DROGAS
"Cérebro nunca esquece a droga, afirma psiquiatra", copyright Folha de S.Paulo, 30/7/01
"Especializado no tratamento de dependentes químicos, o psiquiatra argentino Eduardo Kalina, 63, faz um alerta: o cérebro nunca esquece a sensação provocada pela droga. Para um dependente químico, a cura exige a abdicação total das drogas, inclusive álcool e cigarro -por toda a vida.
?Quem usa drogas quer ser super-homem?, diz. Kalina já tratou de pacientes famosos, como a atriz Vera Fischer e o ex-jogador de futebol Diego Maradona. Ele atua na área há 32 anos. Nos últimos tempos, tem se dedicado a estudar a depressão, sobre a qual prepara um livro.
Diretor-médico de uma clínica em Buenos Aires, Kalina vem ao Brasil de três em três meses para acompanhar pacientes de uma clínica de Ipanema (zona sul), onde atua como supervisor. Leia trechos de sua entrevista à Folha:
Por que a depressão virou a doença do homem moderno?
Eduardo Kalina ? Os motivos são muitos. Temos uma crise de vida no mundo atual, que criou desenvolvimento e, em lugar de criar felicidade para as pessoas, criou infelicidade. Tudo isso favoreceu depressões. A forma de viver é cada vez menos humana. O uso de tóxicos, álcool, tabaco, café, cocaína, estimulantes, tudo isso favorece a depressão. Um fator que provocou o aumento de drogas é o fato de que vivemos cada vez menos humanamente. Cada vez viramos mais máquinas, porque temos muito ou porque temos pouco. O homem virou cada vez mais máquina, e as máquinas precisam de combustíveis especiais.
Fale um pouco do tratamento que o sr. utiliza.
Kalina ? São tratamentos integrais, com exames de diagnóstico complexos, para estudar o que acontece no cérebro sem produzir danos às pessoas e para saber como está o equilíbrio neuroquímico. Fazemos um diagnóstico psicológico e psicossocial. Pacientes com desequilíbrios importantes precisam de medicamentos para compensar esses desequilíbrios, que não se corrigem sozinhos.
Isso não cria uma dependência de medicamentos?
Kalina ? Não usamos medicamentos que produzem dependências patológicas. Mas certas indicações exigem uma dependência útil. Se uma pessoa tem de tomar insulina, é insulino-dependente. Se tem depressão grave, será antidepressivo-dependente, e não tem nada a ver com ser dependente da cocaína. É diferente.
O que o sr. chama de lado psicossocial?
Kalina ? O uso de drogas vai contra a natureza humana. A pessoa procura a droga para ser outro, Popeye, super-homem. Além de corrigir o fator biológico, é preciso fazer psicoterapias, trabalhar com a família. Muitos pacientes precisam reaprender a se desenvolver no meio social. Daí a importância do hospital-dia, com estruturas comunitárias.
Folha – O sr. teve pacientes famosos como Vera Fischer e Maradona. Eles se curaram?
Kalina ? Não quero falar deles. Quem usou droga tem que aprender a viver sem drogas, entre as quais álcool e tabaco. Pessoas famosas chegam a acreditar que são super-homens ou supermulheres e não aceitam os limites: não podem tomar nunca mais álcool. Por isso, muitos voltam à droga. Pessoas comuns que têm recaídas são muitas. Quando tem recaída um famoso, fala todo mundo.
Há cura para a dependência química?
Kalina ? A cura significa deixar de tomar drogas de todo tipo, álcool e tabaco inclusive, e aceitar que o corpo nunca vai esquecer o que aprendeu. Se você foi fumante, alcoólatra ou toxicômano, o cérebro não esquece. Por isso, a cervejinha é fatal, porque abre a memória biológica. A pessoa lembra e acorda tudo o que tratamos de limpar. Há cura se você aceita seus limites.
O que sr. acha da descriminação da maconha?
Kalina ? Sou contra. As pessoas que defendem isso não se preocupam com a saúde pública. Há estudos sobre o poder carcinogenético [causador de câncer] da maconha, que é quatro vezes superior ao do tabaco.
Quem fuma só maconha é dependente?
Kalina ? É dependente. Quando a pessoa diz ?fumo só maconha?, quase nunca é verdade. Ela fuma cigarros, toma álcool e, com o tempo, não basta. É a porta de entrada para outras drogas. Assim como se dizia antes que a consciência é solúvel em álcool, digo que é solúvel em maconha.
