Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Eugênio Bucci

ELEIÇÕES 2002

"Dos fiscais de Sarney aos de FHC", copyright Jornal do Brasil, 28/3/02

"José Sarney, senador pelo PMDB do Amapá, sempre teve mania de fiscais. Em março de 1986, quando era presidente da República, com uma inflação que batia nos 250% anuais, decretou o Plano Cruzado. A idéia era simplória: cortar três zeros da moeda que se chamava Cruzeiro e dar a ela o nome pugilístico de Cruzado. Fora isso, bastava congelar todos os preços. Na raça. Só havia um problema: quem iria vigiar os comerciantes e impedi-los de continuar a remarcar diariamente as mercadorias? Ora, problema nenhum: o presidente foi à televisão e convocou o povo para ser o guardião do congelamento. Foi uma histeria em massa. Milhões de brasileiros e brasileiras se converteram em ?fiscais do Sarney?. Eram destemidos, inflexíveis, requisitavam a presença da polícia nas feiras e quitandas, davam voz de prisão a gerentes de supermercado. Urravam para as câmeras de TV, solícitas como sempre às causas governamentais. Aquilo tudo foi um surto antiinflacionário ? não mais que um surto, é verdade. Tão logo a eleição daquele ano passou, o Plano Cruzado fez água. Suja. Quanto aos ?fiscais do Sarney?, saíram de cena. De fininho.

Agora estamos entrando na era dos fiscais do FHC. Parece perseguição, mas a culpa, de novo, é do Sarney. Na quarta-feira da semana passada, ele fez um pronunciamento no Senado Federal, onde tem uma cadeira, já se disse, graças à generosidade dos eleitores do Amapá. Esperava-se muito do pronunciamento. Esperava-se que o senador fosse explicar de que modo foram aparecer no escritório de sua filha (que é do PFL e governa o Maranhão) todas aquelas notas de R$ 50, num total de R$ 1,34 milhão. Não explicou. Esperava-se então que fosse provar algum deslize de José Serra. Não provou. Em lugar disso, voltou ao tema recorrente, o dos fiscais. Desta vez, registre-se, ele não quer fiscais que olhem os aspectos monetários da vida em sociedade e nem o preço das coisas (ou das campanhas), mas apenas que olhem as eleições. Ele também não pretende recrutar seus fiscais entre os comuns do povo brasileiro: quer agora importá-los. Ameaçou ?bater às portas? da ONU, da OEA e do InterAction Council para requisitar observadores internacionais.

Bem, a proposta não colou. Líderes de esquerda e de direita a descartaram. O presidente FHC declarou que ?quem vigia as eleições no Brasil é a mídia?. E completou: ?Não precisa de mais ninguém?. Claro que, quando fala em ?mídia?, FHC não se refere à mídia de forma ampla, o que incluiria a publicidade, os programas de auditório e os reality shows; não há de passar pela cabeça presidencial a hipótese de que o Ratinho ou a Hebe Camargo fiscalizem o pleito, embora tudo seja possível nesta terra. Ao usar o termo ?mídia?, ele quer designar a imprensa, os veículos jornalísticos. O jornalismo, logo se vê, desfruta de alto prestígio na República.

Quem precisa de fiscais internacionais quando tem uma imprensa tão atenta e vigilante? Podemos ir mais longe: quem precisa de Justiça Eleitoral? E quem precisa de Ministério Público? ?Não precisa de mais ninguém?, o presidente é quem disse. Quem está com ?a mídia? está com Deus.

