Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Fernando de Barros e Silva


ELEIÇÕES 2002


"A nova Globo, ou 30 anos em 4 noites", copyright Folha de S. Paulo, 13/7/02

"As entrevistas que o ?Jornal Nacional? levou ao ar ao vivo com os presidenciáveis lançam muito mais luz sobre a Rede Globo do que sobre o futuro do país.

Para os candidatos, a oportunidade representou uma das últimas chances de aparecer diante de milhões de pessoas antes do horário eleitoral gratuito, no qual a disputa será decidida. Para a Globo, a bateria de entrevistas significou o primeiro grande teste para reparar atentados históricos da emissora contra a democracia.

Enquanto os primeiros se esforçaram para atingir as massas, a Globo se empenhou sobretudo para dizer aos formadores de opinião que agora ali se pratica jornalismo, sim senhor.

A prova dos nove da emissora, por razões óbvias, foi a terceira entrevista da série, com o candidato oficial. E o casal 20 do telejornalismo o tratou como gente grande. Não se furtou de fazer o roteiro da pauta de perguntas embaraçosas -de Ricardo Sérgio à dengue, da fama de desagregador que Serra carrega às acusações de arapongagem contra adversários.

A lição de casa foi feita. A pretensão maior da Globo talvez fosse a de dissolver 30 anos de escuridão em quatro noites luminosas. Não dá. É breu demais para pouca luz. Mas o saldo da série, ainda assim, foi positivo.

William Bonner afastou a impressão de que é uma versão atualizada de Cid Moreira. Se Fátima Bernardes voltou consagrada da cobertura da Copa, foi sobretudo Bonner quem conduziu as entrevistas, em geral bem feitas, críticas e equilibradas.

O aspecto por assim dizer frustrante desse esforço de jornalismo é o resultado algo empostado do conjunto, como a denunciar que o debate democrático está a cargo do show midiático, e não o contrário. Do cenário futurista e hospitalar do estúdio, que lembra filmes de ficção científica, ao comportamento ensaiado dos personagens, toda a mis en scène reforça a sensação de que o teatro prevalece sobre a política. No fundo, ele é a política. A performance de cada um importa mais que o enredo -e é da primeira que estamos falando quando comentamos quase automaticamente que ?fulano se saiu bem?. Se é verdade que este é um traço definidor da TV, no horário nobre da Globo ele é quase sufocante.

A crítica que se deve fazer desse jornalismo que se descobre à medida que tenta expiar fantasmas do passado tem de ser a um só tempo mais profunda e mais matizada, mais estrutural e mais cirúrgica. Quem quis encontrar grandes manipulações, favorecimentos, omissões ou compromissos na série de entrevistas do ?JN? saiu com as mãos vazias.

Em 98, a Globo já havia dado ampla visibilidade a uma campanha que na prática não existiu. O que a emissora então camuflava do público não era Lula, quase decorativo, mas a bola de neve que se formava sobre o país do câmbio artificialmente apreciado, presa fácil da crise internacional.

Hoje, até mais do que antes, o noticiário econômico volta
a ocupar o centro do debate. Há um clima de terror no ar. Já será
um avanço se a emissora que detém o monopólio branco da
audiência não transformar a eleição numa espécie
de trem fantasma."

 


"Riscos do temperamento paranóide", copyright O Estado de S. Paulo, 13/7/02

"Tocou o interfone. O porteiro pediu que me avisassem de que estava lá embaixo o prefeito de Fortaleza. Pedi que o fizesse subir e chegou à minha casa o jovem prefeito Ciro Gomes, acompanhado de uma pessoa que não consegui identificar se se tratava de um assessor ou segurança, porque o cidadão (de compleição física oposta ao porte elegante de Ciro), atarracado, carrancudo e de olhos esbugalhados, permaneceu durante toda a visita sem pronunciar um único monossílabo, nem para agradecer o refrigerante e o cafezinho que lhes foram servidos. Apenas me olhava fixo, o que também fazia um estranho contraste com seu chefe. Pois a primeira coisa que notei foi que Ciro não costuma olhar direto nos olhos do interlocutor. Extremamente bem articulado, como se lesse um teleprompter instalado em seu cérebro – às vezes dando a impressão de ser capaz de transmitir uma partida de futebol em escorreito economês -, Ciro fala sempre, mesmo a curta distância, como se estivesse pregando para uma multidão. (Se se reparar bem, até em suas fotos isso transparece.) Havia algo estranhamente robótico em sua expressão fisionômica. Mas também – então pensei – podia tratar-se de uma simples arrogância atávica sobralense, uma vez que todos no Nordeste bem conhecem a auto-estima exacerbada dos nativos dos Estados Unidos de Sobral (o famoso EUS, que leva alguns sobralenses a anunciar sua origem dizendo: ?Eu sou d?EUS?).

