Friday, 29 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Felipe Frisch

MÍDIA & DEFICIENTE

"Deficiente é a mídia", copyright Revista do Terceiro Setor (Rets), 5/01/02

"Está previsto para o próximo semestre letivo, na Universidade Federal de Juiz de Fora, um curso que pretende ser a luz que faltava aos jornalistas. É a especialização em Mídia e Deficiência, promovido por um convênio entre o Núcleo de Educação Especial (Nesp) e o Núcleo de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação. Mais do que profissionalizar jornalistas, o curso pretende formar pessoas capazes de ?pensar a vida a partir dos princípios da equiparação de oportunidades, da igualdade de direitos, no reconhecimento e no respeito à diferença?, segundo o Coordenador do Nesp, Carlos Alberto Marques, autor da tese de doutorado ?A imagem da alteridade na mídia?.

O educador, em entrevista à Rets, fala das grandes dificuldades em se trabalhar a inclusão de forma ética, e diz que o que falta, na verdade, é segurança por parte dos profissionais para trabalharem o tema, e não ficarem presos nos excessos do ?politicamente correto?. Segundo Carlos Alberto, falar da diversidade humana não deve ser exclusividade dos profissionais de mídia, e devia acontecer já na graduação de todos os cursos. Dessa forma, segundo ele, professores, alunos e funcionários das instituições de formação profissional devem, independentes de grade curricular, avaliar constantemente o seu papel no mundo.

Rets – Como surgiu a idéia de um curso com esse tema?

Carlos Alberto Marques – Independente do assunto que se possa estar discutindo, é preciso considerar o momento de transição por que passa o mundo. Os valores e as práticas sociais fundadas na dicotomia ?normal? versus ?anormal? vêm sendo substituídos pelo primado da diversidade humana, onde ser diferente é apenas uma das inúmeras probabilidades de ser humano. Historicamente, as pessoas identificadas como ?diferentes? eram, então, tratadas como ?desviantes?, ou seja, colocadas fora dos parâmetros de normalidade ideologicamente estabelecidos. Hoje, percebe-se a emersão de um novo entendimento acerca da natureza humana: a diferença passa a ser reconhecida e respeitada. Todavia, persiste ainda no imaginário social uma idéia muito forte de que o deficiente é um ser humano de segunda categoria, inferior, incapaz e inválido.

Rets – E qual a responsabilidade da mídia nisso?

Carlos Alberto Marques – Se entendermos que os profissionais da área da comunicação social e do jornalismo são agentes de formação de opinião com grande poder de penetração social, vemos que é de fundamental importância a criação de um curso, no âmbito da Universidade Brasileira, que aborde as questões referentes à problemática vivida pelos portadores de necessidades especiais, e mais especificamente os portadores de deficiência, no contexto social em que vivemos. Acreditamos, assim, estar contribuindo para a superação da imagem negativa e passiva ainda presente no imaginário social por uma outra que enfatiza a potencialidade das pessoas e valorize a vida em toda a sua plenitude, uma vida à qual ninguém tem menos direito.

Rets – E a sua tese sobre o assunto?

Carlos Alberto Marques – Na minha tese de Doutorado, intitulada ?A imagem da alteridade na mídia?, eu busquei identificar os significados da deficiência veiculados pelos jornais Folha de São Paulo, Jornal do Brasil e O Globo, no período de 1 de julho de 1998 a 31 de dezembro do mesmo ano. Foram identificados os sentidos referentes aos paradigmas da exclusão (isolamento), integração (visibilidade) e inclusão (acessibilidade). Minha intenção foi justamente a de, ao sistematizar esses dados, mostrar a importância e a necessidade de se ressignificar o sentido pejorativo e incapacitante que marca, ainda, o discurso sobre os portadores de deficiência. Cumpre ressaltar que já é bastante significativo o espaço destinado à promoção do deficiente como um ser humano digno, com igualdade de direitos, e o que é mais importante: reconhecido como cidadão.

Rets – O que falta nas universidades para encaminharem este tipo de curso, ou tema?

