DIÁRIO DE NOTÍCIAS
"O jornalismo em questão", copyright Diário de Notícias, 7/9/03
"Nos últimos meses uma série de acontecimentos ocorridos no mundo dos media provocou sobressalto em todos aqueles que encaram o jornalismo como um elemento essencial da democracia.
São vários os acontecimentos que podem ser evocados como justificando esse sobressalto. A nível internacional, a cobertura da guerra no Iraque levantou inúmeras questões sobre as fronteiras entre informação e propaganda. A manipulação da informação, de que é exemplo a história do ?resgate da soldado Jessica?, ficará como um dos maiores embustes do jornalismo de guerra. A morte mal esclarecida do cientista britânico David Kelly e as contradições vindas a público durante o inquérito ainda em curso mostram comportamentos eticamente duvidosos da BBC e do Governo britânico.
Nos EUA, a crise no New York Times devida ao uso de meios fraudulentos para obtenção e publicação de informação abalou o jornalismo norte-americano.
Entre nós, os casos Universidade Moderna e Casa Pia trouxeram fundadas preocupações sobre métodos baseados em estratégias estranhas ao dever de informar usados por jornalistas e suas fontes, como a divulgação do conteúdo de escutas telefónicas em jornais e televisões ou a presença de testemunhas nos telejornais, apesar de isso representar violação do segredo de justiça por parte de quem tem o dever de o guardar.
O uso sistemático de fontes não identificadas que ?colocam? em determinados jornais notícias que dias depois são desmentidas em jornais da concorrência por outras fontes igualmente não identificadas, mostra como o jornalismo se torna vulnerável quando se deixa instrumentalizar.
A prática generalizada de notícias com uma única fonte, com ou sem identificação, aparentemente sem que para isso exista qualquer justificação e sem que seja fornecida explicação, não pode deixar de causar perplexidade. A inclusão frequente, nas notícias, de declarações de pessoas não identificadas, sem que se vislumbrem razões para tanto ?segredo?, constitui outro motivo de apreensão.
Dir-se-ia, aliás, que a não identificação das fontes se tornou a regra do jornalismo, em vez da excepção. De facto, noticia-se hoje com a maior facilidade que ?o jornal teve acesso? ou ?sabe? que fulano vai fazer ou dizer algo, sem que o leitor perceba as razões da falta de clareza sobre a origem da informação.
Vale a pena recuperar exemplos recentes, alguns dos quais, por outras razões, provocaram polémica. No dia 12 de Agosto, o DN noticiou, sem menção de fonte nem assinatura, que Portugal ia ?prestar homenagem? ao tenente-coronel Maggiolo Gouveia, antigo comandante da PSP em Timor. A notícia avançava pormenores da biografia do homenageado, citando, sem identificação, uma ?fonte governamental? e, noutro passo, ?uma fonte próxima do Ministro da Defesa?. As informações fornecidas abrangiam, para além de dados factuais (sobre a cerimónia e sobre o homenageado), sentimentos atribuídos a terceiros, como seja ?o empenho revelado (…) pela ministra da Justiça (…) pelo procurador-geral da República (…) e pelo embaixador de Portugal em Díli?.
Lendo a notícia não se compreendem as razões da não identificação das fontes que forneceram ao DN, quer as informações factuais quer o sentir das personalidades mencionadas, para mais tratando-se de fontes da administração pública que tem o dever de transparência. Aliás, nada de especialmente comprometedor, para a fonte ou para o jornal, parecia justificar a omissão. De facto, nos dias seguintes, outros jornais publicaram a notícia, identificando, com nomes e cargos, os seus autores. Por que razão, então, o DN escondeu dos seus leitores a origem da notícia? O facto de se tratar de uma informação dada ao jornal em ?primeira mão? não justifica a omissão da fonte.
