PONTE, ENFORCAMENTOS, PESCOÇÃO
Alberto Dines
No jargão do funcionalismo público, ponte é a ligação entre um feriado e o fim de semana vizinho com um ou dois dias úteis no meio. Estas pontes converteram-se no monumento nacional ao absenteísmo com o nome de enforcamento (nada ver com a execução de Tiradentes lembrada na segunda-feira, 21/4). A decantada sociedade cordial vibra com tais enforcamentos não porque aquela seja especialmente sanguinária; mas porque, ao contrário do descanso semanal regulamentar, esses lembram como é bom driblar os compromissos com a coletividade e o dever de produzir. Pasmem os antropólogos, mas, no Brasil, o prazer de viver materializa-se apenas durante os enforcamentos.
Nestas amenas plagas, o prazer do jornalista também segue procedimentos sui generis. Assim como é legítimo supor que a alegria de um médico está no ato de salvar vidas e a do advogado em defender causas nobres, o prazer dos coleguinhas vai na direção contrária. Exemplo: escrever "hoje" a matéria que será lida depois de amanhã e, desta maneira engenhosa, tirar do jornalismo seu principal desconforto ? ser atual.
A esta charge jornalística deu-se o sugestivo nome de pescoção. Ao contrário do que afirmam os dicionaristas de hoje e de antanho ao afirmar que é sinônimo de "sopapo", "tapona" e "tabefe", o pescoção é uma importante contribuição para atalhar o conflito Capital versus Trabalho. Através do pescoção os generosos capitalistas e operosos trabalhadores da nossa indústria jornalística encontraram uma forma de harmonizar interesses. Não indagaram dos leitores o que pensam a respeito do pescoção mas leitores só contam quando devem manifestar-se a respeito das qualidades dos veículos ou da imodéstia dos seus colaboradores.
A verdade é que através do pescoção os empresários fingem que oferecem um serviço regular, periódico e os profissionais fingem que estão alertas enquanto a sociedade descansa ou se diverte. Como os capitalistas não querem pagar horas extras a grandes equipes e os profissionais têm medo de exigi-las quando voa o passaralho, o tal do pescoção, embora não seja rima, é solução.
Quinta-feira é a noite do pescoção também conhecida como Noite de São Bartolomeu do jornalismo pátrio: começam a ser massacradas as edições que serão entregues pontualmente na sexta, sábado, domingo e segunda, com noticiário, opiniões e serviços requentados, desatualizados, mofados e, o pior, infiltrados de matérias de favor porque ninguém é de ferro e no fim de semana os códigos de ética ficam trancados na gaveta das chefias.
O feriadão nacional de quatro dias (que na cidade do Rio de Janeiro chamou-se de feriadãozão porque estendeu-se até a quarta-feira seguinte) foi providencial e extremamente útil. Roubou-se menos, corrompeu-se menos, enganou-se menos o eleitorado.
Sob o ponto de vista deste Observatório comprovou-se a dispensabilidade e a descartabilidade da mídia impressa e, como conseqüência, evidenciou-se como os meios eletrônicos (neles incluídos os digitais) servem-se sem-cerimônias do que foi publicado para encher seus espaços e tempos.
O caso dos quatro semanários já foi aqui estudado em outra festiva ocasião [veja remissão abaixo, sobre a cobertura do feriado de Carnaval] e, pela recorrência, configura o que poderia ser chamado de crime de lesa-informação. Todos, sem exceção, poderiam ir direto para o contêiner dos reciclados ? com o devido respeito aos colunistas regulares que não têm culpa de que seus nomes e seus talentos sejam usados para qualificar o lixo informativo das "revistas de informação".
A tragédia em Cabo Frio ocorrida sábado, às 12h20, não estava nas edições nacionais dos jornais dominicais do Rio de Janeiro. E se, por hipótese, ocorresse no Guarujá não estaria nas edições nacionais dos jornais de São Paulo. Então, para que servem as edições nacionais? São placebos jornalísticos? Para quem não sabe o que é placebo, leia-se "empulhação".
A própria cobertura do naufrágio foi precária ? não obstante a diligência de alguns plantonistas, repórteres, fotógrafos, redatores e editores. Na sua edição de segunda-feira (21/4), O Globo ensinava que o barco não era uma escuna ? como a mídia toda martelou durante 48 horas ?, mas uma chata adaptada. No entanto, enquanto na página 11 esclarecia a questão, na primeira página, em manchete, mencionava a tal "escuna".
Na edição de segunda-feira, a Folha de S.Paulo deixou sepultado na última página do caderno "Turismo" um dos melhores artigos de autor nacional sobre o recente surto repressivo em Cuba e assinado pelo jornalista-deputado Fernando Gabeira, colaborador habitual do caderno. Para azar do editor da primeira página, saiu a chamada burocrática para o "Turismo" e nenhuma referência ao artigo de Gabeira [leia na rubrica Mídia&Guerra, nesta edição, matéria sob o chapéu O CAMPO DE BATALHA SOMOS NÓS].
Já houve tempo em que ler jornal era uma necessidade tão grande quanto tomar café, trabalhar, estudar, participar, ouvir música e dormir. Com mais algumas pontes e pescoções ler jornal e revista vai converter-se numa espécie de malhação ? é bom fazer, melhor ainda é faltar.
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