DUAS DESPEDIDAS
“Você me dá licença?”, copyright Jornal do Brasil, 9/01/03
“Escrevo hoje para me despedir. Aceitei um cargo público e, de posse dele, eu incorreria em um grave conflito de interesses se continuasse a escrever semanalmente nesta coluna. Explico por quê. No dia 2 de janeiro assumi o posto de presidente da Radiobrás, uma empresa pública que tem cinco emissoras de rádio e duas de televisão, além de um respeitado serviço de informações governamentais na internet. Vinculada à Secretaria de Comunicação do Governo, a Radiobrás é subordinada ao Poder Executivo federal. Tornei-me um integrante do governo. Com isso, perco a independência formal necessária para exercer o tipo de crítica cultural que sempre procurei exercer. Como parte do governo, qualquer coisa que eu escrevesse estaria sob suspeição. A minha crítica deixaria de funcionar, porque deixaria de partir de um ponto de vista objetivamente independente. Perderia o pouco que conseguiu amealhar de credibilidade ao longo de quase dois anos aqui neste Caderno B.
Por isso, estou me licenciando deste espaço. Entro em recesso, por assim dizer. Não sei por quanto tempo – impossível saber – mas gosto de pensar que não estou me demitindo, estou apenas saindo de licença. O termo licença, aliás, me foi sugerido pela direção do JB, quando manifestei a necessidade de meu afastamento: ?Você então fica licenciado?, me disse o diretor de redação. Achei simpático. Achei comovente. Significa que tenho as portas abertas, ou melhor, as páginas abertas, caso, um dia, eu queira voltar. Que bom.
Eu sei, claro, que sempre há o leitor que comemora. ?Oba, o Eugênio Bucci vai embora. Já era tempo.? Eu sei. Mais que isso: enxergo no júbilo desse leitor alguma razão. Mas gosto de pensar que existem aí uns poucos que apreciaram o que escrevi e que ficarão tristes com a minha partida. Vou para Brasília. Trarei, daqui a não sei quanto tempo, uma flor do cerrado para os que agora lamentam. Aos que festejam, a esses não sei o que dizer. Talvez devesse pedir desculpas. Por favor, me desculpem: tudo o que escrevi foi por querer. Foi por querer demais.
Voltando ao tema do conflito de interesses – que é o tema que interessa, exatamente pelo conflito que ele encerra -, há ainda outro aspecto que força a minha saída. A Radiobrás, além de produzir e veicular programas e textos informativos, é a responsável pela distribuição da propaganda legal do governo e de suas estatais. Balanços e editais são por ela distribuídos em jornais de todo o país por meio de anúncios pagos. Ora, também por isso, o presidente da empresa não pode ser colaborador fixo e remunerado de um determinado diário. Se isso ocorresse, a sua independência, agora não mais como jornalista ou crítico, mas como presidente de empresa pública, estaria prejudicada. Também aí, portanto, a ética jornalística e a ética do servidor público recomendam a interrupção da minha coluna.
De novo, insisto, sei que há os que soltam rojões com esta minha despedida. Eu, pessoalmente, fico triste. Melancolicamente triste. Pateticamente triste. Poucas atividades me deram mais prazer do que esta coluninha aqui. Nela eu me descobri escrevendo não para explicar, mas para que eu mesmo tentasse entender alguma coisa ou, talvez, para entender a mim mesmo. Tudo isso em público. Aqui eu me descobri escrevendo para me curar – e para adoecer os muito saudáveis. Aqui eu me descobri um São Francisco de Assis do avesso: destinado a levar dúvidas onde havia certezas, a levar o dissenso onde havia unanimidade. Sim, eu fui muito feliz nestas páginas e vocês, os que me apreciam e os que me depreciam, nunca poderão saber quanto. Se alguém me perguntasse ?Foi bom pra você??, eu acho que responderia ?Uau, nunca senti isso antes.? E, pior de tudo, eu estaria dizendo a verdade.