Eu, na condição de jornalista profissional, até que me sinto lisonjeado. Patrões e profissionais da imprensa acabam de ser promovidos a ?fiscais do FHC?, o que equivale a uma condecoração. Fora as honrarias, porém, há um problema sério, muito sério. Para que uma instituição possa fiscalizar o que quer que seja, ela precisa ser independente, financeira e hierarquicamente das forças a serem fiscalizadas. Num tempo em que o BNDES se apressa em socorrer as Organizações Globo, empresa que lidera (às raias do monopólio) o negócio de televisão aberta no Brasil, como é que se pode pensar em independência da TV frente à máquina do governo? Num tempo em que o governo e as forças que o apóiam promovem uma avalanche de anúncios em jornais, revistas e emissoras de televisão ? todos endividados até os cabelos, todos precisando desesperadamente de novas receitas -, anúncios que cantam as glórias dos oito anos de FHC num estilo que se confunde com a propaganda eleitoral do PSDB, como é que se pode falar em independência da ?mídia?? A julgar por tais ações ? e, quando se trata de avaliar a independência da imprensa e dos jornalistas, é legítimo julgar pelas aparências, pois a mera aparência de comprometimento com o governo é tão nociva quanto o comprometimento de fato -, o governo parece não respeitar tanto a imagem de independência da ?mídia?. E a frase de FHC soa como deboche.

Claro que os jornalistas são responsáveis por investigações que ajudam, em muito, na vigilância dos processos eleitorais. Mas eles não são legalmente encarregados de zelar pela lisura de eleição nenhuma. Fora isso, ?a mídia? já deu provas reiteradas de que, em lugar de fiscalizar, pode sim ajudar a distorcer o processo eleitoral. Pense em 1989. Pense em 1994. E aí? Quem é que vigia a mídia? Que ninguém faça essa pergunta a José Sarney, por favor. Na certa, ele vai querer arranjar observadores não se sabe onde, talvez do Maranhão, Estado pelo qual ele não consegue se eleger senador embora ali sua família mande no setor de ?mídia?. Falando nisso, é bom lembrar que as empresas de ?mídia? da família Sarney se destacam pelo elevado e reconhecido padrão de independência editorial meridiana, indiscutível, altiva e exemplar. Quem sabe não foi por inspiração da ética de imprensa dos Sarney que FHC teve a idéia de dizer que quem fiscaliza a eleição é ?a mídia??"

 

CASO SARNEY-MURAD

"Mais um clássico do jornalismo", copyright CartaCapital, 27/2/02

Este é mais um clássico do jornalismo brasileiro. Há um ano, na edição de 14 de março de 2001, CartaCapital revelava a história de um golpe baixo à moda das cortes medievais. Medievais? Faz sentido, não faz? À sombra do ministro José Serra preparava-se um dossiê sobre o ministro Paulo Renato. Ambos tucanos da gema, amigos de longa data, companheiros inseparáveis do presidente Fernando Henrique.

A reportagem, de autoria do redator-chefe Bob Fernandes, desenrolava um enredo nada edificante, baseada em sólida e convincente documentação. Ouvido por Fernandes, José Serra reagiu com veemência: ?É uma história inacreditável. Eu, José Serra, fazer dossiê?? Acabou se fazendo mais de um, na impetuosa caminhada na direção da candidatura única do centro-direita nativo à Presidência da República.

Sim, roubemos a expressão centro-direita do dicionário da política européia. Sem nenhuma certeza de que se aplique com justiça à aliança em formação para sustentar a candidatura do ministro da Saúde. Se vale o precedente do governo FHC, é o caso de falar de acerto oligárquico. E ponto.

Há um ano, a imprensa, a mídia em geral, cuidaram de ignorar as informações divulgadas por CartaCapital. Nada de espantos, tais são as tradições do jornalismo nativo e CartaCapital se acostumou a dar furos, como se diz na linguagem das redações, sem motivar os coleguinhas por mais importantes que fossem as histórias contadas. Mais graves para o País. E também isso faz sentido.

A imprensa e a mídia em geral, salvo raras exceções, servem ao poder. Como se dá, por exemplo, na adesão mais ou menos maciça ao candidato do governo. Quanto ao poder, sabemos que tem escasso interesse, ou nenhum, pela nação verde-amarela, pelo povo em peso. Volta suas atenções, e preocupações, para um país de 20 milhões de habitantes. Quem sabe 30. E o resto? Que se moa.

