Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Fábulas de ontem e de hoje

MÍDIA GAÚCHA

Gilmar Antonio Crestani (*)

A partir da Trilogia Tebana (Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona), de Sófocles (496-406 a.C.), a civilização ocidental levantou questões como o Complexo de Édipo (Édipo Rei) e o conflito entre o direito natural versus direito positivo (Antígona), que ainda rendem debates acalorados nos respectivos meios acadêmicos. Mas, na peça intermediária, duas passagens parecem tratar de aspectos também muito atuais. Na peça Édipo em Colono, vemos o primogênito Polinices, depois de ver o trono de Tebas usurpado pelo irmão menor, Etéocles, ir em busca do auxílio de seu pai, Édipo, na tentativa de reconquistar Tebas, a das sete portas.

Questionado pela irmã, Antígona, Polinices dá uma de Rubens Ricúpero: "Não vou ser mensageiro de notícias más, pois um bom comandante divulga somente os fatos favoráveis e cala os funestos". Algumas páginas adiante e é a vez do Coro proclamar: ninguém na vida está a salvo da infelicidade.

Este tema da imponderabilidade da felicidade foi abordado também pelo pai da História, Heródoto (484-425 a.C.), contemporâneo de Sófocles. Trata-se da visita do Arconte e jurista grego, Sólon, ao rei da Lídia (Turquia), na Ásia Menor.

Plutarco, no século I d. C., quando biografou a vida de Sólon, retoma o episódio relatado pelo historiador. Conta que o rei lídio, que gostava de ostentar o fausto de sua vida, quis impressionar Sólon. Ordenou que lhe mostrassem todo seu enorme tesouro, ao passo que Sólon não precisava de nada disso para avaliar seu caráter. A atitude de Creso já dava mostras suficientes do seu caráter. Creso, diante de todo o esplendor de seu luxo, perguntou se conhecia homem mais feliz. Sólon apontou seu concidadão como exemplo de felicidade, pois era pessoa honrada que deixara filhos muito estimados e morrera gloriosamente lutando como um bravo pela pátria, depois de viver sem carecer de nenhum dos bens necessários.

Despeitado, Creso perguntou se conhecia mais alguém. E Sólon apontara Cléobis e Bíton, dois irmãos que se amavam e amavam a mãe com uma ternura extraordinária, a ponto de substituir os bois do carro em que estava a mãe, levando-o até o santuário da deusa Hera. Cumprida a missão, jazeram mortos, mas felizes, os dois. Diante de mais este episódio, indignado, o rei lídio perguntou: "E a nós, não nos dás nenhum lugar entre os homens felizes?" Sólon (640-558 a.C.), com toda a sabedoria de um grego de sua época, respondeu: "Aquele a quem a sorte concedeu prosperidade até o fim, esse nós consideramos feliz; mas considerar tal aquele que ainda está vivo e em perigo não é mais seguro nem mais válido que proclamar vencedor e coroar um atleta que ainda está lutando."

Plutarco acrescenta que o fabulista Esopo, o parabólico da época, também se achava em Sardes na ocasião, advertira: "Sólon, é preciso ficar longe dos reis o máximo possível ou dizer-lhes as coisas mais agradáveis possíveis."

As mesmas empresas e os mesmos jornalistas responsáveis pelo fenômeno Collor, e que também se prostraram diante do professor Cardoso durante esses já longos anos, se inclinam para o Maranhão como os muçulmanos em direção a Meca.

Rubens Ricúpero, na famosa incontinência parabólica, não foi o primeiro, muito menos o último a só dizer coisas agradáveis e esconder as ruins. Também temos filósofos fabulistas, não tão brilhantes quanto Esopo, mas com mais disposição de se tornarem vassalos.