Carlos Alberto – Creio que falta uma reflexão mais profunda sobre o seu próprio papel no processo de mudança social e de mentalidade. No caso específico da deficiência, a questão é um pouco mais complexa, pois professores, alunos e funcionários são sujeitos sociais e históricos, portanto, influenciados da mesma forma pelos sentidos construídos e veiculados ao longo dos tempos. Assim, as pessoas não se dão conta de que reproduzem, muitas vezes, os mesmos valores que aprenderam e dos quais ainda não conseguiram se livrar. Esperamos, contudo, que outros centros de reflexão teórico-prática e de produção de conhecimento, como é o caso da universidade, atentem para a importância de espaços como este do Curso de Especialização em Mídia e Deficiência.

Rets – Que argumento pode ser usado para despertar o interesse das universidades e dos alunos para esta abordagem?

Carlos Alberto – No caso dos alunos e dos profissionais da comunicação social e do jornalismo, inclusive os professores universitários, talvez o melhor argumento seja o de convocá-los a uma reflexão sobre o papel da mídia e o papel de cada um no processo de construção e veiculação da imagem do outro. Até que ponto nós estamos contribuindo para a reprodução de valores negativos sobre a deficiência ou estamos auxiliando na construção de novos valores, fundados na valorização do ser humano e na potencialidade de cada pessoa?

Rets – A inclusão social também significa mercado de trabalho para profissionais de comunicação?

Carlos Alberto – A inclusão não pode ser reduzida a um espaço delimitado ou a algo material. Ela é, na verdade, um novo paradigma e, por isso mesmo, um novo olhar sobre tudo o que envolve a vida em sociedade. Assim, não se deve pensar em profissionais especializados em inclusão, mas em profissionais capazes de pensar a vida a partir dos princípios da equiparação de oportunidades, da igualdade de direitos, no reconhecimento e no respeito à diferença, ou seja, sem discriminação e sem preconceito de quaisquer naturezas.

Rets – Qual tem sido o tratamento dispensado pela mídia aos portadores de deficiência?

Carlos Alberto – Como já disse, na minha tese foi possível identificar diversas matérias falando do lugar da exclusão; outras, do lugar da integração; e, da mesma forma, um outro tanto, falando do lugar da inclusão. Portanto, a mídia constitui, hoje, um espaço onde são veiculados todos os sentidos possíveis sobre a deficiência.

Rets – Que nova abordagem você defende?

Carlos Alberto – Sem dúvida, uma que zele pelos princípios inclusivistas, que não consideram os ?diferentes? seres humanos de segunda categoria. Entendo que o que deve ser feito, e com a máxima urgência, é ampliar os fóruns de discussão sobre as mudanças pelas quais vem passando o mundo, instigando cada pessoa a pensar o seu papel nesse processo. Não há distinção entre as pessoas no que toca ao seu envolvimento com tais mudanças. Num mundo onde a exclusão social tem se constituído numa marca muito negativa nas relações humanas, urge se pensar numa convivência mais harmônica, onde ser diferente não signifique, ao homem, perder o sentido maior da vida: a sua humanidade.

Rets – Não é só depois de formados que os profissionais devem começar a exercitar este tipo de reflexão. Como, já na graduação, os cursos de comunicação podem ajudar a mudar a abordagem sobre os portadores de deficiências?

Carlos Alberto – Existem, na verdade, vários caminhos a serem trilhados, o que deve ocorrer simultaneamente. No nível institucional, é necessário introduzir nas grades curriculares de todos os cursos conteúdos e/ou disciplinas que abordem a questão da diversidade humana e do significado da diferença na vida de cada pessoa, em particular, e na dinâmica social, em geral. No nível individual, é de fundamental importância que professores, alunos e funcionários das instituições de formação profissional avaliem, cada qual, o seu papel no mundo. Finalmente, no nível das relações humanas, é, da mesma forma, importantíssima uma ressignificação das mesmas, visando a um maior equilíbrio na dinâmica social, hoje tão desigual e injusta. Esse processo não se refere somente aos portadores de deficiência. Inclusão é diversidade. Portanto, não se deve falar de inclusão de deficientes, mas de diversidade humana, que abrange as múltiplas formas de se ver o mundo e de se estar no mundo e com o mundo, independente de se ser homem ou mulher, pobre ou rico, idoso ou jovem, da raça, da crença ou de qualquer outro atributo.

Rets – Que exemplos de mau uso da imprensa você destaca na sua tese?

