Friday, 29 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Estréia na escada

LEMBRANÇA DE CÁSSIA

Paulo José Cunha (*)

Foi aí pelo final dos anos 80. Plantão de fim de semana na Globo, em Brasília. Desde o início da manhã várias matérias vinham caindo, os "escravos" da pauta, desalentados, retornando à redação de mãos vazias. "Cair", no jargão das redações, é o que ocorre quando uma matéria não acontece, é a solenidade adiada, o evento cancelado, o entrevistado que tinha de estar em algum lugar e se atrasou, essas coisas. O jornalista Rangel Cavalcanti gosta de dizer, nestas ocasiões, que "os fatos se recusam a acontecer". Nos jornais sempre existe, para essas eventualidades, o recurso do calhau, um tapa-buraco, a matéria "fria" esquecida na gaveta, aquele texto que tanto pode sair na edição de hoje como daqui a dois anos que não fará diferença alguma. Algo como "Adolescência: a idade dos desafios".

Na tevê não existe calhau, principalmente nos telejornais diários. Daí porque a adrenalina vai subindo à medida que as matérias vão caindo, novas pautas vão tendo de ser criadas de última hora e o dead-line (a hora do fechamento) vai se aproximando perigosamente. Nessas horas, qualquer mendigo passando na rua vira entrevistado. Naquele sábado a coisa não ia bem. Tinha sido possível, a duras penas, fechar o DF-TV edição do meio-dia. Mas o DF-TV 2? edição, a edição noturna, estava periclitando. Por volta das 4 e meia da tarde, o pânico começou a se instalar, com novas matérias caindo e o dead-line encostando.

"Temos de conseguir alguma coisa, qualquer coisa", avisou a editora, se não me engano a Fátima Gomes. Reviramos jornais, verificamos denúncias de telespectadores, e nada. Até alguém se lembrar do show que uma cantora nova estaria apresentando aquela noite. "Se for boa mesmo pode dar um bom encerramento de jornal". Nesses casos, sempre existe o recurso de deixar no fim o cantor dando uma palinha e preenchendo o tempo até a subida dos créditos. É um quebra-galho, mas ninguém nota. Agora, onde encontrá-la? "Liga para aquele bar, o Bom Demais, o show vai ser lá". Necas. O Bom Demais ainda estava fechado. "Eu conheço a dona, a Cristina, vou tentar conseguir o telefone dela", comentou alguém. "Parece que ela mora na Asa Norte". "E daí, pô, que papo é esse de parece? A gente precisa é encontrar essa cantora, e encontrar logo!".

Nessa altura do campeonato, os palavrões percorrem com agilidade o espaço entre as mesas e os telefones. "Pega um cinegrafista e te manda no rumo da Asa Norte que a gente te passa o endereço pelo rádio do carro." Naquele tempo ainda não havia celular. Chamei o Caio Coutinho, experiente e criativo cinegrafista que até hoje trabalha na Globo, pegamos um auxiliar e picamos a mula. Lá pelo meio do caminho, passaram o endereço pelo rádio. Aceleramos pra lá. Ficava mesmo na Asa Norte, uma quitinete minúscula, daquelas que a gente veste, em vez de morar. E lá estava ela, a salvação da lavoura, ao lado da namoradinha, nos recebendo à porta. Vestia uma bermuda velha, uma camiseta idem e uma sandália havaiana mais idem ainda. Fosse por causa da pressa ou por qualquer outra razão, o certo é que não me surpreendeu nem um pingo estar pela primeira vez diante de um casal de lésbicas.

"Aqui não dá pra gravar, é muito apertado, vamos ter de procurar outro local. E tem de ser rápido", avisou o Caio, de olho no relógio. "Acho que a escada é uma boa", completou, espiando a escadinha vazada, que levava ao segundo andar do prédio comercial onde ficava a kit de Cássia. Pedi que ela pegasse o violão, sentamo-nos na escada. Caio posicionou um spot de 1000w por trás, para dar um contraluz e outro, frontal. Tudo improvisado, mas funcionou. Deu um belo efeito.

Uma figuraça

"O tempo está cada vez mais curto, vai ter de ser de primeira", ele desafiou, nervoso, ajustando a câmera no tripé. "Então vai ser assim: vou fazer uma pequena abertura, dizendo que ela é uma das melhores revelações da música de Brasília, depois faço uma pequena entrevista e peço pra tocar alguma coisa." Então, tá. Mas antes de dar o "gravando", Caio me chama ao lado e pergunta se ela não gostaria de passar um pozinho no rosto, um batom, colocar uma roupa mais transada, essas coisas que toda mulher sempre faz antes de enfrentar uma câmera.

? Que pozinho, cara, eu sou assim mesmo, não tem de disfarçar nada não! Liga essa porra e manda ver!

Gravamos e não teve erro, foi de primeira, "take 1", como se costuma dizer. Voamos pra redação com a fita debaixo do braço. A editora já estava arrancando os cabelos quando irrompemos na ilha de edição, o dead-line mordendo os calcanhares. "Não tem off, não tem que editar imagens, não tem nada. É só cortar e tá pronto", avisei.

Naquele sábado, o DF-TV apresentou a Brasília uma menina com cara de garoto travesso, cantando um blues com aquele jeitão relaxado que iria conquistar o Brasil alguns anos depois. O telejornal nem havia terminado, ainda se ouvia a voz rouca de Cássia, quando uma das telefonistas entra na redação dizendo que a mesa telefônica estava entulhada de ligações de telespectadores querendo saber mais daquela cantora e como fazer para comprar ingressos para o show.

À noite, fui ao Bom Demais. Casa lotada, gente saindo pelo ladrão. Ela me viu e, com aquele ar de malandro, piscou um olho enquanto me mostrava a língua, divertindo-se com a travessura. Uma figuraça.

(*) Jornalista, pesquisador, professor de Telejornalismo, diretor do Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico “Telejornalismo em Close”, coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <upj@persocom.com.br>