rede de pedofilia na capa do DN.
Bloco-Notas
Discutir o jornalismo ? Apesar da exposição e do escrutínio público permanente a que os jornalistas estão sujeitos, não apreciam discutir o seu trabalho com pessoas de fora do seu ?campo? profissional. Em tempos de crise, o jornalismo é tema de grandes discussões públicas e de alguma autocrítica, mas raramente se discutem as regras e os princípios em que os jornalistas baseiam as decisões que tomam. É significativo, por exemplo, que no debate público sobre o processo Casa Pia, um campo tão fechado e complexo como a justiça tenha vindo a expor e discutir o seu funcionamento, e que muitos jornalistas quando questionados sobre as suas responsabilidades respondam com argumentos do género ?nós fazemos o nosso trabalho?, ou ?não se diga que os jornalistas é que têm a culpa?, ou ?limitamo-nos a reportar a realidade?. Alguns editoriais têm adoptado, também, a mesma filosofia.
Jornalismo de fontes ? O processo da Casa Pia constitui um excelente ?laboratório? para o estudo das relações entre o jornalismo, a política e a justiça. Não se trata apenas de questões tão largamente debatidas como a quebra do segredo de justiça ou as ?fugas orientadas?. Mas, esse é, talvez, o exemplo mais evidente de uma certa promiscuidade na relação entre os jornalistas e as partes intervenientes neste processo. Essa promiscuidade é favorecida pelo sistema comercial em que operam os media, caracterizado por uma competição (quase) sem limites. Com efeito, os jornalistas (e todos os que intervêm no debate público) condenam a quebra do segredo de justiça, mas, ao mesmo tempo, é nessa quebra que apoiam quase toda a informação que divulgam. Na cobertura jornalística do processo Casa Pia, não se pode, em rigor, falar de jornalismo de investigação. O que existe é jornalismo de fontes.
Uso de escândalos ? O tratamento jornalístico de escândalos foi estudado há alguns anos pelos investigadores americanos H. Molotch e M. Lester, que analisaram o ?uso estratégico de escândalos?. Dizem estes autores que ?um escândalo exige a cooperação voluntária de, pelo menos, uma parte com poder e legitimidade decorrentes da sua experiência ?em primeira mão? ? por exemplo, uma testemunha ocular ? ou da sua posição na estrutura social ? por exemplo, um ?informador? que promove a fuga de informação. Esta capacidade está, geralmente, nas mãos de elites com ?homens de confiança? estrategicamente situados?. Os autores afirmam que ?quando o ?informador? pertence a um status baixo, e não é apoiado por um grupo com poder, a produção do escândalo é difícil, senão impossível. Mas, se pessoas de status elevado fazem ?delações? ? por exemplo, ?um líder político que empreende uma luta para eliminar um oponente? ? a produção do escândalo torna-se fácil?. O estudo é de 1975 e está publicado em Portugal no livro de N. Traquina, Jornalismos: Questões, teorias e ?estórias?."