Resta dizer que acredito, e muito, na missão que tenho pela frente. A Radiobrás é uma empresa que honra todo jornalista que nela trabalhe. É um patrimônio do povo brasileiro – um patrimônio com um enorme futuro. Os serviços informativos que ela presta podem ser – e já são, em muitos casos – decisivos para a construção da cidadania, da justiça social e da democracia em nosso país. Não pense que são expressões vazias. Não são. Cidadania, democracia e justiça social são palavras ainda à espera de um significado concreto, substancial aqui no Brasil. É preciso construir esses significados. E isso se faz também com informação pública de qualidade. Com informação que se dedique, acima de tudo, ao direito à informação de que todo cidadão é titular. Aceitei o convite porque acredito nisso. E é por isso que, agora, nesta coluna, eu peço licença. Vou até ali e já volto. Não sei quando, realmente não sei. Mas quero acreditar que volto. Assim como quero acreditar que cada leitor, a exemplo da direção do JB, vai me dar essa licença. Como se fosse uma bênção. Como se fosse pirraça. Como se fosse uma aposta. Valerá a pena. Eu tenho certeza.”
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“Nota de despedida”, copyright Folha de S. Paulo, 12/01/03
“NO DIA 2 de janeiro, tomei posse da presidência da Radiobrás, a Empresa Brasileira de Comunicações S. A. Trata-se de uma empresa pública, vinculada ao Ministério da Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica. O cargo que passei a ocupar é ligado ao Poder Executivo Federal. Aceitei-o com muita honra e também com a minha melhor motivação, com esperanças de contribuir para a qualidade do jornalismo público. Ao mesmo tempo, aceitei-o com alguma tristeza: terei de suspender a minha carreira de crítico. Há entre as duas atividades -a de crítico de televisão e a de executivo da Radiobrás- um conflito de interesses que só se resolve pela eliminação de uma das duas.
Não é difícil entender por quê. No comando da Radiobrás, sou responsável por cinco emissoras de rádio e duas emissoras de televisão, além de um grande serviço de veiculação de notícias pela internet. Essa condição, é evidente, retira de mim a independência necessária para o exercício da crítica. Há, aqui, um impedimento formal, objetivo, impessoal. Por mais honesto que eu seja, por mais que eu procure evitar que aspectos de uma atividade interfiram na outra, a minha crítica seria, sempre, uma crítica de má qualidade, pois seria suspeita, sem a necessária credibilidade. Não há como prosseguir com a coluna.
A necessidade de independência objetiva não se resume à função de crítico. É uma exigência do bom jornalismo em geral. Não por acaso, uma norma interna da Folha impede que ocupantes de cargos do Poder Executivo sejam colunistas do jornal. É justa. Ela ajuda a demarcar as fronteiras entre os interesses do leitor, que uma boa redação deve buscar entender e atender, e interesses que naturalmente se desenvolvem no interior da máquina do Estado, sobretudo no Executivo. Por melhores que sejam os integrantes do Executivo, por mais éticos e mais idealistas que eles sejam, todos fazem parte de uma lógica de Estado (isso na melhor das hipóteses), que não é a lógica da sociedade. Para o bem da democracia, essa lógica deve sofrer a fiscalização ininterrupta da sociedade e, de modo especial, da imprensa.
De minha parte, concordo, sempre concordei, com a separação explícita entre os interesses do Estado e a imprensa. Não que eu suponha que o Estado seja corrupto por definição. De modo algum. Acredito que o Estado pode, sim, expressar e viabilizar anseios legítimos da sociedade. Acredito que o Estado pode ser um fator de progresso econômico e de justiça social. Acredito também que o Estado pode até mesmo patrocinar um jornalismo público de qualidade superior, um jornalismo que, por certo, não tem o objetivo de competir com a imprensa de mercado, mas que pode, sim, levar informações relevantes e de alta credibilidade a setores amplos de brasileiros que ainda se acham carentes de cidadania. Se eu não acreditasse nisso a minha ida para a Radiobrás não teria sentido. Acredito em tudo isso, repito, mas sei que, para que isso ocorra, é indispensável a vigilância constante.
