Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Eu nos acuso

MATÉRIAS PAGAS

Ronaldo Martins Botelho (*)

O debate aberto aqui em torno da vergonhosa política de vender espaços jornalísticos sob a forma de anúncios nos jornais interioranos paranaenses é oportuno e salutar [veja remissões abaixo]. A análise desse caso se tornaria reducionista, porém, se ignorássemos um dos pontos nefrálgicos nessa questão (o outro, que não será aprofundado aqui, é a falta de escrúpulos dos empresários da comunicação), que é a decadente formação e organização de classe do profissional nessa área. Ao considerarmos esse fator, percebemos que o caso do Paraná não é tão singular assim quanto se quer fazer crer.

Não há como contestar a inescrupulosa prática de enganar a opinião pública vendendo gato por lebre, ou jornalismo por publicidade. Mas, antes de polemizarmos sobre essa atitude venenosa da pequena imprensa, que obviamente conta com a participação de jornalistas ou aspirantes a tal, vamos pôr os pingos nos is e considerar nesse juízo de valores a imprensa que se pratica hoje no país inteiro, para, aí sim, elaborar uma reflexão crítica a respeito. Não se quer com isso, absolutamente, generalizar a partir de um singular mau exemplo ? que, repito, não é tão singular assim ? mas sim meter o dedo na ferida em vícios e omissões que já foram banalizadas pela construção de modelos medíocres de “bom jornalismo”.

Primeiramente, é preciso varrer a idéia equivocada ? magistralmente trabalhada a quem interessa ? de que a grande imprensa faz bom jornalismo e a pequena imprensa faz jornalismo ruim. Há na imprensa nacional, mas também na regional, exemplos de empresas de comunicação de pequeno e médio porte que oferecem modelos de bom jornalismo, ou simplesmente de jornalismo (já que esse conceito, quando adequadamente empregado, por si só carrega genuinamente a sua virtude). Mesmo caindo no pecado de excluir muitos, é oportuno mencionar aqui, em nível nacional, os exemplos das revistas Caros Amigos e Carta Capital. No Rio Grande do Sul, meu estado de origem, tive contato com pelo menos duas experiências da capital que valem ser citadas: os jornais de bairro Oi, Menino Deus ? que conquistou vários prêmios nos primeiros anos de sua existência, e o , do grupo Já Editores, que em poucos anos de desenvolvimento provou que qualidade não tem tamanho.

Panfletos personalistas

Quanto à grande imprensa, mesmo suspeito na avaliação ? já que considero muito parecidos os jornais brasileiros ?, reconheço jornalistas que fazem a diferença de qualidade nos principais diários de grandes capitais do país com que tive contato mais de perto (Brasília, Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo). Mas isso nada tem a ver com a influência que as relações de poder e os interesses comerciais exercem nessas empresas sobre o jornalismo que se pratica.

Não é novidade para os profissionais da imprensa que o jabá, o favor em troca de cuidados no texto é uma prática que ainda vive aberta ou camufladamente nas redações. Jornalistas, em particular na condição de editores, cultivam espaços privilegiados nas altas esferas do poder público e privado, e fazem por merecer, em chamadas exuberantes sob a forma de notícias. Grandes feiras comerciais que financiam a viagem e estadia de convidados da imprensa são exemplos típicos dessa troca de gentilezas, que não raro ocorrem em conformidade com os interesses dos proprietários dos grandes jornais. Por outro lado, os cadernos especiais financiados por grandes empresas fazem isso sem pudores. E também sem pudores deixam de respeitar princípios éticos para ajustar a apresentação dos textos aos desejos dos anunciantes, o que freqüentemente leva ao público o tal gato por lebre tão falado, e com razão, da pequena imprensa do interior Paraná.

Feita essa ressalva, para evitar uma crucificação acrítica, voltamos ao caso do interior do Paraná. Residi recentemente em pequena cidade paranaense por quase um ano, trabalhando numa assessoria e, inclusive, na pequena imprensa. Falo, portanto, com a propriedade e a responsabilidade de quem esteve por essas bandas. É fato que existe, sim, a prostituição da imprensa no interior do Paraná. Organizações civis, empresários e, sobretudo, representantes públicos compram páginas nos semanários locais com facilidade e, o pior, às vezes, a preço muito baixo. Verdadeiros panfletos personalistas e comerciais se apresentam como notícia, quando o que fazem é a mais explícita publicidade, geralmente de setores sociais que já são hegemônicos por seu poder econômico.

Cúmplices e vítimas

Irresponsavelmente, alguns empresários da comunicação utilizam a imprensa como mero instrumento de manutenção de seus interesses, ignorando que o jornalismo tem uma função pública, ainda que com natureza privada. Acompanhei horrorizado, por exemplo, o caso de um semanário em que um colunista político anônimo, com alcunha idiota ? que provavelmente é o dono do jornal ou no mínimo tem o consentimento deste ? que publica críticas das mais cáusticas, sem que os atingidos tomem providências legais, considerando tudo normal. Jornais que praticam esse tipo de comunicação, danosa à sociedade, tornam-se ainda mais perigosos quando contam com o apoio publicitário do poder público. E ele invariavelmente ocorre. Mas tudo isso, entendo, é apenas a ponta do iceberg, ou alguns sintomas e reflexos de uma sociedade omissa, na maioria dos casos por ignorância. De qualquer modo, cabe pensarmos o que fazer ante as limitações de força e articulação com que a nossa categoria se depara. E para isso visitemos outros aspectos da questão.