O sr. escreveu sobre jovens. O que diria aos pais, principalmente aos que usaram drogas?
Kalina ? O papel da família é não seguir a linha: ?faça o que eu digo e não faça o que eu faço?. Se os pais consomem tabaco, álcool e remédios, não podem pedir que os filhos não procurem soluções químicas. O pai deve dizer ao filho que usou, mas que não há motivo para o filho faça também.
O sr. não admite o álcool nem em ocasiões sociais?
Kalina ? É preciso saber a diferença. De cada 100 pessoas que bebem, 10 viram alcoólatras. Dos que fumam mais de seis semanas, 60% viram fumantes que não podem parar. A cerveja e o vinho, se tomados com moderação, têm efeitos negativos mínimos e certos componentes úteis para a saúde. O vinho tem aminoácidos, a cerveja tem vitamina B. O uísque, a cachaça, nada disso tem valor para o organismo."
"Uso humanitário da maconha", copyright Jornal do Brasil, 3/8/01
"Desde 1? de agosto, o Canadá avançou importante passo no resgate de um dos produtos mais usados e controvertidos do mundo: o Ministério da Saúde regulamentou o acesso à maconha fumada para fins terapêuticos. Após longo processo judicial, a Corte de Apelações de Ontário autorizou um paciente portador de epilepsia a consumir maconha fumada para atenuar sintomas de suas crises. A Corte abordou esse caso exclusivamente sob o ângulo do valor medicinal da substância. Em caso semelhante, a mesma Corte concluiu que o Parlamento podia proibir o consumo de maconha com fins recreativos. Esse procedimento foi agora ampliado para pacientes portadores de Aids e de síndromes dolorosas derivadas de certos cânceres em estágio terminal.
A maconha é o nome popular de um grupo de plantas da família das Cannabaceae, do gênero Cannabis, uma das mais antigas plantas psicoativas conhecidas. O nome maconha é dado aos produtos derivados das folhas fêmeas. Tal planta é cultivada em todo o mundo em grande variedade de climas e solos. Existem referências sobre o uso médico da maconha desde 3750 aC, na China, onde fórmulas contendo a semente do cânhamo eram recomendadas para cólicas menstruais, convulsões, insônia, bem como para estimular o apetite e como afrodisíaco. Tal uso terapêutico foi aumentando e descrito em todas as etapas de civilização. Em fins do século XIX, além de vários derivados canábicos terem sido produzidos pela então incipiente indústria farmacêutica, uma linhagem muito potente de cânhamo foi produzida industrialmente nos Estados Unidos, a Cannabis americana, utilizada como xaropes, sedativos e contra cólicas, por laboratórios como Merck, Parke Davis e Squibb.
Por interesses comerciais e pressão das madeireiras, em 1937, os EUA mudaram sua legislação, que aboliu os derivados do cânhamo do mercado. A Agência Federal de Narcóticos, por questões de jogo de poder, resolveu, após os cortes orçamentários provenientes de tal proibição, aumentar sua própria importância, ao ”tirar vantagem das tendências racistas e estigmatizar tanto a planta quanto seus usuários”. A essa altura, com a aceleração do processo de industrialização, as grandes empresas farmacêuticas já produziam novas substâncias, como a morfina, e aparelhos de introdução, como a seringa. Como a maconha não podia ser injetada, restringia-se a via oral. No início do século XX, as muitas drogas sintéticas produzidas, de mais fácil manejo, se tornaram mais convenientes para administração, existindo relatos de não serem tão efetivas e apresentando toxicidade bem maior do que os derivados canábicos.
Em 1965, foi isolado o THC (delta-9-tetrahidrocanabinol) – por Mechoulam, da Universidade Hebraica de Jerusalém, Israel -, identificado como principal composto psicoativo, advindo daí uma série de compostos, estruturalmente diferentes das outras drogas, e com possibilidades terapêuticas comprovadas.
Como proposta de retomada de utilização terapêutica, em pacientes com patologia determinada, seja como antinauseantes pelo efeito dos anti-retrovirais para pacientes com Aids, seja para ajudar a suportar as fortes dores decorrentes de certos cânceres em estágio terminal, e, sobretudo, seguindo protocolos de estudo rigorosos, a atual legislação brasileira sobre drogas (Lei 6368/76), prevê que a ”cultura de plantas para fins terapêuticos ou científicos será permitida mediante prévia autorização das autoridades competentes” (Art. 2?, parágrafo 2?).
No Canadá e em diversos países da União Européia, isto se chama uso humanitário. Como se chamará no Brasil? "