A especialidade da mídia

Deixar a ética com torcicolo é o de menos. Quando não conseguem tecer considerações laudatórias, incensando o ocupante do Palácio do Planalto, lançam catilinárias contra quem ousa mostrar a nudez do rei. O filósofo grego Platão também buscou implementar o ideal de transformar um tirano em estadista-filósofo. Em 387, com 60 anos, embarcou para a Sicília em auxílio do rei Dionísio II. Mas já não se fazem mais filósofos como antigamente. Na hora em que surge a menor mudança, ameaçando privilégios feudais, os mercenários correm tresloucados a encastelarem-se no primeiro feudo em busca de mecenato. Contra os bárbaros da esquerda vale qualquer arma, principalmente a distorção dos fatos, como ocorre no Rio Grande do Sul.

Acostumados a ouvir as excelências dos modelos chileno, mexicano, peruano ou argentino, esquecem-se do alerta de Sólon, ou da voz que Sófocles deu ao Coro, sobre a fugacidade da felicidade. O castelo de areia pode desabar, pois não há mentira que sempre dure.

Se Lula estiver na frente nas pesquisas, os oráculos apontam o perigo das instituições democráticas. Quando Roseana aparece na dianteira, encaram como se fosse uma fatalidade, contra a qual não cabe qualquer reação. Deus quer.

O saudoso poeta gaúcho Mário Quintana já formulara um oráculo que, se não explica o último tango em Buenos Aires, pelo menos nos faz entender o porquê dos fatos atuais: "Democracia?", escreveu Quintana, "é dar, a todos, o mesmo ponto de partida". Quanto ao ponto de chegada, isso depende de cada um. Acabar com as regras da CLT que dão um tom civilizatório mínimo na disputa entre capital e trabalho, quando não há ainda ponto de partida uniforme, não é só dar razão a Darwin. É potencializar ao máximo a disputa entre fracos e fortes para ver quem sobrevive. O resultado está aqui na nossa fronteira, para quem quiser ver. É assim que nascem os talibãs.

Alguém encontrou na imprensa uma explicação para o caos que se instalou na Argentina? Não. Nem poderia. Tanto incensaram as excelências da política imposta lá, irmã siamesa da que vem sendo vendida aqui, que os analistas gaúchos baratinaram. Lula é Fernando de La Rúa. Ponto. Mas não se dão conta de que esse raciocínio impõe, no mínimo, as seguintes questões: o professor Cardoso é Carlos Menem? O Brasil que o próximo governo herdará equivale à Argentina entregue por Carlos Menem?

Esconder determinados fatos, aumentar o volume de outros parece ser a especialidade de nossa imprensa.

Britto e a unanimidade

Falando do que me é mais próximo, veja-se o caso do jornal gaúcho Zero Hora, do grupo RBS. Quando se trata de assunto envolvendo o governo federal, utiliza como fonte, e as cita ao pé da matéria, órgãos da administração federal. Em se tratando das questões estaduais, a fonte são os partidos de oposição. Nesse caso, sequer cita a fonte. Mas quem acompanha os debates na Assembléia Legislativa, sabe.

Quem tiver olhos, que leia, e, com a inteligência que Deus dá a cada um de nós, tire as suas conclusões. São fatos.

1) Quinta-feira, 20/12, imenso congestionamento na Avenida Ipiranga, esquina com a Érico Veríssimo. Motivo: manifestação dos funcionários da RBS na frente da sede do jornal Zero Hora, contra o atraso de salários e por maior dignidade no tratamento por parte da empresa, que reputam "mafiosa", como mostravam faixas e cartazes. No dia seguinte, nenhuma nota a respeito. A bem da verdade, a mesma desconsideração a empresa teve com a greve dos professores das universidades públicas federais. Nada a informar. Quando os servidores do município de Porto Alegre ou os servidores estaduais reivindicam, merecem páginas, editorais, fotos, entrevistas. Até parece que passaram a existir a partir do início das administrações petistas. Se fosse mais uma manifestação do MST, atrapalhando o trânsito, seria o princípio do fim. É a baderna obstruindo o direito de ir e vir, tentando destruir o Estado de Direto. O estado de direito dos que sempre se alinham ao estado da direita.