Carlos Alberto – Várias matérias ocuparam, com os discursos dos seus enunciadores, o lugar da exclusão, defendendo, por exemplo, a institucionalização da deficiência através do isolamento de seus portadores em asilos, internatos etc. Um grande número de matérias abordou, também, a dificuldade enfrentada pelos deficientes em relação às chamadas barreiras arquitetônicas, tão freqüentes no cotidiano urbano. Foram, também, identificadas matérias que defendiam o aborto de fetos considerados ?anormais?, e até mesmo a eutanásia. Enfim, é possível afirmar que, no segundo semestre de 1998, era ainda muito freqüente o sentido excludente em relação à deficiência e aos seus portadores.

Rets – Muitas vezes, quando a imprensa tenta dar uma abordagem justa sobre os portadores de deficiência, isso acontece em veículos segmentados, e acaba-se pecando pelo excesso do ?politicamente correto? em detrimento da informação. Como podemos equilibar essas forças?

Carlos Alberto – Na verdade, esse fato constitui uma conseqüência e não a causa do fenômeno. A segmentação e a própria forma de se abordar a questão refletem, em última instância, o entendimento que os próprios profissionais da imprensa têm sobre a deficiência. Isso retrata mais a falta de clareza e de convicção do que se está falando. Quando a pessoa tem segurança em relação ao tema que aborda, ela não titubeia. O que digo pôde ser nitidamente percebido na minha pesquisa.

Rets – Recentemente, uma juíza federal acatou um pedido da ANJ (Associação Nacional de Jornais) sobre o fim da exigência do diploma de jornalismo para exercer a profissão. Se jornalistas formados já se mostram inábeis, muitas vezes, para escrever sobre populações excluídas sem cair no lugar-comum, como você avalia as consequências desta decisão judicial sobre a qualidade do que é publicado nos veículos de comunicação?

Carlos Alberto – Lamentavelmente, esse processo de desregulamentação profissional vem ocorrendo em vários setores da atividade humana. A própria área da educação é um exemplo disso. O que preocupa, sem dúvida, é a possibilidade de pessoas, muitas vezes talentosas, mas sem uma visão mais ampla do papel social da imprensa assumirem a interlocução midiática e não ultrapassarem o nível da ?opinião pessoal?. Não se trata simplesmente de um movimento corporativo em defesa dessa ou daquela profissão, mas do reconhecimento e do respeito por quem se dedicou a uma sistematização e a uma reflexão mais consistente sobre o lugar da comunicação na dinâmica social. Não ouvimos falar de desregulamentação nos campos da medicina, da engenharia, da odontologia e de tantas outras profissões. Talvez este seja um preço muito caro que começamos a pagar com esse projeto, nem sempre de fácil compreensão, chamado ?neoliberalismo?, o qual, até hoje, n&aatilde;o acenou com qualquer perspectiva de solução do processo de exclusão social. Ao contrário, só o tem feito agravar.

Rets – O que falta para o curso começar?

Carlos Alberto – O processo de criação do curso encontra-se em tramitação nas instâncias superiores da UFJF (Pró-Reitorias). O início do curso está previsto para o primeiro semestre letivo de 2002, o que deverá ocorrer em abril. O curso está estruturado em sete disciplinas, perfazendo um total de 420 horas de duração. Serão enfatizados os veículos de comunicação televisão, rádio, jornal e as novas tecnologias da comunicação e da informação, todos discutindo a questão da diversidade humana, de um modo geral, e da deficiência, em particular. A conclusão do curso acontecerá mediante a elaboração e apresentação de um trabalho monográfico, cuja temática deverá, necessariamente, se referir ao tema central do curso: mídia e deficiência. O curso será ministrado na modalidade semi-presencial, com dois terços de sua carga horária na modalidade presencial e um terço como atividades não presenciais. Mais informações poderão ser obtidas pelos telefones (32) 3229-3602 (Secretaria da Faculdade de Comunicação), 3229-3607 (Professora Nelma Fróes, coordenadora do curso), e 3229-3667 (Professor Carlos Alberto Marques). Por e-mail, os contatos são: secfacom@facom.ufjf.br e nesp@faced.ufjf.br"

 

BÓSNIA

"Joe Sacco usa jornalismo e desenhos para contar a Guerra da Bósnia", copyright Folha de S. Paulo, 4/01/02

"No início dos anos 90, a invasão sérvia dos territórios a leste da ex-república iugoslava da Bósnia provocou a expulsão de milhares de muçulmanos que viviam às margens do rio Drina. De início protegidas pelas forças de paz da ONU, tais áreas acabaram tornando-se verdadeiros campos minados em que a população civil se viu obrigada a conviver com tropas paramilitares e tanques de guerra do Exército sérvio, pelo menos até o acordo de Dayton, em novembro de 1995.