?Vim aqui agradecer por seu artigo de ontem. É que tudo ali escrito os jornais do Ceará podem dizer, mas ninguém liga, porque somos um povo colonizado. Só interessa o que é publicado no Sul.?

Logo entendi. Na véspera eu tinha publicado, nesta mesma página do Estado, um artigo com o título O exemplo de Fortaleza. É que eu estivera naquela cidade e me surpreendera com a quase unanimidade de opiniões favoráveis e entusiásticas sobre a administração de Ciro Gomes – de quem, até então, quase ninguém ouvira falar em São Paulo. Chamara-me a atenção, particularmente, a cidade limpíssima, bem cuidada e uma interessante inovação: na praia mais freqüentada de Fortaleza – Praia do Futuro – a prefeitura havia permitido a instalação e livre exploração das grandes barracas (bares-restaurantes) sob duas rígidas condições. Primeiro, que qualquer pessoa pudesse sentar-se nas cadeiras colocadas na praia, mesmo sem consumir nada – o que era um respeito estrito ao caráter público do espaço; segundo, que ao fim da tarde, num horário a ser obedecido pontualmente, toda a área em volta da barraca deveria estar totalmente limpa, sem nenhum papel de sorvete ou restos de caranguejo (que os freqüentadores costumavam jogar na areia). Por isso se viam empregados das barracas retirando, continuamente, dejetos da areia, o que tornava a praia permanentemente limpa. Por idéias simples e funcionais como essa – que muito contrastavam com a calamidade que fora o governo da prefeita Maria Luiza Fontenelle, quando até porcos vivos eram vendidos nas praias e, nos hotéis, se recomendava aos turistas ficar longe delas -, Ciro Gomes era e continuou sendo muito respeitado em seu Estado, quando se tornou governador.

?Ora, não tem nada que agradecer, prefeito?, disse-lhe eu, passando a conversa, então, de maneira leve e cordial (apesar dos olhares fixos, arregalados e meio assustadores do atarracado assessor ou segurança), para vários outros temas políticos e administrativos do momento, ele sempre expondo suas idéias com a fluência e regularidade tonal de uma linha de montagem. Mas ainda havia naquele jovem e talentoso político – apesar do que parecia ser um natural empertigamento biotípico – um certo laivo de humildade, até no gesto de vir agradecer um simples artigo que lhe tinha sido favorável.

Esses fatos – passados há cerca de uma dúzia de anos – me vieram à mente logo depois que li, espantado, a reportagem de capa da revista Época desta semana. É verdade que daquele tempo para cá já se tinha tornado bem perceptível, em Ciro Gomes, a evolução de um certo traço comportamental messiânico, assim como uma compulsiva super-auto-avaliação, que torna arrogante até a ?humilde? frase (talvez sugerida por seus marqueteiros) que o candidato tem repetido: ?Se me for dada a honra de servir ao povo brasileiro como presidente da República…? Certamente a receptividade midiática, que projetou nacionalmente sua carreira presidenciável solo, contribuiu para esse inchaço crônico de umbigo. Mas, sem dúvida, a influência mais profunda e decisiva que tem recebido, para desenvolver esse traço de personalidade, provém de seu guru Mangabeira Unger, figura que mais parece uma curiosa mistura de pregador evangélico com orador baiano e filósofo esotérico, e é tanto mais exótica por seu português, carregado de forte sotaque norte-americano.

Se Ciro Gomes já vinha demonstrando, há tempos, tanto a mania persecutória quanto o hábito de sempre responder às críticas com insultos, nessa entrevista à Época ele ultrapassou todos os limites do voluntarismo e da impulsividade, mostrando-se possuído por uma inacreditável agressividade contra jornalistas, até maior que a do general João Figueiredo quando fazia o gesto de dar uma banana (para a imprensa e o povo) e dizia: ?Quero que me esqueçam.? Quando indagado, por exemplo, sobre uma coisa simples – a razão de seu irmão ser seu tesoureiro eleitoral -, respondeu com um ríspido ?não é de sua conta? (como se pormenores do financiamento eleitoral de candidatos à Presidência da República não fossem da conta de jornalistas nem de leitores – talvez nem de eleitores). Desprezou, solenemente (dizendo: ?Grande coisa!?), a informação de que a entrevista poderia ser escolhida como matéria de capa da revista. E, num descontrolado bate-boca, ofendeu pesadamente os jornalistas que o entrevistavam, chamando-os – e à revista – de desonestos, acusando-os de estarem ali a serviço de seu odiado adversário e concorrente, o tucano José Serra.

Obcecado por supostos dossiês (nunca vindos à tona) e medonhos
arapongas que estariam em seu encalço, dizendo que todos os seus telefones
estão grampeados – apenas com base na informação que ?um
brasileiro? lhe teria passado – e atribuindo a Serra os superpoderes de um Big
Brother do grampo, Ciro Gomes exibe um forte traço paranóide em
sua personalidade. (O Dicionário Houaiss assim define: ?Paranóide
– Relativo ou próprio da tendência de desenvolver idéias
delirantes, especialmente idéias sistematizadas de prejuízo ou
de perseguição.?) E nossa história política revela
que isso significa, numa palavra (?forças terríveis!?), altos
riscos para a governabilidade."

