Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Eugênio Bucci

LULA PRESIDENTE / ELEIÇÕES 2002

“O telepresidente da República”, copyright Jornal do Brasil, 24/10/02

“O debate de amanhã, na Rede Globo, entre José Serra e Luiz Inácio Lula da Silva, será o epílogo de uma das sagas mais tensas e mais intensas jamais exibidas pela televisão brasileira. A campanha presidencial de 2002 foi um megaespetáculo continental, ou mais que continental, transcontinental. A palavra parece nome de companhia aérea mas é apropriada. A disputa eleitoral no Brasil trouxe à cena não apenas personagens nacionais, dos mais típicos aos mais esdrúxulos, mas também alguns seres vindos de longe, seres quase alienígenas, como financistas estrangeiros e homens públicos de outras terras.

Entre os financistas, George Soros causou furor com sua tese de que a vontade popular deveria levar em conta a vontade dos mercados. No novelão que foi a campanha, Soros era invocado, mesmo sem ser diretamente nomeado, como um anjo do mal. Entre os homens públicos de outras terras, tivemos Lionel Jospin, que levou Lula lá, lá em Paris, para apoiá-lo, a ele, Jospin, em sua campanha presidencial. Isso sem falar em Bill Clinton que, no horário eleitoral do PSDB, dizia breves maravilhas sobre os encarregados da Saúde no Brasil.

Os grandes destaques da campanha, porém, foram mesmo os astros do entretenimento pátrio, de Gugu Liberato às duas Duartes – Regina, de um lado, dizendo ter medo, e Paloma, do outro, dizendo não ter. Foi um superreality show pulsante. Amanhã, o debate na Globo dará a nota final. Será uma nota dramática? Será trágica? Surpreendente? Bufa? O veredicto virá no domingo, dia 27, quando o telespectador se manifestar pelo voto eletrônico. Será encerrado, assim, o mais emocionante Você Decide da TV brasileira. A propósito, a expressão ?você decide? virou chamada de capa da revista Veja (na edição que chegou às bancas no dia 5 de outubro) para se referir à escolha que o eleitor deveria fazer no primeiro turno. Nada mais indicativo do atual estado das coisas. A campanha tem o gosto, o formato e o apelo do entretenimento. O nome do entretenimento.

Às vezes, parece ser puro entretenimento. Ou, no mínimo, parece que a tal realidade política do Brasil está inteiramente subordinada às leis, aos valores e aos critérios do entretenimento. Trata-se, enfim, da espetacularização da política, fenômeno que vem sendo observado há décadas mas nunca foi tão profundo no Brasil como agora em 2002.

Pense-se, por exemplo, no papel que Gugu Liberato desempenhou no início do horário eleitoral gratuito, ainda antes do primeiro turno. Liberato entrou em cena como uma espécie de avalista eleitoral de José Serra, garantindo que Serra era honesto, confiável etc. Ora, mas quem é um animador de auditório, célebre por promover lutas de moças seminuas dentro de banheiras espumantes, para assumir a condição de magistrado da credibilidade de um candidato a cargo público? Pense bem: que mundo é esse em que o caráter de um político como José Serra depende do aval de um Gugu Liberato? Que autoridade pública ele tem para dizer quem é e quem não é digno da confiança do eleitor?

