EFEITO ENÉAS
Luiz Weis (*)
Muito calor e pouca luz foi o que a imprensa paulista, em geral, ofereceu ao seu público ao tratar dos efeitos colaterais do voto no doutor Enéas.
Como se sabe, os 1.573.112 eleitores de São Paulo que cravaram o 5656 do hirsuto professor de cardiologia na urna eletr&ocirocirc;nica, além dos 41.505 que preferiram o genérico 56 do Partido de Reedificação da Ordem Nacional (Prona), ajudaram a levar para a Câmara dos Deputados mais seis seguidores do ferrabrás de extrema-direita. Cinco deles conseguiram, respectivamente, 673, 484, 382 e 275 votos ? ou, como o noticiário se apressou a informar, erroneamente, “tiveram 0% dos votos e vão para o Congresso”.
“Fenômeno Enéas cria nova matemática eleitoral”, mancheteou o Estado de S.Paulo na terça-feira (8/10), no que terá sido o título mais sem pé nem cabeça da temporada. E, ao lado, a matéria pautada para explicar a imaginária novidade, confundiu o incauto eleitor já no título: “Vitória dos menos votados, um capricho da legislação”.
Parem as máquinas! Com décadas e décadas de atraso ? a contar do Código Eleitoral de 1932, passando pela reforma de 1935, a chamada lei Agamenon de 1945, a reforma de 1950, até o Código Eleitoral de 1965, que consagraram o sistema proporcional de lista aberta para o preenchimento das cadeiras nas câmaras de vereadores e dos deputados e nas assembléias legislativas estaduais ? a brava gente da mídia descobriu, com indignação e perplexidade, que, por causa desse sistema, não basta a um candidato ser bom de voto para ter lugar garantido na casa de leis para a qual concorreu.
Desperdício de papel
Dependendo do desempenho de cada partido (medido pela soma dos votos recebidos por todos os seus candidatos, além do chamado voto na legenda) o aspirante à vereança ou à deputação da sigla PXYZ, embora tendo mais votos ? tanto faz quantos mais ? do que o seu competidor da sigla PABC, irá para o recesso do seu lar, enquanto este irá festejar a sua condição de representante do povo.
Isso é quase tão velho como andar para frente nos países em que as vagas para os parlamentos locais e nacionais (com exceção do Senado, onde vale o critério majoritário) são distribuídas proporcionalmente à votação conseguida pelos partidos ou coligações partidárias.
Daí ser espantoso o espanto embutido no lide da matéria sobre o suposto “capricho” da legislação: “Quem olha os números da eleição fica com a impressão de quem ganha não leva. E nem sempre fica na impressão”. E aí o texto se põe a esclarecer porque o ex-prefeito paulistano Celso Pitta, do PSL, citado como exemplo, não vai para Brasília, apesar dos seus mais de 80 mil votos, ao passo que o pronático Vanderley Assis de Souza, com as suas miseráveis duas dezenas de sufrágios, vai.
Para deixar claro que se trata, pior do que um capricho, de uma verdadeira aberração, um ato de lesa-eleitor, foi-se apurar que “nas urnas do Copan” (com 1.160 apartamentos e 115 mil metros quadrados, o maior edifício do mundo em unidades habitacionais e área construída, no centrão de São Paulo), os deputados eleitos graças à também recorde votação de Enéas “levariam uma surra” se cometessem a temeridade de se candidatar ao cargo de síndico.
E abra-se o caderno de anotações do repórter para acolher, na modalidade vox populi, as reflexões do síndico do Copan, Affonso Celso Prazeres de Oliveira: “É o que diz a lei, mas é lamentável. Qual é a representatividade que eles vão ter? Em compensação, gente séria e competente não vai nos representar no Congresso”.
Então é isso. Além de escancarar uma porta arrombada ? as já encanecidas características do sistema proporcional ? esse tipo de noticiário engrossa a percepção de senso comum de que o processo de constituição do Legislativo no Brasil é, no mínimo, antidemocrático.
Haja desperdício de papel, tinta ? e da oportunidade de dar ao leitor as informações substantivas de que ele precisa para entender e julgar a regra do jogo. Em vez de gastar espaço denunciando a tal da “nova matemática eleitoral” e perfilando pejorativamente os eleitos “com zero por cento de votos”, como se isso lá tivesse alguma importância, por que não dar uma geral, para começo de conversa, nos diversos sistemas eleitorais em uso no mundo?
Com isso, o leitorado poderia saber, de saída, que todo sistema eleitoral é imperfeito como um cobertor curto.
Engenharia democrática
O critério proporcional é tido como o mais democrático porque abre espaço para a representação do maior número de correntes políticas. São 19 os partidos com assento na Câmara dos Deputados, dos 30 existentes no Brasil. Ou seja ? em tese ? o proporcionalismo traduz melhor a diversidade social, econômica, cultural, regional e eventualmente étnica de um país, ainda mais quando esse país é enorme e é uma federação.
