QUALIDADE NA TV
LAÇOS DE FAMÍLIA
"Falta de critérios ameaça Portaria 796", copyright O Estado de S. Paulo, 15/11/00
"A julgar pelos censores de plantão, William Shakespeare teria um trabalho danado no Brasil de hoje. Romeu e Julieta, por exemplo, dificilmente se matariam, nem sequer teriam namorado. Afinal, são menores de 18 anos. Tais quais os personagens da novela Laços de Família, que o juiz Siro Darlan, da 1ª Vara da Infância e da Juventude no Rio, quer abolir por liminar.
O juiz decretou que a trama da Globo deve pular das 20h30 para as 21 horas e, de quebra, deletar os menores da trama. A primeira medida tenta proteger a garotada telespectadora; a segunda, a meninada que atua. A dupla shakespeariana seria, assim, um prato cheio. No mínimo, por sugerir o suicídio como alternativa-limite para adolescentes.
Sem diferença – Mas o autor Manoel Carlos não é um Shakespeare nem Laços tem saídas dramáticas tão consistentes. Na prática, a medida judicial é nula num País em que as crianças não desgrudam da TV antes da novela. Meia hora a mais ou a menos, não pesará na balança. Afinal, segundo o Ibope, os dez programas de TV mais vistos na infância são feitos para adultos, como as novelas, que têm sua audiência mirim estimulada pelos próprios adultos.
Falta de critérios – A medida, no entanto, chama atenção pela absoluta falta de critério que hoje domina as decisões inspiradas na Portaria 796, de 8 de setembro, aquela que busca evitar os excessos da TV por meio de classificação etária. O mesmo movimento que libera a Banheira do Gugu para as 20 horas, acha um abuso que a novela da Globo seja vista antes das 21 horas. Ou que classificou o Festa do Mallandro para as 22 horas (ele vai ao ar às 16h30), quase um mês depois de centrar fogo, numa primeira ação judicial, contra a mesma Laços.
As decisões pós-796 deixam claro que falta parâmetro para lidar com termos vagos, como mau gosto, qualidade da programação, baixo nível. São vagos até os limites entre o que é um ataque à dignidade e o que é liberdade artística ou de informação. Ratinho exibe cenas de uma criança sendo torturada, imagens que um procurador paulista garantiu que as admitiria se fossem exibidas num jornalístico.
Quando se fala em controle de qualidade da TV, quase sempre se pensa apenas num dos tentáculos do polvo: sexo, violência ou produtos de inteligência indigente e rivais da humanidade. Não há hoje, no Brasil, consenso sobre como agir sem apelar para a ditadura mais abjeta. Quem quer a sumária censura de sexo no vídeo convive na sociedade com quem recrimina só sua banalização ou com os que conseguem distinguir erotismo delicado de deslavada pornografia.
Autocensura – Não há tampouco consenso sobre como realizar o controle. Canal de TV nenhum se autocensuraria ante a perda de audiência. Governo nenhum teria legitimidade – afinal, de que Estado estamos falando hoje e pós-2002: o governado pelo PFL, pelo PT, pelo PSDB?
Delegaremos a um deles o critério do que podemos ver?
Talvez estejamos dando de bandeja ao governo um controle que os pais deveriam assumir melhor em casa. Pode ser. Tal como está, a voracidade punitiva está tão sem critério que sua tendência natural – a mais perigosa de todas – é virar caça-bruxas ao sabor de inquisidores. (Luiz Costa é editor do suplemento Telejornal)"
"Dilema do ministro", copyright O Estado de S. Paulo, 13/11/00
"Recente relatório da Comissão Federal de Comércio dos Estados Unidos acusou a indústria do entretenimento daquele país de oferecer ao público infantil filmes, músicas e jogos eletrônicos carregados de violência. Além disso, o jornal The New York Times publicou uma reportagem segundo a qual as grandes companhias de Hollywood recrutavam grupos de crianças com idade de 9 e 10 anos para testar as primeiras versões de filmes recomendados para o público adulto. A denúncia do Times mostra, por exemplo, que a Columbia Pictures entrevistou 50 crianças sobre cenas do filme Eu Sei o que Vocês Fizeram no Verão Passado, com muitas cenas violentas.