A partir de hoje, passo a me relacionar com a Folha apenas como leitor. Nas páginas do jornal, passarei a contribuir apenas com a minha ausência saudável. Agora, no campo do jornalismo público, terei muito a fazer. Estou convencido de que existe um grande horizonte para o jornalismo público, um serviço que privilegie o direito à informação do cidadão e que esteja minimamente a salvo da asfixia que as tais ?leis de mercado? têm imposto às empresas jornalísticas. Informação de qualidade é um direito. É nessa linha que trabalharei. Sei que é fundamental que uma democracia conte com jornais que sejam independentes do Estado. Mas também sei que é igualmente importante que saibamos construir um jornalismo público democrático que seja independente do capital.”
MEMÓRIA / RUBEM BRAGA
“Rubem Braga, uma lembrança”, copyright Jornal do Brasil, 12/01/03
“Hoje faria 90 anos um dos maiores cronistas do Brasil. Para comemorar este 12 de janeiro, aparentemente, nada mais há do que evocações. Esta é apenas uma delas, em tom provinciano, pessoal, até. Mas para fins de 2003, espera-se uma alentada biografia do cronista a cargo do capixaba Marco Antônio de Carvalho, que sequer o conheceu vivo: Crônica do Século 20, coisas da vida de Rubem Braga, iniciada há oito anos, é obra com mais de 500 páginas, devendo sair pela Editora Casa da Palavra.
Para muitos, Rubem foi o maior. Para Olimpio Garcia Mattos, o falecido arqueólogo dos papéis da Biblioteca Nacional (apelido dado pelo ex-presidente da fundação Affonso Romano de Santanna), Rubem foi simplesmente o ?reinventor da crônica brasileira, tão importante no gênero quanto Machado de Assis?.
Sisudo, ainda assim era, nas palavras do jornalista Álvaro Costa e Silva, ?o homem que mais entendia de mulher no Brasil?. Fumante, não quis tratar do câncer na garganta, apesar da oferta das Organizações Globo para que se socorresse com os melhores médicos e hospitais do mundo. Mesmo vitimado pelo tabaco, em dezembro de 1990, dizia, ao crescente proselitismo antitabagista, que não gostava de reprimir. Encerrava qualquer discussão com uma boutade: ?Quem quiser fumar, que se fume?.
?Modéstia à parte, eu nasci em Cachoeiro de Itapemirim?. Ou ?ainda ontem, chupei um caju de 20 anos atrás?. Duas frases, dois resumos de suas crônicas, parte do que há numa centena de livros. Muitas histórias inéditas ainda vêm por aí. ?Minha vida tem sido uma excursão confusa (…) Onde posso morar senão na casa dos meus pais??. Esta é de Cachoeiro, de 1949. Na cidade, filho do seu primeiro prefeito, coronel Francisco Braga, Rubem aprendeu a gostar das coisas mais simples da vida, como fruta-pão com melaço, banho de rio e jogar peladas. Com os irmãos, fundou o Correio do Sul, e nunca mais abandonou o jornalismo. Seu último emprego foi na TV Globo.
Obrigado, agora, em caráter excepcionalíssimo, a usar a primeira pessoa, recordo-me de quando meu pai, o velho Paulo Herkenhoff, começou a se orgulhar da pilha de livros de Rubem com dedicatórias do próprio autor. O velho Urso (homenagem ao semblante e à sisudez, embora tivesse sempre uma doçura) confiou ao bibliófilo catarinense, que se radicara em Cachoeiro de Itapemirim, todas as suas primeiras edições devidamente autografadas.
Numa dessas visitas à chácara mágica plantada no topo do prédio onde vivia, em Ipanema, Rubem, apressado para embarcar rumo a Paris, no meio de diálogos cruzados, acabou por engano dedicando a este Alfredo uma de suas obras. Mas curiosidade maior, entre 150 livros autografados para o saudoso Dr. Paulo, está num exemplar raríssimo, o único em que o cronista assina com pseudônimo: Roberto M. Couto, sendo Roberto uma homenagem ao seu filho único, e Miguel Couto, endereço da editora comunista que encomendara o opúsculo (A questão do ferro, de 1938) sobre nacionalismo.