 

"A televisão testa os candidatos", editorial, copyright O Estado de S. Paulo, 12/7/02

"As entrevistas ao vivo com os candidatos a presidente da República, no Jornal Nacional e no Bom Dia Brasil da Rede Globo, proporcionaram a uma boa parcela do eleitorado, cuja fonte primária de informação ainda é a mídia eletrônica e, nela, os telejornais dessa rede, a primeira visão desembaçada do que são e pretendem os aspirantes ao lugar de Fernando Henrique. As sabatinas, embora breves, deram ao grande público uma amostra de como os presidenciáveis lidam com questões e cobranças incômodas, numa situação que escapa ao seu controle.

Ainda que exígua em cada um dos seus segmentos, a série representou um contraponto ao ciclo de programas partidários encerrado em junho que, ao arrepio da lei, serviram não para divulgar o que cada agremiação teria a dizer sobre as questões nacionais, mas para exibir – sob a luz mais favorável que as técnicas de marketing televisivo fossem capazes de produzir – as personas de seus candidatos.

É impossível, obviamente, antecipar os efeitos eleitorais dessas entrevistas. Mas, para todos quantos esperam que o voto popular reflita antes um juízo sobre a substância das propostas de governo e o preparo dos proponentes do que uma reação epidérmica ao teatro manipulador da propaganda eleitoral, as entrevistas, que se repetirão em setembro – assim como o debate programado para agosto pela Rede Bandeirantes -, contêm o auspicioso potencial de falar à inteligência do eleitor em vez de apelar às emoções baratas das platéias desprevenidas, como fizeram, com intensidade e talento variáveis, os programas partidários, cuja prioridade era ?humanizar? os respectivos candidatos.

Essa contrafação – na qual não faltaram o discurso pseudofeminista da então presidenciável Roseana Sarney, as lágrimas de Lula pela morte de sua primeira mulher (há 32 anos!) e a cabeça raspada da atriz Patrícia Pillar, a namorada de Ciro Gomes em luta com o câncer – gerou conseqüências igualmente artificiais, porém entendidas como se fossem o oposto disso, em grande parte por culpa da imprensa. Trata-se do sobe-e-desce dos candidatos nas pesquisas. De Roseana a Ciro, em ordem cronológica, todos avançaram no ranking das intenções de voto na semana seguinte àquela em que suas figuras, devidamente trabalhadas pelos experts da dramatização política, monopolizaram o tempo de televisão dos partidos.

Formou-se, nesse ambiente, um duplo equívoco. Primeiro, o da supervalorização das sondagens, que apresentam porcentagens que o leitor comum tende a entender como parcelas do total do eleitorado, quando, na verdade, metade dos pesquisados não tem candidato e a maioria dos que escolhem um nome da lista que lhes é exibida admite mudar de idéia até outubro. O segundo equívoco, o da avaliação superficial das pesquisas, resulta da forma como a imprensa expõe os números, deixando o público alheio à ?letra miúda? dos resultados. Por exemplo, passou em geral despercebido o desgaste do candidato petista junto a um setor em que ele sempre foi especialmente forte – o eleitorado masculino. No Ibope, Lula vem perdendo votos de homens há duas rodadas consecutivas, um indício talvez significativo de fragilização eleitoral.

De há muito se sabe que a mídia eletrônica tem um poder extraordinário de suscitar paixões políticas. Hitler foi um produto do rádio; Kennedy, da tevê. Hoje em dia, as refinadas técnicas de persuasão de massa nesses meios de comunicação – a videopolítica, de que fala pejorativamente o cientista italiano Giovanni Sartori – são recursos de uso corrente nas disputas eleitorais, e as pesquisas captam o seu formidável impacto. Mas seria subestimar a inteligência do público presumir que o mais telegênico ou histriônico entre os candidatos, ou o que tiver contratado o melhor marqueteiro, será sempre o favorito.

As normas para campanhas eleitorais no Brasil desincentivam o debate de idéias. Mas, de alguma forma, o País encontrou caminhos para forçar os partidos e os candidatos a debaterem e se definirem sobre algumas das questões – sobretudo as econômicas – mais candentes em jogo nesta eleição.

Quanto mais a campanha deixar de se limitar aos horários oficiais, graças a intervenções jornalísticas acessíveis também às grandes massas, mais o público terá a oportunidade de confrontar as imagens construídas pelos marqueteiros, carregadas de fáceis estímulos sentimentais, com o desempenho dos candidatos, obrigados a se confrontar com seu próprio passado e a se pronunciar sobre questões espinhosas que a sociedade, em última análise, lhes impõe."