Segundo a reportagem, os aliciadores atraíam as crianças nas filas de cinemas e nos shoppings, oferecendo ingressos gratuitos aos que correspondessem à idade e ao grupo étnico desejados. Os estúdios admitiram que, embora alguns de seus filmes sejam recomendados para maiores de 18 anos, a indústria precisa do apoio dos jovens, que são grandes consumidores de filmes. Criticados duramente no Congresso norte-americano, executivos de oito estúdios de Hollywood se comprometeram a impor limites rigorosos à violência. O presidente da Sony, Mel Harris, reconheceu que a Columbia, empresa associada à Sony, agiu mal e está disposta a retificar. A companhia Walt Disney anunciou a proibição expressa de inserir trailers violentos em vídeos e filmes destinados ao público infantil. A reação da cadeia de TV ABC não foi diferente: não anunciará filmes para maiores antes das 21 horas.
Apesar da pronta reação da indústria do entretenimento, os políticos não se deram por satisfeitos. Embora Hollywood seja uma tradicional aliada dos democratas, Al Gore e seu vice, o senador Joseph Lieberman, pediram à comissão do Senado providências contra os excessos do negócio do entretenimento. A exploração da violência em filmes dirigidos às crianças virou, de fato, tema da campanha presidencial. Pressionados pela opinião pública, os candidatos defenderam o enquadramento ético do mundo da diversão.
Enquanto a democracia norte-americana, paradigma da defesa das liberdades públicas, demonstra que sabe ser dura com os que confundem liberdade de expressão com o seu abuso, aqui governantes e empresários do entretenimento prosseguem no jogo de faz-de-conta. Em recente artigo publicado no Estado, o ministro da Justiça, José Gregori, deu uma demonstração da fraqueza do governo no combate aos excessos da TV brasileira. Num tom exortativo, quase que entremeado de um pedido de desculpa às emissoras, afirmou que ‘as TVs devem ser parceiras essenciais no combate a todas as formas de violência e, para isso, precisam buscar maneiras inteligentes e não apelativas de retratar a realidade, oferecendo suas programações sem impor demasiadamente à sociedade, sobretudo às crianças e aos adolescentes, exposição exagerada e, muitas vezes, banal da violência’. E salientou: ‘Está na hora de os meios de comunicação, especialmente a televisão, patrocinarem, com equilíbrio e lucidez, a promoção de valores éticos e a formação de um clima de paz.’
O artigo do ministro da Justiça transmite a sensação de um sermão, e não de um esclarecimento da autoridade a respeito das providências efetivas que pretende adotar. José Gregori volta a insistir na importância do diálogo com as emissoras, mas omite um dado relevante: a portaria do Ministério da Justiça que pretenderia tornar mais rígida a classificação de horário e faixa etária da programação da TV só veio depois de dois anos de uma fracassada tentativa de diálogo com as emissoras.
A opinião pública percebe, com razão, que sobram declarações, mas falta o que realmente interessa: o cumprimento cabal da recente portaria do Ministério da Justiça. O que a sociedade quer não é a volta da censura, mas uma programação de qualidade. Infelizmente, a resistência autofágica da TV aberta é clara. Basta acompanhar a programação, sobretudo no horário destinado ao público infantil, para ver que nada mudou. Os responsáveis pela programação, ofuscados pelo sucesso de audiência a curto prazo, não percebem que estão dando um tiro de morte no seu maior capital: a credibilidade.
