Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Fernando Martins

JORNAL DE NOTÍCIAS

"Em tempo de guerra também se ‘limpam’ palavras e imagens", copyright Jornal de Notícias, 27/10/01

"As acções militares no Afeganistão e a ameaça de graves atentados químicos e bacteriológicos continuam a dominar as atenções da comunicação social. E, prevalecente, dominante, mantém-se a mensagem dos bárbaros ataques de 11 de Setembro. Os americanos perderam, em alguns minutos, a sensação de invulnerabilidade: afinal, não há escudos nem sofisticações tecnológicas que contenham a determinação de quem oferece a vida em defesa de um ideal. E a outra face da confiança ilimitada é o medo sem fronteiras, a arma tenebrosa que a Al-Qaeda utiliza com eficácia e subtileza saídas da sombra.

Os americanos sabem-no, de Bush ao cidadão comum. Os jornalistas também.

Mas as crises, todas as crises, eriçam sensibilidades e erguem paliçadas. A Administração terça armas contra o ‘politicamente incorrecto’ e contra o ‘antipatriótico’. A comunicação social, por seu turno, faz da Primeira Emenda barricada contra a censura e contra a propaganda. Os jornalistas não aceitam outra tutela que não seja a da sua consciência — a mesma consciência que hoje, mais do que nunca, os obriga a escolher as palavras com a consciência de que elas são, muitas vezes, armas a que o clima de guerra dá maior potencial.

Os portugueses sentem o fenómeno, que a ‘aldeia global’ faz igualmente nosso. E tentam explicá-lo, quer com perguntas, quer com ilacções — e curiosamente numa visão ampla e genérica da comunicação. Sem especificar o jornal, falando das televisões em bloco.

‘As televisões não deram uma única imagem dos corpos a serem retirados dos escombros do WTC, os jornais não publicaram uma única fotografia. Que contraste absoluto com a forma como trataram a nossa tragédia doméstica de Entre-os-Rios! Ou será que, mais uma vez, nos vergámos à vontade dos nossos patrões americanos?’, pergunta Jorge Costa, de Lisboa.

‘É abusivo, faccioso e penso que pouco justo o nome de terroristas que dão a bin Laden e aos seus seguidores. E os americanos não são terroristas, com o bombardeamento diário, sistemático, da população indefesa nas suas casas e nos hospitais?’, questiona Ernesto Silva, de Santa Maria da Feira.

‘Se o sr. Bush diz, para se justificar, que esta guerra é uma retaliação, também os afegãs podem dizer que o ataque a Nova Iorque foi uma retaliação pela perseguição que os americanos e o seu braço israelita fazem aos árabes há tantos anos’, considera José Branco, de Setúbal.

O Provedor teve oportunidade de se debruçar sobre as violações da privacidade e sobre o mau-gosto e a morbidez, que caracterizaram as reportagens sobre a tragédia de Castelo de Paiva. Quaisquer que tenham sido os possíveis resultados de análises, recomendações e promessas de auto-regulação feitas na altura, a verdade é que teria sido particularmente difícil a quaisquer televisões (portuguesas ou de qualquer outro país) enveredar pelo sensacionalismo no caso do ataque às torres gémeas do World Trade Center.

Os operadores de imagem encontraram, em Nova Iorque, uma decidida barreira de polícias e de bombeiros, que só permitiam a filmagem dos escombros a uma distância que não permitia pormenores desnecessários e chocantes. Antes, porém, todas as grandes cadeias de TV dos EUA (bem como as agências noticiosas) tinham feito um acordo segundo o qual não cederiam uma única imagem das vítimas dos atentados às televisões estrangeiras.

Parece provado que alguns repórteres, nomeadamente da CNN, conseguiram imagens de cadáveres e de destroços humanos. Mas nem nos Estados Unidos foram divulgadas.

Na Europa, houve algumas reacções, nomeadamente em França, onde o director de Informação da TF1, Robert Namias, falou, claramente, de ‘uma filtragem que pode chamar-se censura’. E com alguma razão. Pelo menos com a mesma razão que invocam os jornalistas americanos quando, em nome da Primeira Emenda, lembram que se alguém deve fazer restrições a selecção da informação devem ser eles próprios. Tanta maturidade ética e deontológica têm os profissionais americanos como os europeus. Aliás o próprio Robert Namias reconheceu que não havia qualquer necessidade de mostrar as imagens censuradas. ‘Mas deviamos ter sido nós a decidi-lo. É nossa a responsabilidade de saber o que se põe ou não no ar. E nós sabemos, claramente, que não devemos pôr no ar imagens traumatizantes’.

As imagens, como as palavras, são armas que ferem sensibilidades. Em tempo de guerra, as suas feridas são mais graves, mais profundas e mais dolorosas. E, como tal, levam, sempre, a um debate mais aceso…

Ernesto Silva, de Santa Maria da Feira, fala do emprego da palavra ‘terrorista’ só para designar (no caso deste conflito) os guerrilheiros da Al Qaeda, quando, em sua opinião, a ser usada, ela deveria sê-lo indiscriminadamente para os dois lados, já que os americanos e os seus aliados não lhes ficam atrás em atrocidades — uma posição em tudo semelhante à do leitor de Setúbal, José Branco, quanto à ‘retaliação’ americana, pelo que o Provedor trata as duas questões em perfeita consonância.

Curiosamente, há não muitos dias, a agência Reuters determinou que fosse abolida de todos os textos que os seus jornalistas produzem o substantivo ‘terrorista’. E a decisão ter-se-á radicado na subjectividade do conceito.

‘Terroristas’ são sempre ‘os outros’, isto é, os que agem em nome de ideais diferentes dos que partilhamos; em defesa de territórios que não são os nossos. Terroristas para uns e guerreiros heróis para outros.

Ora, partindo do princípio que uma agência internacional como a Reuters (poderíamos dizê-la planetária) é, necessariamente equidistante em relação a ambos os lados do conflito, na objectividade que deve ser o seu lema não cabe o substantivo terrorista. O mesmo não poderá dizer-se em relação ao adjectivo ‘terrorista’, para qualificar uma acto de terrorismo, praticado por qualquer um dos lados de um confronto. Porque as palavras têm significados próprios e, seguindo a sabedoria do povo, no jornalismo como nos outros actos da vida, tenhamos a coragem de ‘chamar as coisas pelo nome’.

Refira-se que há já muito a CNN aboliu dos seus noticiários o substantivo ‘estrangeiro’. Cobrindo, como cobre, praticamente todo o mundo, consideraram os seus dirigentes que para a mais famosa cadeia de TV de continuidade não há estrangeiros."

    
    
                     

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