2) O auxílio aos pequenos produtores rurais não é só desperdício, mas incentivo à vagabundagem. Reposição salarial para os servidores públicos federais, há sete anos sem aumento, não merece a menor preocupação. Aí lemos a Carta Capital e está lá a foto estendida na mesa. Os "capos" das "famiglias" Frias, Marinho, Mesquita e Sirostsky são recebidos para que a mão nem tão invisível do poder evite uma falência generalizada. Mas não são exatamente eles que exigem o estado mínimo, pois o mercado se encarrega de gerenciar a sobrevivência dos capazes? O que estão demonstrando não é a vitória dos capazes, mas dos capatazes. Para ilustrar, veja-se o sítio da Globopar ? da família Marinho. Um banner pisca no canto direito superior, dizendo: esta empresa tem o apoio do BNDES. O mesmo apoio que faltou para construir hidro ou termoelétricas… ou mesmo nas empresas de saneamento básico. Quando uma empresa como a Transbrasil arria as asas, o ministro Sérgio Amaral age "com boa vontade", que se traduz em recursos.

Quando a RBS é multada por não recolher impostos, aparece o ministro da Educação, Paulo Renato, pedindo ao Everardo Maciel para receber os representantes da empresa. As empresas, como as pessoas, podem encontrar dificuldades. Um amigo pode emprestar a outro uns trocados para o Natal. Teria o mesmo sentido se o Grupo Globo cobrisse a folha de pagamentos da RBS?

3) Que o homem é um animal político, os gregos, pioneiros em tudo, mas principalmente na discussão política, também sabiam. O viés é que distingue, os fins e os meios. Os jornalistas brigam com seus patrões, com outros jornalistas, com os fatos e com a verdade. Como qualquer profissional, de qualquer área. Mas é o único que reivindica para sua (dele) palavra o poder de um oráculo de Delfos. É verdade e não se fala mais nisso. Quem ousa discordar recebe a tarja (agora está na moda o código de barras…): patrulha!

Como ensina um dos tratadistas da RBS, filiado ao PMDB, Sérgio da Costa Franco, alimentado com a ideologia da audácia coletiva e do desrespeito aos valores tradicionais, e estimulado pela tolerância contumaz das autoridades, ZH 9/12/2001. Como se vê, "tolerância" virou crime. Intolerância, infelizmente, virou panacéia desses serviçais de um passado ainda recente. E é esse passado que querem ter de volta. Coincidentemente, o colunista é signatário com outros políticos que ocupam espaço jornalístico na RBS para reclamar mais liberdade de imprensa ao governo do estado.

4) A pergunta da pesquisa patrocinada pelo Census, para a CNT, já trazia uma verdade: Você sabe que o governador do Rio Grande do Sul, Olívio Dutra, está envolvido com o jogo do bicho? A questão substantiva não é o questionamento "sabe", mas, sim, que o governador "está" envolvido com o jogo do bicho. Não é uma pergunta, mas uma afirmativa. Nas pegadinhas, o entrevistador também pergunta um absurdo ao transeunte. Se ele sabe a diferença entre ampulheta e relógio. A dificuldade em admitir o desconhecimento do fato que se está afirmando condiciona a responder afirmativamente, mormente quando não se precisa justificá-la. Que houvesse má-fé numa pesquisa patrocinada por um entidade como a CNT, para partidos que abriga gente como ACM, não é novidade. O mais inacreditável é que uma questão desse naipe paute a imprensa de norte a sul.