Confundem curiosidade com aprovação. Não são capazes de perceber que elevados índices do Ibope (resultado da curiosidade das pessoas com os aspectos mórbidos da vida) podem transformar-se num bumerangue de execração (fruto do julgamento ético, do bom senso e até mesmo do cansaço). É só uma questão de tempo. Quanto ao governo, está numa encruzilhada: ou segue o exemplo da democracia norte-americana e exige que os concessionários de um serviço público obedeçam aos princípios estabelecidos pela ética e pela lei, ou se desmoraliza definitivamente. (Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo para Editores e professor de Ética Jornalística, é representante da Faculdade de Comunicação da Universidade de Navarra no Brasil)"
"TVs vivem ‘inferno astral’ por causa de decisões judiciais", copyright Valor Econômico, 17 a 19/11/00
"Tortura de crianças, erotismo exagerado e temas polêmicos no horário nobre. Na acirrada disputa por audiência, a televisão brasileira virou o saco de pancadas da vez, alvo de críticas da opinião pública e organismos não- oficiais, além de uma enxurrada de ações judiciais decorrente de conteúdo da programação.
O último ataque foi desferido contra a Rede Globo. O Tribunal de Justiça do Rio determinou que todas as crianças no elenco da novela ‘Laços de família’ fossem retiradas do ar. Além disso, a emissora foi obrigada a iniciar a exibição do programa para às 21 horas, o que, na prática, apenas prorroga por 15 minutos a entrada da atração no ar.
‘É a volta da censura, que a gente sabe como começa, mas não como acaba’, ataca o diretor da Central Globo de Comunicação, Luiz Erlanger. A rede entrou com agravo regimental no TJ do Rio contra a decisão.
Por trás da celeuma entre governo e emissoras está a portaria 796, que estabelece critérios de horários para a exibição dos programas.
O tema é polêmico e tem provocado reações diversas. ‘A lei está perfeitamente em sintonia com a prática das maiores democracias do mundo, ninguém prega a volta da censura’, diz Laurindo Lalo Leal Filho, presidente da TVer, Organização Não-Governamental (ONG), que monitora a qualidade na TV brasileira.
O jornalista Alberto Dines, editor-responsável do Observatório da Imprensa, organismo que analisa e discute a mídia, também acha que o discurso das emissoras é exagerado.
‘É uma solução fácil dizer que a censura voltou, as coisas têm de ser colocadas nos devidos termos’, opina. Para ele, os casos recentes de ações judiciais refletem a discussão sobre a qualidade da TV que vem amadurecendo em toda a sociedade. ‘A opinião pública vem se conscientizando das responsabilidades que os donos das concessões públicas de TV têm para com a sociedade’, diz.
A discussão em torno do tema remete a uma questão mais grave: as grandes redes não estão unidades estrategicamente para dar uma resposta ao governo e população.
A Associação Brasileira das emissoras de Rádio e TV Abertas (Abert) não conta mais com a representatividade do setor. Hoje, das grandes redes, retiraram-se da entidade a Record, SBT e Bandeirantes. Com isso, a tese da auto-regulamentação, proposta que partiu do próprio governo, acabou nunca saindo do papel.
‘Nós defendemos a auto-regulamentação e achamos que o fórum para isso é a Abert, tanto que estamos lá’, comenta Erlanger. Formalmente, a associação vem reagindo. Na terça-feira, dirigentes da Abert reúnem-se com técnicos do Ministério da Justiça para propor o abrandamento da portaria.
O mercado publicitário também vê com muita apreensão o avanço da legislação sobre a programação. Ameaçado por regulamentações mais rígidas, caso da propaganda cigarro, acha que o país vive a volta da censura.
‘A interferência do poder no conteúdo da programação traz efeitos muito nocivos ao mercado. No caso da Globo, por exemplo, certamente os anunciantes sofrerão prejuízos com a mudança repentina de seus planos de mídia’, adverte o presidente da Associação Brasileira das Agências de Propaganda (Abap), Flávio Corrêa."
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