Tuesday, 19 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Eugênio Bucci


CASO ABRAVANEL

"Quem escreveu esse roteiro?", copyright Jornal do Brasil, 31/08/01

"O rapaz que, na manhã de ontem, pulou o muro da casa de Silvio Santos para mantê-lo como refém por quase oito horas, foi, mais que um bandido, um encenador de brilho raro. O país ficou grudado na TV – todos os canais interromperam suas programações. O Brasil parou. Não havia como não parar. Aquilo tudo era inacreditável demais, ameaçador demais, genial demais. Todos torciam pela vida de Silvio Santos, é claro. Mas, secretamente, todos saboreavam um show sem precedentes. O gesto do bandido não foi simplesmente a cartada de um criminoso acuado que faria qualquer coisa para ganhar alguma garantia de vida. Não foi somente uma ameaça grave à vida de um dos ídolos populares mais carismáticos da televisão brasileira. Foi, acima disso, uma continuação bombástica do filme anterior, foi uma espécie de O seqüestro de Patrícia Abravanel II. Parecia coisa planejada por algum mestre do entretenimento. E não era. Era apenas o mundo real, o mundo cão, celebrando sua apoteose: agora com um roteiro magistral.

Mas quem é o autor desse roteiro? Não é ninguém e, ao mesmo tempo, somos todos nós. Eu digo que o autor desse roteiro é o senso comum que unifica as sociedades contemporâneas segundo o qual tudo na vida segue a lógica de uma novela, às vezes brutal, às vezes açucarada. A indústria do entretenimento, com seus longas-metragens de tiroteios e heróis sádicos, reflete e alimenta esse senso comum. O mercado histérico das celebridades também o reforça, também o expande. Os famosos e milionários conduzem suas próprias existências com andamentos grandiloqüentes e lacrimosos, sempre escancarados: casamentos publicitários, adultérios eletrificantes, divórcios sensacionais; bebedeiras, cirurgias plásticas, Aids, câncer, festins, evasão de divisas. A religião vira uma feira de sensações lisérgicas. O crime compensa e dá notoriedade. Sim, o autor desse roteiro alucinado é o senso comum da nossa era de pura farsa.

A mídia é o coliseu, misturando closes glamurosos dos astros com o despedaçamento dos gladiadores anônimos. O público já não é apenas a platéia passiva: é o exército de reserva do coliseu, pronto para entrar em cena a qualquer instante. Qualquer zé ninguém do público sabe a cena de cor, adivinha o ritmo de cada ato, tem na ponta da língua todas as falas antes que elas sejam escritas. Basta o holofote da TV chegar perto para que as passistas das escolas de samba rebolem com mais animação, basta a câmera apontar sua objetiva para que os comuns do povo caiam em prantos nos enterros dos ilustres, basta o repórter perguntar ?como a senhora se sente? para que a tal senhora se sinta como o repórter espera que ela se sinta e, mais ainda, encene com toda a explicitude os seus sentimentos totais.

O seqüestrador de Patrícia e do pai dela apenas intuiu o que o circo desejava que ele fizesse, antes mesmo que o circo e seus pagantes desconfiassem do próprio desejo, antes que a polícia desconfiasse que talvez fosse recomendável manter a mansão sob vigilância. Ele intuiu que a única mediação que conta é a mediação da mídia. Intuiu que só ela lhe daria uma garantia de vida – embora saiba, no fundo, que essa garantia não lhe valerá grande coisa. Esse roteiro, enfim, foi escrito pelo desejo da platéia, ardente, arfante e impiedoso."

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"Tudo bem, estaremos extintos", copyright Jornal do Brasil, 30/08/01

"Deus vem operando bastante no eixo Rio-São Paulo. Na banda carioca, ajuda na campanha presidencial do governador Anthony Garotinho, embora o candidato negue, e negue com veemência. É o Deus-cabo-eleitoral, como Frei Betto avisou aqui mesmo, no JB, na segunda-feira. O governador retrucou, no dia seguinte, com um artigo de firmeza messiânica. Declarou-se vítima de preconceito. Pode?

Já em São Paulo, a divina providência destacou-se em outra área, menos de política e mais de polícia: exerceu um papel proeminente na libertação da filha de Silvio Santos, Patrícia Abravanel, que esteve seqüestrada no bairro do Morumbi. O povo diz que o Morumbi é um bairro ?elegante? e, embora a voz do povo, segundo o próprio, seja a voz de Deus, eu discordo. O Morumbi é uma colagem de verdes vazios entremeados de vazios verdes; é uma rede extensa de muradas eletrovegetais e de distâncias obscuras, no meio das quais, sabemos agora, esconderam Patrícia. Ao que Deus deu jeito. Segundo a própria. Pode?