A resposta tem a ver com a transformação da política em show de TV, com a subordinação da política às leis do espetáculo. No mundo da TV, dominado pela linguagem que tece a diversão – linguagem que está nos programas de auditório, na publicidade, nas telenovelas e, com bastante freqüência, nos telejornais -, a política precisa que o entretenimento lhe sirva de fiador. Não há alternativa. Não é mais o político quem serve de intérprete e representante do povo. Agora, é uma atriz quem melhor expressa o sentimento do eleitor. Quem mais sabe tocar a alma da eleitora é um cantor popular. Não por acaso, é um publicitário, e não um ideólogo, quem toma conta de toda a comunicação política. O homem político já não é o que fala. Ele é aquele de quem se fala. Ele é aquele de quem ?os famosos? falam. Dizer que a política vira um show de TV significa, portanto, dizer que a política deixa de ser política, aquela prática social que lida com cidadãos, com delegação de poder, com direitos, com sindicatos, com manifestações públicas, no espaço público, e passa a ser um segmento a mais do divertimento televisivo. Sendo um show, a política já não lida com cidadãos, mas com os consumidores de imagens tocantes, já não lida com o público titular de direitos, mas com a platéia embriagada de fantasias, já não lida com reivindicações, mas com desejos. É por isso que a notoriedade dos ?famosos?, fabricada no calor do entretenimento, passa a ser moeda política. Não haveria outro modo, para a política e para os políticos, de ganhar visibilidade. O político deixa de ser o sujeito da cena, o autor e condutor do discurso, e se reduz a um objeto, um objeto a mais que é oferecido à platéia em meio a tantos outros objetos equivalentes.

Sim, a campanha de 2002 evoluiu como um reality show transcontinental, um megaespetáculo de TV. Dirão que também houve comícios, carreatas, viagens pelo interior. De fato houve, mas apenas como extensão do espet&aaacute;culo televisivo. Em 2002, mais do que antes, não foi mais a TV que refletiu as mobilizações das ruas, mas as ruas que serviram de palco para encenações tiradas diretamente da TV. As ruas reproduziram a TV. As marcas, as imagens, os slogans e as canções da TV.

O debate virá amanhã como um epílogo tardio. Será um duelo de morte? Será a pasmaceira total? Veremos. Depois disso, conheceremos, enfim, quem será o telepresidente do Brasil.”

“Brasil, entre os países perigosos para jornalistas”, copyright Jornal do Brasil, 29/10/02

“No momento em que escrevo já tudo foi dito. No momento em que você lê já tudo foi até escrito.

E dito e falado por gente muito mais experta (não confundir com esperta) do que eu. Estou prenhe (!) de informações e opiniões. Ouvi, na TV GLOBO, Alexandre Garcia com sua inigualável experiência de comentarista, e Franklin Martins, exemplo de vida política, que conseguiu, sem qualquer deslize, passar de candidato a herói – virtual – a analista da vida como-ela-é. E, neste JB, já às primeiras horas da manhã, leio os coleguinhas Pedro do Coutto, companheiro de passeatas não-políticas (se é que isso existe com ele) na orla de Ipanema, Wilson Figueiredo (Figueiró), com seu emocionado ceticismo (ele é mineiro), Carlos Lessa, meu professor – sem saber – em reuniões em casa de Fernando Gasparian (onde o outro Fernando, o HC, nos escutava a todos sempre com infinita paciência), Joaquim Ferreira dos Santos, perito, sem confundir, em misturar alhos com bugalhos, já que as duas coisas são a mesma, Marcus Barros Pinto, editor deste inestimável diário que, no aplauso à vitória coletiva, faz uma advertência, que ratifico, para a responsabilidade individual. Se traduzo bem – não confundir auto-estima com amor pelo carro do ano. E sem deixar de falar no colega Augusto Nunes, com detalhado, milimétrico, conhecimento do útero do processo eleitoral, que só macula seu artigo quando, falando do nome de Lula, me cita: ?Silva é o anonimato assinado?. Bem, ainda espero, um dia, ser Millôr da Silva.

Lendo a todos, nos jornais do Rio. Isso me consome todo o tempo e me impede de ler jornais de São Paulo. Mas, quando leio, o padrão de qualidade é o mesmo. E tenho que fazer uma declaração, que nos outros acho babaca – me orgulho da minha profissão. O projeto da imprensa, o objetivo básico, ?filosófico?, é positivo, a intenção quase sempre honesta, e o trato muitas vezes brilhante. O percentual (10%?, 20%?) de safados e, de um modo ou de outro, desonestos, é menor do que o da maioria das profissões – quem quiser que reaja -, até mesmo nas supostamente científicas.

