DOMINGO ILEGAL
Nilson Lage (*)
Há diferença significativa entre Ratinho e Gugu Liberato. O primeiro, grosso e sem polimento, surgiu no rádio do interior; o segundo, personagem de si mesmo, graduou-se em jornalismo na cidade de São Paulo, na faculdade da Fundação Cásper Líbero, onde devem lhe ter ensinado as técnicas da profissão. O cinismo, ele aprendeu sozinho.
Há também diferença entre Sílvio Santos e Gugu Liberato. Ambos não entendem o sentido da atividade jornalística. Mas o primeiro, por ser mais inteligente ou por ter vivido a experiência da semilegalidade como camelô nas ruas do Rio de Janeiro, percebe que todo comportamento humano obedece a um código não escrito, subjacente, cuja violação tem preço alto. Gugu ignora isso.
Foi essa percepção de Sílvio que Roberto Marinho notou, no início da década de 1970. O governo militar emprestou, então, milhões à TV Globo, cobriu esses milhões com um longo contrato de publicidade do Banco do Brasil (será que alguém ainda se lembra do programa Amaral Neto, o repórter?), com a condição de que a rede (a) se espalhasse ainda mais pelo país e adotasse o sistema colorido Pal-M; e (b) implantasse na telinha um padrão de qualidade compatível com o “milagre brasileiro”, eliminando o Casamento na TV do Raul Longras, as sessões de macumba de “Seu Sete da Lira”, os discursos chulos de Dercy Gonçalves e as mantas de bacalhau que Chacrinha jogava para a platéia. Roberto Marinho pessoalmente salvou Sílvio Santos e seu programa ? então exibido pela Globo ? da degola, argumentando com os generais que o homem, afinal, “tinha classe”.
Palhaço rico
O episódio de agora, a encenação de uma reportagem de “jornalismo investigativo” com pequenos vagabundos fingindo ser militantes do PCC, revela a diferença entre o cinismo de Gugu e qualquer outra coisa que se tenha visto. Descontada a questão dos limites, é algo semelhante ao que Sílvio Santos fez, ao dar entrevista declarando-se doente e a um passo da morte; revela desdém pela informação, desprezo pelo dever de informar e pelo direito que o público tem de ser informado. Só que, dessa vez, passou-se a fronteira do razoável, da piada, da gracinha de mau gosto.
Quanto à juíza que deu a sentença suspendendo o programa do Gugu, trata-se de exemplar típico da exorbitância judiciária. Nada havendo que contenha a informação, por que não nós?, perguntam-se os juízes. E saem canetando aqui e ali, punindo em geral pequenas empresas do interior que contrariam interesses de poderosos locais. É claro que essas decisões não costumam prosperar nos tribunais superiores mas, até lá, muitos serão os prejuízos e muito ganharão os advogados.
A questão central é que, sem um código de ética, sem um conselho profissional que o aplique, respeitado por empresas e jornalistas, a atividade estará sempre submetida às sandices de sujeitinhos como esse Gugu e às correspondentes arbitrariedades de juízes de província, movidos pela opinião pública que, como se sabe, é a opinião que se publica.
Da mesma forma que todo homem-bomba arranca votos para um Ariel Sharon e um seqüestrador e assassino de criancinhas “justifica” a pena de morte, a irresponsabilidade de um palhaço rico em busca de audiência conduz à ameaça à livre expressão do pensamento. diante dos aplausos daqueles que, sendo pobres de espírito, como diz o velho texto, “não sabem o que fazem” ? isto é, o que dizem ou escrevem.
(*) Professor-titular da Universidade Federal de Santa Catarina, diretor do IBICT ? Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia
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