Poeta na adolescência, cronista na vida e figura cativante sempre, Rubem foi socialista (fundou o PSB, morreu acreditando que viver é gerar e gerir em comum) e também foi correspondente de guerra (a cobertura virou obra: Com a FEB na Itália). Até experiência de embaixador do Brasil, teve, no Marrocos.
Rubem casou-se com a armênia Zora Seljan, mãe de Roberto, afilhado de Jorge Amado e Zélia Gattai. Depois, em segredo, teve muitos romances, o mais misterioso com a atriz Tônia Carrero. Aliás, sobre esse affair, um verdadeiro mito durante décadas, em certa ocasião, já no fim da vida, ante a insistência de um repórter querendo saber se rolara ou não, exclamou brusca e monossilabicamente: ?Deliciosa?. E encerrou a fofoca ancestral. Grande namorador, entre outras mulheres, passaram pela sua vida Nini de Ouro Preto, uma socialite, aquela argentina que despertou ciúme em Assis Chateaubriand, como relata Fernando Morais na biografia do tycoon dos Diários Associados, e a filha do poeta Carlos Drummond de Andrade, caso aliás que estremeceu o relacionamento entre os dois gênios.
Rubem costumava viajar em segredo à cidade natal. Na juventude, criticou a famosa fábrica de pios de Cachoeiro, de uma família de caçadores, os Coelho, na Ilha da Luz, dizendo que faltava fabricar pio para chamar mulher.
A última história pessoal de que me lembro de Rubem foi na cobertura da Barão da Torre, com Dr. Paulo levando, de presente, um robalo de quase quatro quilos, pescado nas cabeceira do Rio Itapemirim. O velho Braga, como se auto-intitulou e como gostava de ser chamado, exclamou: ?Oba, este vou comer com Yeda e meus sobrinhos?. Yeda Braga Miranda, que morreu há uns dois anos, era a sua irmã e então viúva do advogado e jornalista Murilo Miranda, por sua vez, um dos poucos cariocas que trocavam cartas assiduamente com Mário de Andrade. Rubem, aliás, dizia que Mário não gostava muito dele. Já Oswald, era mais chegado. Sobre o tema, leia-se o livro Cartas a Murilo (1981).
Adversário do getulismo, Rubem viveu em diversas cidades, como Belo Horizonte, Niterói, Porto Alegre, Santiago, Paris, Rabat, São Paulo e Rio. Ai de ti, Copacabana, um dos seus clássicos, mostrou a opção definitiva pela Cidade Maravilhosa. Hoje quase todos os seus livros são encontrados em sebos ou em reedições da Record.
Conforme seu desejo, suas cinzas foram jogadas sobre o Rio Itapemirim, em cerimônia durante a madrugada com a presença discreta de Roberto e o sobrinho jornalista Edson, filho de Newton Braga, outra figura maravilhosa, mas cujo vôo literário permanece um segredo provinciano, um orgulho secreto do Pequeno Cachoeiro, terra tão bem cantada por Raul Coco Sampaio, autor do hino, e pelo rei Roberto.
O Rio Itapemirim, 29 metros abaixo, deságua em Marataíses, balneário de areias monazíticas e onde os nativos, os chamados maratimbas, despertaram no cronista jovem as primeiras reflexões sobre os primeiros moradores do Espírito Santo e do Brasil.
Naquelas praias, então rapazola, escreveu uma crônica, Mangue, sobre uma súbita paixão platônica: uma mulher misteriosa à beira do mar, num mês de janeiro. E noutro texto, explodia: ?É janeiro, grande mês de janeiro! E como o carnaval é no mês que vem, vamos pegar tabatinga para fazer máscaras…?. Depois concluía, humilde, que ainda teria muito que aprender na vida.
Mas para quem acha que crônica é gênero menor, basta ver em Luto da Família Silva, do livro O Conde e o Passarinho, de 1935, um Rubem simplesmente vaticinando que um dia essa família, que enchia os porões dos navios de café, estaria, como hoje está, no Poder.”