Agora vemos o senador José Sarney brandindo na tribuna da Câmara Alta a edição de CartaCapital de um ano atrás. Busca, com aquela arma, conferir força às suas invectivas contra o rolo compressor montado para entronizar José Serra. Haverá quem conteste a autoridade de Sarney. A começar por um de seus ex-colaboradores, segundo quem ao senador nada mais resta se não colher cocos de babaçu na praia.

Mais algo que faz sentido. Quem fala é Luiz Carlos Mendonça de Barros, que no governo Sarney foi diretor do Banco Central, belo trampolim para saltos cósmicos. Sobra o fato indiscut&iacuiacute;vel: Sarney está investido pela legitimidade da Presidência exercida, tanto mais em um país cujos comunicadores até hoje, freqüentemente, chamam ditadores de presidentes e um golpe de revolução.

Além disso, o seu discurso não envergonha a história parlamentar e foi pronunciado com boa escolha do momento. No regresso de uma viagem cultural à França, onde foi interlocutor de Lévi-Strauss e homenageado da Academie Française (mais uma vez o mundo se curva), e no instante em que a bóia do BNDES se oferece ao plimplim prateado.

Considere-se, tristemente, que a reação sarneyca é movida, em primeiro lugar, pela ruptura do arranjo oligárquico em vigor até ontem, mas não há como contestar muitas das passagens do seu j?accuse. Contra a tentativa de recompô-lo, o vetusto, implacável acerto, em outra freguesia.

Um ex-presidente da República que da tribuna do Senado aventa a possibilidade da união das oposições para chamar observadores das Nações Unidas a fiscalizar os desmandos de uma campanha governista de proporções e prepotência nunca dantes navegadas, configura uma situação de extrema gravidade. Ou teria de configurar, não fosse o Brasil o que é.
E sendo assim, tudo continua a fazer sentido. É a lógica às avessas imposta impunemente por quem tem poder bastante para tornar coerente a incoerência."

"Moto-contínuo", copyright Folha de S.Paulo, 27/3/02

"Um marciano que descesse à Terra e acompanhasse o noticiário sobre o caso Roseana-Murad teria os seguintes elementos para tirar suas conclusões, todos retirados de reportagens absolutamente conclusivas sobre o tema, embora sem uma comprovação objetiva sobre o que afirmavam:

1) quem divulgou a operação foi o Planalto, por meio do deputado Márcio Fortes;

2) também houve grampo produzido pelo Planalto e divulgado pelo deputado Márcio Fortes;

3) o dossiê foi preparado pelo irmão de Jorge Murad;

4) FHC está fulo da vida com o dossiê de Márcio Fortes;

5) quem divulgou a operação foi o procurador do Tocantins;

6) quem divulgou a operação foi a Polícia Federal;

7) quem montou o dossiê foi o senador José Serra, que também montou dossiê contra seu colega Paulo Renato;

8) os delegados que invadiram a Lunus nem desconfiaram de que havia dinheiro no cofre devido ao comportamento natural do gerente da empresa. Só souberam do dinheiro quando abriram o cofre;

9) a principal testemunha da existência do dossiê contra Roseana é um motorista de táxi que pegou um freguês, do qual ele não sabe o nome, que lhe contou que havia um dossiê sobre o qual ele também não fazia a menor idéia;

10) há também a testemunha de um empresário do qual não se sabe o nome, que se reuniu com um interlocutor de nome ignorado, em um restaurante não-identificado, e não se sabe direito o que se falou.

Nessa balbúrdia infernal talvez a melhor maneira de descobrir a verdade seja submeter todas as hipóteses a um sorteio, a ?teleimprensa?. O único senão é que vai levar um ano para saber o resultado. E, quando sair o resultado, não se lembrará melhor de quem foi o campeão das barrigas, porque o assunto já morreu mesmo."