A questão é que Deus, o mesmo que escreve certo por linhas tortas – mais ou menos como aquele bilhete manuscrito que Silvio Santos endereçou aos jornalistas na semana passada pedindo que ninguém explorasse o assunto para não atrapalhar nas investigações – também fala (não sei se certo) por vozes quase tortas, ou quase retas, invariavelmente autoproclamadas. Sabemos dos desígnios do altíssimo pelo que dele nos dão conta seus intérpretes, que crescem e se multiplicam feito os índices de seqüestro na sociedade paulista. Sei que Deus deve estar na campanha de Garotinho porque ele, o governador, diz que não tem nada a ver (um pregador político costuma afirmar que sim quando afirma que não). E sei da atuação divina junto aos seqüestradores de Patrícia pelo que vi e ouvi da entrevista – ou do testemunho – que ela deu, já liberta, do alto da sacada de sua mansão no, vá lá, elegante bairro do Morumbi. Como resumiu William Bonner, ela ?falou de Deus o tempo todo?. Patrícia garantiu que não houve pagamento de resgate nem nada. Sua liberdade deveria ser creditada não ao dinheiro, nem à polícia, mas à Bíblia. Diante da TV, eu quase acreditei naquela mulher. Ela estava de cabelos e alma lavados, sorriso leve. Nada havia de dissimulação em sua verdade. Até que Silvio Santos apareceu, minutos depois de iniciada a coletiva. Ele entrou em cena chamando a própria filha de ?pastora?, e isso em tom de piada. Escarneceu. Disse que Patrícia lhe dava trabalho e que os seqüestradores deveriam ter ficado mais tempo com ela. Os dois riam sem parar. Achei que riam de mim. Parei de quase acreditar.

Não creio em Garotinho, não creio em Patrícia, não creio em Silvio Santos. Também não creio na segurança pública, nos profetas espertos, nos programas de auditório. Eu não creio em nada disso. Estou cansado. Se o único atalho que nos resta para a transcendência é o desabafo tragicômico das celebridades, livrai-nos Deus. O que nos resta? Bem, ao menos nos resta a idéia de que a humanidade será extinta, um dia, como os dinossauros e a ararinha azul. Ao pó retornaremos, não como indivíduos, mas como espécie.

Foi assim que eu, que também não creio em Steven Spielberg, acreditei no argumento de Inteligência artificial, filme que estréia nos cinemas brasileiros no dia 7. Espere. Não é bem que acreditei no argumento – nisso eu também não acreditei. Eu diria apenas que, tendo visto o filme no meio dessa confusão toda de Deus pra lá, Deus pra cá, Deus ajudante, Deus PM, Deus-cabo-eleitoral, deixei-me confortar com a previsão de que a humanidade irá desaparecer. (Não pense que estou contando o fim do filme – conto apenas o fim da humanidade.)

Juro que eu não queria tratar aqui de Inteligência artificial, o filmão da temporada. Explico por que é que não queria. Acho que criticar o cinema americano, no Brasil, é como opinar sobre a disposição das estrelas no céu ou como escrever cartas para tentar influir nas decisões do FMI. É algo fora do nosso alcance. O cinema americano é surdo para o Brasil. O mínimo que poderíamos fazer é ser cegos para ele. Só assim, aliás, Hollywood escutaria o Brasil. ?O país que não nos vê?, eles diriam, pasmos, e cairiam de joelhos.

Eu não queria falar dele, de fato. Ocorre que vivi uma experiência de fuga durante a sessão – e sobre ela é preciso que eu fale. O filme se passa num futuro distante, quando os oceanos já inundaram Nova York e, claro, também o Rio de Janeiro (que nem é mencionado, a gente é que deduz). Os robôs são perfeitos. A humanidade começa a minguar. Não parece, mas o argumento é menos chavão que isso. Dizem os folhetos promocionais da Warner – e dizem os jornalistas e críticos que reproduzem os folhetos da Warner em todos os jornais e revistas – que o argumento era ?uma obsessão do falecido cienasta Kubrick? e que ?Steven? o filmou como uma homenagem ao amigo ?Stanley? etc. Uma boa síntese de mercado: Steven é sinônimo de espetáculo, Stanley é sinônimo de inteligência. Soa artificial? A mim, pelo menos, soa. Mas gostei de ir à sessão e de sonhar com o dia em que tudo será mar ou deserto ou gelo. Nada mais de gente, de comício em rádios religiosas, nada de animador de auditório e de seqüestrador sendo preso no Jornal Nacional. Foi um alívio para mim perceber que a espécie humana é mais ou menos como aquele sujeito que dá uma gafe horrível numa festa e que torce para desaparecer, mas torce tanto que termina por desaparecer de verdade.