E tem o título menos pomposo de todas: jornalista.

IMPRENSA É… E, no meio dos fogos de artifício, do auto-elogio, da consciência cívica, dos novos tempos, do agora-sim, do enfim-chegamos, convém não esquecer:

?Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados (ou Zona Sul)?.”

“O jornalismo brasileiro na hora da mudança”, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 28/10/02

“Bem…Lula presidente. Bacana. Mas e agora, como ficam os jornais, TVs, revistas e rádios? Quer dizer, depois de tanto tempo (desde 1808…), os nossos veículos vão ter que se adaptar a um governo com uma lógica de funcionamento diferente, em que demandas que jamais foram levadas a sério pelo andar de cima passarão a ter relevância. E isso vai obrigar, creio, a uma tremenda mudança em quatro editorias dos veículos de comunicação, pelo menos se realmente houver interesse em abarcar uma realidade que tende a ficar muito mais complexa daqui por diante.

Economia – Esta, acredito, será a primeira editoria a ter que encarar uma mudança radical de trabalhar. Hoje, a maior parte do pessoal que cobre a área (com as exceções de praxe que confirmam a regra) não concebe viver sem uma declaraçãozinha oficial, seja de algum membro do governo, seja do tal de mercado (este, na melhor das hipóteses, personificado em algum analista de banco ou financeira diretamente interessado em fazer lóbi para seus clientes) a fim balizar as reportagens e análises.

Obviamente que declaração de membro do governo ainda vai ter, mas apesar de toda a moderação petista, as diretrizes do futuro governo Lula seguirão caminhos bem diferentes daqueles preconizados pelo Consenso de Washington, no qual foi criada a maioria do reportariado econômico de hoje e no qual se encontram docemente embalados a quase totalidade dos colunistas da área há mais de uma década.

Como será que este pessoal vai analisar, por exemplo, a criação de um banco do tipo daquele que tem em Bangladesh e que empresta umas pratas para os pobres botarem seu negocinho? E se os petistas resolverem investir em algo como ?fazendas de algas?, como as que vi sexta, dia 25, num programa do GNT sobre Zanzibar, porque elas empregam milhares de pessoas quase imediatamente e com um custo baixo? Isso é o tipo de gasto de dinheiro público que horroriza aqueles economistas de banco dos quais os coleguinhas tanto gostam. Vão se ouvir os dois? Certo, mas e o peso que será dado a cada declaração e o que será puxado para o título ou vai ganhar mais espaço ou tempo na edição? Pois é…

Política – Se a situação vai ficar complexa na Economia, na Política vai ser ainda pior. É que desde sempre a cobertura política da imprensa brasileira se move apenas no âmbito das brigas de elite e de seus caciques (você pode constatar: basta pegar a coleção de qualquer jornal, de qualquer época, numa biblioteca) e agora a situação quase certamente vai mudar.

Claro que há caciques no PT, e muitos, mas mesmo eles são pressionados por uma base muito atenta e participante. Desde que o partido surgiu, esta característica sempre foi explorada de maneira negativa pela imprensa (a nauseante matéria de capa da Veja da semana passada é um exemplo perfeito). Tudo bem quando os caras estavam longe do poder e se podia fazer festa com a cara deles à vontade, mas e agora, quando não só elegeram o presidente como se tornaram o maior partido do país? Como o pessoal que cobre política vai se virar para transmitir a riqueza da discussão política interna do partido sem cair naquele reducionismo intelectualmente pobre (e na maior parte das vezes mal-intencionado) que opõe ?moderados? a ?radicais??

O pessoal vai ter que aprender a ir além dos ritos e lidar com um agrupamento político que é a coisa mais parecida com um partido de massa que apareceu nesta parte dos tristes trópicos desde Colombo. Não vai ser fácil, principalmente porque não vejo – fora de colunistas como Tereza Cruvinel, Helena Chagas, Márcio Moreira Alves, Jânio de Freitas e mais um ou dois – preparo teórico e prático para responder este desafio a contento.