Mas este não foi exemplo único. Outras notícias (11, 14 e 21/08), por sinal sobre assuntos da mesma área, sofreram do mesmo ?mal?. Trata-se de informações sobre as ?compras? do Ministério da Defesa e sobre os ?gastos da tropa?, que surgem no DN sem menção de fonte, para além das habituais ?fonte ligada ao processo?, ?fonte oficial? e ?segundo apurou o DN?. Ora, relativamente a duas dessas notícias, nesses mesmos dias as televisões mostraram o ministro da Defesa (dia 11) e o primeiro-ministro (dia 14), anunciando ?ao vivo? os factos noticiados pelo DN com omissão da fonte.
Se uma notícia com uma única fonte é já uma notícia frágil, uma notícia sem qualquer fonte claramente identificada é ainda mais frágil. O DN conseguiu antecipar-se aos seus congéneres nas notícias sobre o Ministério da Defesa, com isso provando que possui crédito junto de quem lhe dá as informações. Contudo, ao esconder dos seus leitores a origem da informação que lhes oferece, descredibiliza e menoriza essa informação.
Como repetidamente aqui se tem afirmado, não há notícias sem fontes. Mas há jornalistas que, ao invés de irem atrás das notícias, deixam que sejam as notícias a ?irem? atrás de si. Essa evolução do jornalismo que hoje se pratica é motivo de fundadas inquietações.
Bloco-Notas
O poder das fontes ? No seu livro The Sociology of News (2003), Michael Shudson, um dos mais lúcidos estudiosos do jornalismo, afirma que o poder mais ?profundo e sombrio? da imprensa reside nas fontes. Em sua opinião, não são apenas as fontes governamentais que procuram influenciar os media a seu favor. Também instituições como universidades, empresas privadas e públicas, associações voluntárias, etc., procuram profissionais com experiência em jornalismo para colocarem notícias favoráveis. O autor fornece alguns exemplos do trabalho das inúmeras empresas de relações públicas que, nos EUA, se dedicam a essa tarefa. Cita um artigo publicado na revista Columbia Journalism Review, em Janeiro de 1989, onde se afirma que um funcionário de relações públicas, na Califórnia, no final dos anos 80, cobrava 43 000 dólares por colocar, com sucesso, uma ?história?, no programa 60 minutos (canal de televisão NBC); 21 000 dólares, no programa People e 12 000, no New York Times.
Regresso aos valores ? A importância e o poder das fontes não é matéria de estudo e reflexão apenas de investigadores e cientistas sociais. Muitos jornalistas debruçam-se, também, sobre esse tema, geralmente numa perspectiva próxima das suas práticas quotidianas, convidando os seus colegas a um regresso aos valores da profissão. Bill Kovach e Tom Rosenstiel, no livro The Elements of Journalism (2001), lembram que uma das mais antigas técnicas adoptadas pelos jornalistas para assegurarem ao público a fiabilidade do seu trabalho é fornecer-lhe as fontes das informações. Quando a fonte é claramente identificada o público pode decidir por si próprio se a informação é credível, acrescentam.
Perguntas e respostas ? Joe Lelyveld, editor executivo do New York Times, citado por Bill Kovach e Tom Rosenstiel, afirma que antes de usar fontes anónimas um jornalista deve colocar, a si próprio, duas questões: 1) ?A fonte anónima tem conhecimento directo do acontecimento sobre o qual fala??; 2) Que motivo, se existe algum, poderá ter a fonte para tentar enganar o jornalista ou esconder factos importantes susceptíveis de alterar a sua visão sobre o assunto? Só depois de se considerar satisfeito com as respostas, o jornalista deverá usar a fonte. Contudo, deverá provar aos leitores que a fonte conhece o assunto (?viu o documento?), explicando, ainda, as razões do anonimato.
Opiniões de outras pessoas ? Por seu turno, a jornalista Deborah Howel, citada no mesmo livro, aconselha a observância de duas outras regras sobre as fontes anónimas, que reforçam as defendidas pelo seu colega Lelyveld: 1) Nunca usar uma fonte não identificada para fornecer uma opinião de outra pessoa; 2) Nunca usar uma fonte não identificada como primeira citação de uma notícia."