Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

"Eu vou parar de ler jornais!"

MÍDIA E CREDIBILIDADE

Antonio Fernando Beraldo (*)

Assim termina um velho samba-de-breque, regravado há vários anos por Maria Bethania. O disco sumiu da minha prateleira, mas o enredo do samba, se não me falha a memória (e deve falhar), era um sonho tragicômico, um pesadelo causado por um chucrute, ou salsichão, mal digerido na véspera, misturado com notícias alarmantes dos jornais do tempo da Segunda Guerra, lá se vão 60 anos.

Lembrei-me do samba lendo o artigo do sempre excelente Rubem Alves na Folha de S.Paulo [2/9, veja remissão abaixo] e as estatísticas sobre a credibilidade da mídia impressa, comentadas na coluna do ombudsman da mesma Folha [19/8]. Nesta, lá pelas tantas, ao citar artigo de Luiz Garcia, de O Globo, foi dito que dever-se-ia "repor a rolha na champanha", uma vez que "convenhamos, 15% é muito pouco" ? a metade de campeã, a Igreja Católica. Mesmo aqui, neste Observatório, o índice foi considerado baixo.

Puxa, quinze por cento! E ainda acham pouco? Fosse comigo, saía soltando rojão e revirando cambalhotas de alegria! A pesquisa, segundo informado, baseava-se num questionário em que as repostas eram "estimuladas e únicas", ou seja, o entrevistado teve que optar por uma, e apenas uma, das alternativas listadas. A mídia impressa perdeu apenas da Igreja Católica ? o que, convenhamos, não é pouca porcaria. Entra ano, sai ano, a Igreja Católica conta com seus aparentemente imutáveis 70% de "fiéis", que, com poucas variações, têm lá suas dúvidas ou, mais freqüentemente, sua ignorância sobre dogmas complicadissimos, e freqüentam a missa vez por outra. Exceção feita à tal da Renovação Carismática, e alguns televisíveis padres canoros-saltitantes nos seus contra-ataques aos crescentes evangélicos, ser católico hoje, no Brasil, é algo bastante nebuloso.

Há que se lembrar, também, que qualquer buraco perdido nos cafundós deste imenso país possui sua igrejinha, suas devoções, suas tradições curiosas, seu folclore… Não é nenhuma vergonha perder de uma instituição que, num avanço vertiginoso, somente há pouco reconheceu, ma non troppo, que talvez Galileu Galilei não estivesse totalmente errado; e que, em pleno século 21, condena o uso da camisinha e da pílula anticoncepcional (os "fiéis", é claro, fingem que não leram este pedaço e esfriaram a explosão populacional e a da AIDS ? mas, neste caso, não convém facilitar). Igreja, qualquer delas, é questão de fé, e fé não se discute: pode sair sangue, como vemos todos os dias seja na Irlanda ou na Palestina e, agora, no coração dos EUA e no Afeganistão.

Falsos cognatos

A credibilidade de um jornal não é questão teológica, ainda bem, e ninguém é obrigado a ler jornais (melhor ainda). Muito pouca gente neste país tem 50 reais (meia cesta básica) para gastar em um mês com jornais diários. É preciso repetir, sempre, que temos 15% de analfabetos ? no Maranhão são 36%. Isso sem falar nos analfabetos funcionais, mas, dstes, nem é bom falar. Esse contingente se "informa" pela TV, imagino, ou pelo rádio. (No caso do Afeganistão, como se sabe, não tem rádio, nem TV, nem jornal ? basta o Corão. Devem passar o tempo esperando que o anjo do Senhor anuncie as últimas do dia, ou acessando Satã na internet escondida numa tenda do mercado negro.)