Isso nem é pessimismo. É apenas um diagnóstico, ou um desejo envelhecido. No fim da vida, doente de câncer, Freud dizia que a morte é o estado natural do corpo. Pudera. O que ele via à sua frente era a década de 30, que traria o nazismo encorpado, a guerra, o holocausto, o germe da bomba atômica. O fim do mundo era um cenário quente, o fruto natural do desejo violento. Em Inteligência artificial o fim do mundo é menos brusco: é tênue, imperceptível, mais adequado. Saio da sessão pensando que o estado natural do corpo não é mais a morte, mas a desmaterialização de si e de qualquer traço humano. A humanidade não estará extinta por ter sido violenta. Mas por ter sido ridícula."

 

"Duplo Sequestro", editorial, copyright Folha de São Paulo, 31/08/01

"Os inacreditáveis lances do sequestro que vitimou a família Abravanel revelam a precariedade do sistema de segurança pública. Já há muito que a população se sentia desamparada; a novidade está no fato de que um grupo, que aparenta ser inexperiente no crime, se julga capaz de sequestrar, impunemente, a filha de um dos mais conhecidos empresários do país e proprietário da segunda rede de TV. Mais do que ousadia, a ação demonstra o colapso da credibilidade da polícia.

Pior ainda, o mentor do crime, depois de ter matado dois policiais em tiroteio e ferido um terceiro, sentiu-se evidentemente ameaçado e foi à casa de Silvio Santos. Para tentar obter garantias de que não seria morto, cometeu novo sequestro, mantendo o empresário como refém por cerca de sete horas.

Participou das negociações, ?in loco?, o próprio governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, que chegou a falar pessoalmente com o malfeitor. É preciso reconhecer a coragem do governador, que se expôs a uma situação de risco, ainda que calculado. Mas é impossível deixar de observar que ele acabou ferindo princípios básicos de segurança e colocou sob ameaça também o cargo de chefe do Executivo paulista, o que talvez não fosse imprescindível.

Do gesto de Alckmin fica ainda uma mensagem problemática: ou a autoridade máxima do Estado está disponível para discutir termos de rendição com qualquer facínora, ou Alckmin agiu do modo que agiu por tratar-se de caso rumoroso, envolvendo personalidade da mídia. Não se pode deixar de considerar que existem outros sequestros em andamento em São Paulo, que não mereceram a mesma atenção do governador paulista.

Esse tipo de atitude em nada auxilia a precária segurança pública. Ao contrário até, ao abrir um precedente altamente discutível, poderá trazer consequências indesejáveis. O combate ao crime precisa ser feito de modo técnico, institucional e não-personalista. Infelizmente, não foi o que se verificou neste caso."

"A rendição final", copyright Folha de São Paulo, 31/08/01

"Banalizou-se de tal forma a violência, especialmente em São Paulo, que era inevitável a sua transformação em um grande espetáculo, como ocorreu nos episódios que envolveram a família Abravanel.

Já há o suficiente para lamentar nessa ?espetacularização? do crime. Por isso tornava-se perfeitamente dispensável a grotesca participação das mais altas autoridades do Estado, a começar pelo governador Geraldo Alckmin, no show .

Não há uma só explicação aceitável para que um governante se rebaixe ao diálogo com um sequestrador e assassino. Com a agravante de que com ele estavam o secretário de Segurança Pública e o comandante da Polícia Militar.

Ou Alckmin assume que é governador apenas dos ricos e famosos como Sílvio Santos ou vai ser obrigado a participar das negociações para resolver todos os demais sequestros, que ocorrem com espantosa frequência no Estado que ele governa.

A começar pelos cinco casos que permaneciam não resolvidos até ontem, enquanto a cúpula da polícia e o próprio chefe do governo se dedicavam a participar do espetáculo em que se transformou o sequestro de Sílvio Santos.

A partir de agora, está dado um recado a todos os que querem uma audiência com Geraldo Alckmin: basta sequestrar alguém famoso (nem precisa ser rico) e exigir a presença do governador. Se houver câmeras de televisão nas imediações, a audiência estará garantida.

Só faltou, para completar o absurdo, que o governador e o criminoso dessem entrevista coletiva um ao lado do outro, como é da praxe em ?visitas de Estado?.

Tudo somado, o espetáculo dos últimos dias não passa de repetição do cotidiano do Brasil: como é de costume, morreram apenas os atores coadjuvantes, no caso os policiais assassinados pelo interlocutor de Alckmin. Não eram ricos nem famosos. O governador não foi ao enterro."

    
    
                     

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