Já o critério majoritário (elege-se o candidato com mais votos em cada circunscrição ou distrito em que a cidade, o Estado e o país foram divididos para fins eleitorais) estabelece vínculos mais fortes entre o eleitor e o eleito, incentiva a formação de maiorias parlamentares estáveis, aumentando a produtividade legislativa. Mas é excludente.
Na Inglaterra do voto distrital, por exemplo, a terceira força política, o Partido Liberal-Democrático, está sub-representado na Câmara dos Comuns, em contraposição aos trabalhistas e conservadores, porque o LibDem, como é chamado, tem mais votos, no cômputo geral do país, do que vitórias nas disputas distrito a distrito.
O leitor poderia também tomar conhecimento de que há sistemas proporcionais e sistemas proporcionais. O do Brasil, de lista aberta, em que o eleitor vota em candidatos (embora possa também votar só no partido) só existe no exterior no Chile, Finlândia, Peru e Polônia.
Muita gente, provavelmente com razão, acha que o pior do sistema brasileiro não é o efeito Enéas, porque os votos dados ao iracundo doutor serviram para eleger, afinal, companheiros de partido. O pior é o que resulta muitas vezes do sistema de lista aberta com coligações partidárias. O eleitor quis eleger o candidato A do partido X, por isso votou nele. Mas o seu voto ajudou a eleger o candidato B do partido Y coligado ao X. É o que os especialistas chamam “evasão de votos”.
Já no sistema de lista fechada, se vota nos partidos. A votação obtida por cada um determina quantos dos seus candidatos se elegerão. Se forem, digamos, dez, estes serão os que figuram nos dez primeiros lugares da lista que o partido, de acordo com critérios seus, montou para o pleito. Se os critérios valorizarem a democracia interna, jóia. Do contrário, será a oligarquização do partido. Treze países adotam esse modelo, entre eles Argentina, África do Sul, Espanha, Portugal e Uruguai.
E tem o tão falado modelo alemão, de 1949 ? o sistema misto, impropriamente chamado distrital misto, que se quer implantar no Brasil. Nele o eleitor vota duas vezes: no candidato de seu distrito (eleição majoritária) e no partido de sua preferência (eleição proporcional). A idéia é “compensar com representantes eleitos pelo sistema proporcional as distorções na relação votos/cadeiras produzidas pelas eleições majoritárias”.
O trecho entre aspas foi tirado da pequena (79 páginas) obra-prima do gênero que é o livro Sistemas eleitorais, do cientista político Jairo Marconi Nicolau, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), editado pela Fundação Getúlio Vargas, em 1999. Nenhum jornalista que queira cobrir o assunto devia sair de casa sem ele.
Uma horinha com o livreto do professor Nicolau teria impedido que se escrevesse tanta bobagem sobre o efeito Enéas e teria permitido que o público entendesse que a engenharia da democracia representativa é mais complicada que parece.
Sensacionalismo eleitoral
As luminosas exceções a essa pífia cobertura, pelo menos do conhecimento deste jornalista, foram duas.
Uma, a inteligente coluna da editora de Política do Valor, Maria Cristina Fernandes, na sexta-feira 11/10, intitulada “Enéas não vale uma reforma” e alimentada, em boa parte, pelo cientista político Renato Lessa, presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj). [Prova de que o diabo está nos detalhes, a respectiva página saiu com data de 2 de junho de 2002.]
Outra, a bem-feita entrevista da repórter Lia Hama, da Folha de S.Paulo, com outro craque, o cientista político da USP Fernando Limongi, presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), publicada no mesmo dia, com o título “Deputados eleitos por Enéas são legítimos, diz estudioso”.
Reduzidos, assim, às suas devidas proporções o “capricho da legislação” e a “nova matemática eleitoral”, ficou faltando um belo pingue-pongue com o próprio Jairo Nicolau, digamos, sobre os prós, os contras e os imprevistos efeitos, eventualmente perversos, de cada sistema eleitoral, com as respectivas variantes, a partir da perspectiva do aprofundamento da democracia brasileira.
Um minúsculo passo nessa direção foi dado no domingo (13/10) pelo Estado de S.Paulo, ao abrir uma página de análise das eleições para quatro cientistas políticos ? além do carioca Nicolau, o paulista Leôncio Martins Rodrigues (Unicamp), o mineiro Fábio Wanderley Reis (UFMG) e o gaúcho Denis Rosenfield (UFRGS).
Pena que as suas idéias a respeito do sistema eleitoral tenham ocupado apenas uma parte do item “reforma política” que, por sua vez, foi apenas um dos seis mesmos quesitos submetidos aos entrevistados pelo repórter Silvio Bressan.
Doses mais alentadas sobre o assunto seriam um santo remédio contra o sensacionalismo eleitoral, dando ao leitor vitamina da melhor qualidade para ele pensar se, parafraseando a colunista Maria Cristina, o doutor Enéas não vale ou vale uma reforma ? e, caso valha, que reforma seria essa.
(*) Jornalista