DIÁRIO DE NOTÍCIAS
"O narrador e a personagem", copyright Diário de Notícias, 6/7/03
"O leitor Eduardo Gago contesta a ?maneira como alguns artigos do DN são titulados?, nomeadamente o título que o DN escolheu para noticiar uma entrevista do deputado Guilherme Silva à Antena 1, na qual se referiu à prisão preventiva do deputado Paulo Pedroso. Diz o leitor que, embora o jornalista ?seja livre de escolher o cabeçalho do que escreve?, ao fazê-lo, (…) por respeito pelos leitores, deve manter o contexto, a ligação e o sentido do corpo do artigo?. Em sua opinião, isso não aconteceu com o título Guilherme Silva critica atitude de Pedroso ? (14/6). Segundo o leitor, lendo apenas esse título fica-se com a ideia de que o deputado Guilherme Silva ?discorda e critica? P. Pedroso. No entanto, diz o leitor, ?ao ler o resto do artigo acabamos por verificar que não é isso, verdadeiramente, o que lá está escrito?.
Vejamos, então, o essencial das declarações de Guilherme Silva, à Antena 1, mencionadas no DN e não desmentidas pelo próprio, (aliás, retomadas, em parte, posteriormente).
Disse o deputado que ?a Assembleia da República ?não deveria ter permitido a detenção do socialista Paulo Pedroso?, suspeito de pedofilia, e que ?a forma como foi pedido à AR que autorizasse a prisão de Paulo Pedroso, se viesse a ser necessária e a mostrar-se adequada, é um cheque em branco que a Assembleia não devia dar??.
Para Guilherme Silva, ?trata-se de uma questão institucional?. ?Ser inocente e vítima de uma cabala, e apesar disso declarar ?estou aqui para me prenderem?, não lhe parece ?humanamente aceitável, nem razoável??. Se tal acontecesse consigo ?denunciaria que estava a ser vítima de uns pulhas, por razão da (sua) função pública?, e acreditava que ?a justiça (…) e os magistrados iam saber detectar essa situação a tempo?. Caso tal não acontecesse, ?iria exigir? ao Presidente da República ?que tivesse uma intervenção, porque estava a haver uma situação que era preciso que o regime atentasse (…). Mais: ia opor-(se) a que a AR aprovasse a (sua) prisão preventiva?.
Segundo o DN, Guilherme Silva considerou, ainda, que ?tiraria ilações sobre a forma como os outros deputados votassem, pois não aceitaria, em nenhuma circunstância, que, estando inocente, alguém autorizasse a (sua) prisão?. No seu caso, ?lutaria até às últimas consequências? para demonstrar a inocência e, caso ?não conseguisse desmontar essa cabala, renunciaria a todos os cargos políticos?. Comparando com o relato feito por outro jornal ? neste caso, o Público ? verifica-se que coincidem, no essencial.
Contudo, o Público titulou ?? Guilherme Silva diz que Parlamento não devia ter autorizado detenção de Pedroso ?, o que traduz uma interpretação diferente das declarações do deputado. De facto, enquanto para o DN a crítica de Guilherme Silva foi a Paulo Pedroso, para o Público a crítica dirigiu-se, antes, ao Parlamento.
A notícia do Público inclui, também, algumas frases da entrevista que, embora não surjam no DN, ajudam a perceber melhor o título escolhido por este. Por exemplo, no lead do Público, lê-se: ?No lugar do porta-voz do PS, líder parlamentar do PSD confessa que teria resistido? e no corpo da notícia: ?Guilherme Silva acrescentou ainda ter muita dificuldade em compreender que alguém que está inocente e que defende que está a ser vítima de uma cabala e de provas forjadas diga ?apesar disso estou aqui para me prenderem?.?
A semelhança dos relatos de ambos os jornais e o facto de nenhum deles se encontrar assinado sugerem que tiveram origem na mesma fonte (não mencionada), presumivelmente a Agência Lusa. Porém, dado que o espaço atribuído pelo DN à notícia era mais reduzido que o do Público, a selecção das declarações acabou por sacrificar algumas frases que, se tivessem sido publicadas, melhorariam a compreensão do título.