Para compreender como a situação chegou a esse ponto nos pequenos jornais, tanto do interior quanto de capitais ? onde também conheci tais práticas ?, é preciso atentarmos para a situação do campo profissional do jornalista. A vulgar dispensa provisória da necessidade do diploma reflete parte significativa do problema. O profissional da imprensa brasileiro não tem o respeito que merece nem mesmo da Justiça. Se a comunicação jornalística já era um negócio do poder, a dispensa do diploma apenas legitimou o que estava descontroladamente praticado: a depreciação do mercado do trabalho pela contratação de qualquer mão-de-obra barata para produzir notícias conforme os interesses do mercado.

No interior do Paraná, embora existam faculdades com cursos de Jornalismo, a presença de jornalistas diplomados nas cidades menores é quase nula. E isso pelo simples e óbvio fato de que nenhum empresário é idiota de pagar piso salarial a jornalista, quando pode pagar um terço disso a qualquer pessoa. Quanto aos leitores, esses são cúmplices e vítimas. Cúmplices porque, em pequenas cidades, muitos leitores anunciantes compactuam e se privilegiam ao negociarem espaços em prol de interesses pessoais. Vítimas porque essa prática, resultado da ingenuidade ou da estupidez humana, tem efeitos nefastos de longo prazo sobre a qualidade das decisões públicas e, conseqüentemente, sobre a vida dos indivíduos de cada região.

Parceria efetiva

Além dessa falha legitimada temos falhas de ordem organizacional, que são as limitações materiais e humanas que têm os sindicatos para fiscalizar empresas e redações. Agora, sejamos realistas, até que ponto reúne condições para esse trabalho um profissional ativista sindical que, enquanto profissional que precisa sobreviver, está inserido nas mesmas condições e necessidades que o mercado impõe? Por outro lado, mais grave, quantos trabalhadores da imprensa diplomados têm motivos para se interessar pelo ativismo sindical de sua categoria, tendo em vista que a grande maioria desse contingente está excluída do mercado de trabalho, sem qualquer reconhecimento ou apoio por parte de sua entidade representativa?

Num campo profissional tão elitista como o nosso, é incompreensível que existam tão poucas iniciativas acessíveis por parte das organizações de classe, no sentido de introduzir, qualificar ou reintroduzir os jornalistas no mercado de trabalho. Talvez essas deficiências expliquem em grande parte a indiferença aos chamados para as assembléias. Se o profissional só tem valor para os sindicatos quando está empregado, a entidade de classe cumpre muito mais uma função de assistência aos quadros funcionais das empresas (e, por tabela, aos empregadores) do que propriamente uma finalidade de organização e defesa da categoria. Assim não causa surpresa o fato de que a grande maioria da categoria troque a solidariedade profissional pelo individualismo selvagem. Daí, para se transformar em publicitário disfarçado de jornalista é um passo.

Agora, dimensionando a análise da questão para o campo acadêmico: onde entram as responsabilidades das instituições de ensino superior, em geral verdadeiras fábricas de ilusão que reproduzem modelos da grande imprensa sem gerar uma influência lúcida e crítica sobre o mercado paupérrimo que esperam os novos profissionais, no qual sequer conseguirão muitos deles, ou tão cedo, se introduzir? Estão a nos dever tanto a academia quanto a nossa prestigiosa Fenaj uma parceria efetiva, permanente e construtiva, que rompam esse muro de marfim entre a sala de aula e a redação. Mas que o façam criticamente, tendo como propósito apontar também às futuras gerações de jornalistas outros campos alternativos que se abrem a quem quer fazer jornalismo. Caminhos estreitos, é verdade, mas dignos, recompensadores e prósperos numa sociedade que valorize sua história e identidade. E se assim queremos o Brasil, mais um motivo para pensar na contramão, ou melhor, em múltiplas mãos.

Que não vire a regra

Urge, por hora, liquidar nacionalmente em absoluto com a hipócrita rejeição ao estágio, que é tão inevitável quanto necessário numa profissão em que a ação é essência. Há de concebê-lo, entretanto, não como exercício desregulamentado, ao livre arbítrio dos agenciadores do capital, mas diretamente fiscalizado pelo sindicato, e devidamente acompanhado pela orientação pedagógica de cada instituição. Medidas desse tipo ofereceriam um suporte maior para as organizações sindicais, que, aí sim, teriam tempo e mais legitimidade para fiscalizar o aprendizado prático, sem que este seja explorado em regime profissional, outro sério desvio que o capitalismo instaurou escamoteado no estágio.

Agora, retornando à questão da comercialização de espaços noticiosos, essa é uma situação que exige o envolvimento de instâncias ainda mais amplas que a universidade e o sindicato. Aqui, somente a sociedade civil organizada teria independência e legitimidade para desencadear uma fiscalização da qualidade do jornalismo que a ela é oferecido. A idéia da formação de conselhos municipais de democratização da imprensa, que dessem conta desse tipo de responsabilidade, é um caminho a ser cogitado. Seriam uma versão local dos fóruns regionais, atualmente vinculados ao Fórum Nacional de Democratização da Imprensa. Entretanto, mais do que pensar na formação de um conselho desse tipo é preciso pensar sobre sua funcionalidade, visto que é comum ocorrer de instâncias dessa amplitude serem infiltradas por lideranças que menos têm interesse na transparência da informação.

Como observamos, são muitas questões e frentes que compõem o caldo de cultura que envolve a crise no jornalismo brasileiro contemporâneo, seja ele micro ou macro. Se o caso do Paraná não é exceção, também não haveremos de subdimensioná-lo. Uma certeza tenhamos por enquanto: pensar contextualmente e criticamente as causas dessas práticas, a partir de seus efeitos, é o que necessitamos para que esse tipo de jornalismo não venha a se transformar em regra.

(*) Jornalista, São Carlos, SP

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