5) Segundo Eliane Cantanhêde, Folha 13/12, a Venezuela vai bem, mas Chávez está mal, tudo por conta da mídia e seus interesses contrariados. No Brasil, temos dois exemplos: o Brasil vai mal em todos os indicadores, inclusive a popularidade do presidente, mas a mídia está de bem, como sempre, com o professor Cardoso. No Rio Grande do Sul, todos os indicadores apontam para uma melhora socioeconômica do Estado, mas boa parcela da mídia, aquela que vai mal, não perdoa. Diante de tudo isso, há algo a mais no ar, e não são os aviões da al-Qaeda. É no mínimo sintomático o tipo de democracia, de liberdade e de "tolerância" que as empresas que exploram os meios de comunicação praticam.

6) Os gaúchos que assinam e lêem o Correio do Povo pouco ou nada ficam sabendo sobre Antônio Britto, já que é solenemente ignorado pelo jornal. A desconsideração afetou tanto o ego do ex-governador a ponto de este propor uma ação contra a empresa Caldas Jr, que edita o jornal. O motivo seria por o jornal estar "omitindo deliberada e danosamente" seu nome e suas fotos nas notícias. Um narcisista não seria mais enfático na busca de espaço. Não basta o apoio incondicional da RBS, quer a unanimidade da mídia!

Já os leitores do jornal Zero Hora, concorrente direta do Correio do Povo, são abundantemente informados sobre os "feitos" do neomarxista do PPS. Qualquer coisa que faça o funcionário do Banco Opportunity Antonio Britto é notícia na RBS.

Imparcialidade

Tudo isto para dizer que imparcialidade é palavra de dicionário. Não é prática jornalística. Não aqui nestes pagos, embora os jornais O Sul e o Jornal do Comércio tentem e têm se saído melhor que os outros dois concorrentes.

O jornalismo político praticado aqui na capital dos pampas pouco tem de imparcial. E talvez por isso sintam a necessidade de afirmar a todo momento que o são. Os poucos jornalistas que ainda não são filiados a partido político, seja PT, PMDB, PPB, PDT ou PPS, não escondem as preferências no modo de conduzir as informações. Além disso, com a internet, viceja um grupo de jornalistas ostensiva e agressivamente partidário. Nos últimos dias, esse grupo dito "jornalistas de opinião", encabeçado pelo presidente da Fundação Tarso Dutra, que, por sua vez, é subsidiada pela Fundação Milton Campos, do PPB, tem se mostrado deveras preocupado com a possibilidade de virem a ser processados "por mentiras ou falsas acusações". Se não publicam mentiras nem falsas acusações, por que a revolta? Não dizem eles, quando se trata do governo do estado, que quem não deve não teme uma CPI? Qual é a diferença? É de caráter? É de ética?

Como já disse uma vez Sérgio Ricardo, "a vida não se resume em festivais". Ainda mais quando o festival de mentiras suplanta o imperativo ético de bem informar.

A culpa é deste Observatório. O slogan não me deixa mentir. A partir do momento em que também a imprensa passa a ser tratada como notícia, não se lê mais jornal do mesmo jeito. Ninguém passa impunemente pelas matérias deste sítio. Mas, na mesma proporção que aumenta o instrumental de apoio, cresce também a preocupação com os leitores que consomem apenas um jornal. Só a pluralidade de opiniões pode esclarecer, mesmo quando parecem um bloco monolítico. As contradições decorrentes de ausências, de um lado, ou superdimensionamentos, de outro, só podem ser bem-assimiladas pelo leitor plural. Quando se lê uma informação com a mesma redação em mais de uma coluna, em diferentes jornais, desconfie. O problema não é a fonte ser a mesma, é o jornalista tomá-la como verdade, sem análise crítica. Há algum interesse velando pela uniformidade do bloco.

O jornalista não pode se confundir com o político, que esconde os defeitos de seus correligionários e denuncia o dos outros. Escamotear a verdade para proteger o rei salva a pele do rei, mas não a dos súditos. E quando os súditos só têm a pele como patrimônio, pode acontecer exatamente o que estamos vendo na Argentina.

(*) Funcionário público federal