Sem elas, e a uma primeira leitura, o título do DN surge como não completamente sustentado pelo corpo da notícia.
Os leitores que leram as declarações de Guilherme Silva apenas no DN poderão, pois, ter tido dúvidas sobre a justeza do título, uma vez que da sua leitura resulta mais evidente uma crítica ao Parlamento.
Contudo, as coisas não são assim tão simples. O ?discurso? de Guilherme Silva é um discurso figurado, quer no plano da expressão quer no plano do conteúdo, e, como tal, dotado de uma ?polivalência significativa?. Existe nas suas palavras um sentido implícito e um sentido explícito, que se presta às interpretações feitas pelos dois jornais (ainda que no DN essa interpretação surja menos sustentada pelo texto).
O deputado usou uma personagem fictícia (ele próprio, no papel do deputado Paulo Pedroso) visível nas expressões ?se tal acontecesse comigo (…)?, ?deslocando? a ?personagem? Paulo Pedroso para a sua própria pessoa, tornando-se desse modo personagem da sua própria narrativa. Ao salientar as ?diferenças? entre o ?agir? de Paulo Pedroso e o ?seu? (se estivesse no lugar dele), Guilherme Silva produziu uma crítica implícita a Paulo Pedroso.
A ?ilusão referencial? a que o deputado recorre autoriza, pois, a interpretação feita pelo DN.
Bloco-notas
Ainda a entrevista
O tratamento jornalístico do DN e do Público à entrevista do deputado Guilherme Silva proporciona, para além do que acima se refere, reflexões interessantes sobre os chamados ?valores-notícia?, isto é, saber o que tornou essa entrevista ?matéria? noticiável para outros media, entre tantas produzidas diariamente. Por outro lado, saber por que razão foram ?aquelas? frases, e não outras, das proferidas por Guilherme Silva na citada entrevista, a merecerem relevo. Outra ainda, seria perceber o significado dos títulos e da interpretação dada por cada um dos jornais a essas declarações.
Critérios de noticiabilidade
Os estudos sobre os critérios de noticialidade identificam algumas das características que tornam provável que um acontecimento se torne notícia. Assim, a probabilidade aumenta se as notícias envolverem pessoas de elite; se ocorrerem em nações de elite; se envolverem conflito; se forem de natureza negativa, anómala, excepcional, espectacular, insólita (por exemplo, um escândalo ou uma raridade). Se abrangerem muitas pessoas e se revestirem de consequências significativas para a sociedade ou para um grupo grande de pessoas.
Um exercício teórico
Se aplicarmos estes critérios às notícias do DN e do Público, sobre a entrevista de Guilherme Silva, nomeadamente os títulos que lhe foram conferidos, podemos chegar a algumas conclusões teóricas. Assim, o protagonista da notícia ? deputado e líder da bancada do partido do Governo ? pertence ao grupo das pessoas que integram uma ?elite? (a elite política portuguesa), pelo que a sua ?notoriedade? levou os dois jornais a reproduzirem as suas declarações com destaque. Ambos interpretaram, também, essas declarações como susceptíveis de provocar ?conflito? (dado envolverem crítica), considerando-as ?insólitas?, isto é, fugiam à ?normalidade?. De facto, o Público interpretou-as como uma crítica ao Parlamento e, portanto, envolvendo o próprio autor, como deputado e líder do maior partido (o que é ?raro? e ?inesperado?). Por seu turno, o DN valorizou o seu lado mais ?espectacular?, isto é, viu, além disso, nelas uma crítica ao deputado Paulo Pedroso, envolvendo, assim, no título, não apenas uma pessoa de ?elite? mas duas. Simbolicamente, o título do DN estendeu a crítica a um maior número de pessoas: os membros do Parlamento, enquanto tais, e os membros do partido a que pertence a segunda ?pessoa de elite?, isto é, o PS.
A repercussão
As declarações do deputado tiveram repercussão e consequências, produzindo novas notícias, com outros e novos ?valores?. De facto, o DN de 24/6 voltava a confrontar as declarações do deputado com as de um membro do Governo (do mesmo partido do deputado), interpretando-as como contraditórias entre si, explorando, assim, uma vez mais, o ?conflito? e o ?inesperado? (o retomar do tema)."