Cultura – O pessoal da Economia e da Política vai pagar alguns king-kongs, mas nada que se compare, creio, ao pessoal desta área. E a razão é que ela une dois vícios das outras – a submissão a padrões produzidos fora do país, que desvalorizam as coisas criadas aqui dentro, e a cobertura por caciquia (no caso da cultura por ?panelinha?) – com uma que tem um peso especial nos cadernos de cultura: a desconsideração do que está fora do eixo Rio-São Paulo.

Porque se na Economia o pessoal ainda olha com certa atenção o crescimento industrial dos estados do Sul, de vez em quando pensa no potencial turístico do Nordeste, às vezes matuta sobre a pecuária de Minas e sobre o agronegócio no Centro-Oeste, e na Política pondera sobre a força dos caciques de todos os estados, na Cultura neguinho simplesmente ignora o que ocorre fora das duas pontas da Via Dutra.

Exemplos não faltam: quando fui a Recife, em 88, o ?mangue beat? já era um movimento cultural poderoso; Elisa Lucinda era excelente poeta no Espírito Santo anos antes de ser notada por aqui; o cinema gaúcho tem uma produção forte – inclusive reconhecida por vários prêmios – desde a década de 70; se você quiser saber como anda a carreira de Helena Meireles, a magnífica violeira do Pantanal, vai ter que apelar para uma revista especializada americana…Por aí vai.

Agora, imagina como vai se sentir o povo dos cadernos culturais se o PT realmente incentivar a produção fora das duas maiores metrópoles do país? Vai ter gente subindo na mesa do Jobi para protestar (para o pessoal off-Rio, Jobi é um bar do Leblon onde a ?intelligentzia? carioca assina o ponto diariamente). Periga o responsável pela área bater o recorde de avacalhamento sofrido pelo Ziraldo na época da ?broa de milho?…

Internacional – De qualquer maneira, dificilmente qualquer das editorias acima estará em pior situação do que Inter, num governo petista. É que ela maneja no dia-a-dia aquilo com que as outras três só lidam em termos mais ou menos indiretos: o consenso fabricado lá fora, especialmente nos Estados Unidos. Até hoje, tudo bem: o pessoal botava lá os telegramas e as imagens, e o enterro seguia sem problemas – o Islã passava a ser uma religião de fanáticos; o Bové, um asterix anacrônico; o Chávez mais um militar latino-americano candidato a ditador-personagem-de-Garcia-Marquéz, etc.

Mas e se o PT resolver que vai estreitar os laços do país com os latino-americanos e desafiar a hegemonia norte-americana por aqui? Como é que vai ser, se nós simplesmente desconhecemos nossos vizinhos, que só aparecem em nossos jornais e TVs como exemplos de desgoverno e/ou corrupção? (naquele livro do José Arbex Jr. de que falei semana passada tem uma parte em que ele trata do choque que foi para ele as coberturas que realizou na ?nuestra América?, quando descobriu que o que sabia da região não passava de folclore). E o que falar da África, onde temos nações-irmãs como Angola, Moçambique e Cabo Verde? Qual foi a última notícia sobre, digamos, a economia ou política de um desses três países que você leu ou viu? Agora, imagine o que vai acontecer com o cérebro dos editores de Inter se um governo petista der importância diplomática aos africanos?

Pois é. Não dá para saber como vai ser um governo petista, mas para tentar acompanhar seja lá o que vá ocorrer, o jornalismo brasileiro teria que dar uma boa reciclada, decidir se vai mesmo tentar superar o nível de mediocridade atual ou se conformará em continuar a ser mero repetidor de fórmulas estereotipadas que nem mesmo são criadas aqui, como faz há dois séculos. Para mim, só a resposta a este dilema já vale a eleição do Lula.”