Depois disso, o assunto pareceria esquecido não fossem as páginas de ?Área de Segurança: Gorazde?, graphic novel assinada pelo quadrinista Joe Sacco, 41, também autor da premiada série Palestina, vencedora do American Book Award de 1996 e lançada no ano passado no Brasil.

Misturando jornalismo e quadrinhos, Sacco relata em ?Gorazde? suas quatro viagens à Bósnia, sempre acompanhado de um caderninho de anotações e uma máquina fotográfica amadora.

Em entrevista à Folha, o quadrinista nascido na ilha de Malta (próxima à Sicília), criado na Austrália, formado em Oregon (EUA) e atualmente radicado em Nova York fala sobre a experiência.

Folha – O que influenciou sua escolha por uma cidadezinha de 57 mil habitantes como Gorazde?

Joe Sacco – Quando cheguei a Sarajevo, em 1995, para trabalhar no álbum, Gorazde continuava sob um violento cerco dos sérvios. Com os comboios da ONU, nós, jornalistas, podíamos visitar a cidade regularmente. Na primeira vez que fui, só queria dar uma olhada. Eu estava em Sarajevo havia seis semanas e queria algo novo. Quando cheguei lá, acabei me solidarizando imediatamente com as pessoas e disse: esta é a história que eu quero contar.

Folha – Como era a relação dos moradores de Gorazde com você e com os outros jornalistas?

Sacco – Eu tinha uma credencial de imprensa que me permitia ter alguns privilégios, como, por exemplo, sair à noite durante o toque de recolher, mas acho que a maioria das pessoas não se ressentia disso. Eles ficavam felizes em nos ver, queriam contar histórias das quais o mundo lá fora não tinha ouvido falar ainda.

Folha – Você se preocupou em ser objetivo?

Sacco – Acho que é impossível ser completamente objetivo. Por um motivo: sou um estrangeiro, estou chegando com os olhos de um ocidental na Palestina ou na Bósnia. E não quero fingir que eu não tenho uma opinião. Eu tenho meus preconceitos e quero que as pessoas saibam quais são. É o preço que elas pagam para ver as coisas pelos meus olhos. É também muito difícil ser objetivo quando se é parte da história. Não acredito em objetividade, mas em ser justo.

Folha – Qual é sua opinião sobre a intervenção dos Estados Unidos na Bósnia?

Sacco – Acho que os EUA deveriam ter intervindo muito antes do que fizeram. Isso teria poupado a vida de umas 200 mil pessoas. Eles ficavam avançando e recuando, no típico estilo Clinton. Por fim, os bósnios não sabiam mais em que acreditar. O que os políticos diziam e o que eles faziam tornaram-se duas coisas diferentes.

Folha – Depois de assinado o acordo de Dayton e com a radicalização dos conflitos entre sérvios e albaneses, em Kosovo, a situação na Bósnia foi deixada de lado pela mídia em geral. Você manteve contato com as suas fontes?

Sacco – Sim. Edin [intérprete em Gorazde] e eu ainda nos falamos. Estive em Gorazde e em Sarajevo há uns quatro meses. Não há mais tiroteios, mas a situação econômica é muito ruim. Quando estive lá pela primeira vez, havia esperança, porque sempre que uma guerra está para acabar as pessoas começam a sonhar como a vida vai ser. Infelizmente, cinco ou seis anos depois, muitos desses sonhos não se realizaram.

Folha – Então, qual é o seu próximo destino?

Sacco – Acho que vou acabar no Oriente Médio. É uma parte importante do mundo, a história da América está ligada à sua história, mas a política americana continua não sendo muito boa por lá."