Thursday, 07 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Eugênio Bucci

TV INTERATIVA

"O tolo interativo", copyright Folha de S. Paulo, 21/10/01

"Antes que a televisão digital chegue de vez ao Brasil, com as suas maravilhas interativas, as redes nacionais vão iniciando o público nas delícias da interatividade. É uma iniciação rudimentar, é verdade; são passos de anfíbios rastejantes perto do que promete ser a TV digital (que já pode ser experimentada em continentes longínquos). Quanto à promessa, é admirável: o sujeito dá um clique no controle remoto ou emite um comando de voz ou, por que não?, um reles esgar de sobrancelhas, e o mundo do consumo intergaláctico se abre para ele. Uma pizza de milho verde ou a gravata do David Letterman, qualquer coisa se encomenda ao monitor. A garota de programa para a próxima meia hora, reservas em hotéis, um eletrocardiograma instantâneo.

A TV vai se tornando o gênio da lâmpada. Ela instaura a nova ordem: tudo há de circular pelos chips, nada será autorizado fora deles. A utopia tecnológica vem, assim, em forma de tirania envolvente. Vai monitorar até os fios de cabelo que se perderem no ralo da pia -e vai angariar o apoio excitado dos telespectadores, que piscam os olhinhos para os lampejos futuristas. Mariposas em volta da lâmpada.

Por ora, o que há de interatividade no vídeo são as enquetes do ?Casseta & Planeta?, as consultas do Galvão Bueno sobre o Felipão e as telefeiras. A platéia adere em frêmitos. Que filme você quer ver na segunda que vem? Quanto você quer doar para o programa ?Criança Esperança?? Compre já esta linda torradeira e ganhe grátis uma caneta tinteiro que fura latinha de cerveja. A TV oferta o mundo em dez vezes sem juros. O mundo inteiro, mas nada que importe. O mundo inteiro e, ao mesmo tempo, nada. Pelo vídeo só se negocia o que não conta. A TV interativa, do presente ou do futuro, existe para seduzir o consumidor -e para silenciar o cidadão. Essa é sua lógica central.

Ela pergunta sobre gravatas, torradeiras e garotas, mas nunca sobre direitos. Ela interpela o consumidor (o desejo que há em você) e nunca o cidadão (a consciência de se saber fonte de todo poder). Ela quer que o indivíduo (você) se manifeste em relação à cor da sandalinha ou ao preço da esteira ergométrica mas, por favor, que ele (você) nem pense sobre o poder -muito menos sobre o poder da TV. Chega a ser psicótica a recusa da TV em falar do poder que ela encerra.

Quantos anos deve durar uma concessão de canal aberto no Brasil? Alguém já viu essa pergunta no 0900? Hoje, a cada 15 anos as concessões dos canais abertos devem ser renovadas. Ou não renovadas, desde que dois quintos do Congresso Nacional assim o queiram, em votação nominal (conforme dispõe o artigo 223 da Constituição Federal, parágrafo segundo). Algum cidadão aí já foi consultado sobre o tema? Você já foi? Você sabe quando foram renovadas as concessões da Globo? Do SBT? Você conhece os termos dessas concessões? Enfim, por que a TV não é interativa quando o assunto é esse?

Essa nova ferramenta da utopia tecnológica, a interatividade, tão celebrada pelos futurólogos que vivem de vender pontos de exclamação ao capital, bem que seria útil para consultar o telespectador (o cidadão) sobre as concessões. Pois é em nome dele, cidadão, que as concessões são outorgadas. Seria útil, mas, francamente, você acha que haverá consultas sobre isso?

Essa tal de interatividade deveria se chamar interpassividade. Nada mais. Interpassividade consumista: anabolizante para o comércio, nuvem de fumaça para a democracia. Nos anos 60, um filósofo costumava dizer que a ideologia interpela os indivíduos enquanto sujeitos. Já não importa muito o que ele queria dizer. Importa que hoje a ideologia (videologia) interpela o indivíduo como freguês. E o freguês abre mão, alegremente, de ser aquele de quem emana o poder. Ele é apenas um qualquer, ser fungível, de quem emana o lucro."

    
    
                     
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