Naquela terça-feira, 11 de setembro, como quase todo mundo fiquei preso à TV desde a primeira imagem, e fui até as tantas da madrugada esperando aparecer o Super Homem. Para quem, como eu, é TV-fóbico de carteirinha, foi um martírio indizível. Passei o dia inteiro como um viciado em crise de abstinência: meu reino por um jornal! Um jornal, qualquer jornal que pudesse manusear, passar as páginas, passear pelas páginas, grudar e sujar as mãos na Folha, me deslumbrar com as cores e a diagramação do Globo, driblar a gravidade do Estadão, ajudar a prolongar a sobrevida da nossa relação casa-separa-casa-separa com o Jornal do Brasil, ou mesmo, em ultimíssimo caso, algum jornal daqui da terrinha… Pelo amor de Deus, ou de Alá, uma página de texto e uma foto bem dramática, e não as matérias da CNN, repetidas ad nauseam como um disco estragado; uma coluna com começo, meio e fim, dizendo onde, como, quando, por que, cheia de números truncados, erros de português e não estes farrapos de notícias desconexas da GloboNews, girando a cabeça da gente para um lugar e para outro (eu sou meio lento para entender as coisas), com os contadores de notícias lendo de prima os jornais eletrônicos, derrapando no inglês, escorregando nos falsos cognatos… piedade! [veja último parágrafo]

Ação demoníaca

Jornais: metade é circo, metade é lixo, metade é chapa-branca, metade é marrom e metade é enganação ? e tudo é negócio. Mas, no meio dessas metades (perdão), cria-se uma espécie de afetividade com meia dúzia de cronistas e articulistas, que são os que "interessam". Esta é a nossa gastronomia, como diz o escritor Rubem Alves (este é um dos que "interessam"). Como não deixar de ler o Cony, o João Ubaldo, o Janio de Freitas, o Veríssimo, o Gaspari, o Millôr, a Dora Kramer… e mesmo gente que vive tentando nos passar a perna, mas que escreve muito bem (principalmente quando está fora dos círculos do poder).

Na quarta-feira, dia 12, mesmo garantidas de véspera, as edições de todos os jornais sumiram das bancas e ainda não eram 7 horas. Cheiro das manhãs em Minas, café fresquinho e pão de queijo bem quente aconchegando o ar, em pé junto ao balcão da padaria, a rodinha de amigos e conhecidos comentando as notícias, todos de jornal na mão. As primeiras piadas, as piadas de sempre, TV desligada… voltamos para casa, subindo a ladeira, eu e a pilha de jornais, podendo, enfim, voltar a pensar. Mesmo com um Boeing carregado de notícias alarmantes, tendenciosas, fantasiosas, malucas, misturadas ou não com chucrute e salsichão que me façam ter pesadelos, que me perdoe o samba (e o samba sempre perdoa), eu não vou parar de ler jornais.

Em tempo: alguém tem que reciclar o inglês da turma da TV. Exemplos: actually quer dizer "realmente" e não "atualmente". É melhor traduzir team of experts por "equipe de especialistas", e não por "time de peritos". Tracks significa "trilhas" ou mesmo "traços", mas no caso de hijackers (foi dito assim mesmo, no original, será que a choldra ignara captou? Hijacker quer dizer seqüestrador de avião), é melhor traduzir por "pistas", não? Outra: testimony quer dizer "depoimento", e não "testamento". Paquistão é dito assim: pa-quis-tão, e não pa-quis-tán. Mais uma gracinha: pregnant quer dizer "grávida", e não "impregnada". Fire Department é o mesmo que corpo de bombeiros, e não "departamento" de bombeiros. Mais uma: 25.000 troops não é 25 mil tropas, e sim uma detacamento de 25 mil homens. Finalmente, li que a TV Globo traduzia a lindíssima citação da Bíblia pelo Bush ("Mesmo que eu caminhe no Vale das Sombras e da Morte, nada temerei se o Senhor estiver comigo") por "Ele não tem medo de nenhuma ação demoníaca". Pode? Cruzes! (Continua)

(*) Professor do Departamento de Estatística da Universidade Federal de Juiz de Fora

"(Alberto Dines) e (Rubem Alves ? rolar a página)

    
    
                     

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